sexta-feira, 3 de junho de 2011

GESCHICHTE EINES ALTEN SÜNDE: A HISTÓRIA DO ILAK, O CÃO-LOBO by Hans Freudig

When I was young, a história poderia começar assim, porque já lá vão algumas décadas, ofereci um presente envenenado a um irmão: o ILAK, um cão-lobo que doei como se fosse o mais excelente dos Pastores Alemães. Felizmente não resultou daí qualquer dano para ninguém, nem para o bicho nem para os sucessivos proprietários que o adquiriram e conduziram, o que não me isentou de rara preocupação durante alguns anos, até porque o meu propósito inicial era francamente maldoso e queria de alguma forma comprometer o meu irmão. Um dia, o qual não recordo exactamente, ele disse-me: “Hans, eu quero um cão como o do Wilhelm. Quando tiveres outra ninhada, espero que me ofereças um!”. Na altura, não que isso sirva de justificativa, esse meu irmão era muito prepotente, funcionava como meu patrão e sempre fazia questão de manifestar a sua autoridade, mesmo nos momentos em que tal era desnecessário e se tornava por demais abusivo. Farto do aturar, que madurezas era coisa que não faltava, anui ao seu pedido e esfreguei as mãos de contente, porque a minha hora parecia ter chegado. O tal de Guilherme que me havia comprado o primeiro cão, trabalhava connosco e comprou-mo para arranjar um aliado, porque também ele, por detrás do seu ar de franciscano descalço, não ia à bola com o meu irmão, tudo fazendo para o destronar e ocupar o seu lugar. Por má sorte, veio a alcançar os seus intentos, ainda que por pouco tempo. Mas voltemos à história do ILAK. A minha Pastora Alemã Arim já tinha 7 anos de idade e ao invés de a beneficiar com um cão da sua raça, optei por cruzá-la com um lobo de uma reserva, porque tal me pareceu bem, atendendo à picardia que mantinha com o meu irmão, necessariamente silenciosa porque o homem não era para brincadeiras e dele dependia o meu futuro. A cavalo e com a cadela a correr ao meu lado, coloquei-a na cerca dos lobos por altura do seu período fértil, temendo por ela e ávido de um desfecho feliz. Três coisas podiam acontecer: a morte da cadela (coisa que eu nem queria imaginar), ela ser coberta ou acabar por fugir, gorando assim os meus intentos. Passada uma semana, com o coração nas mãos, voltei ao reduto dos lobos e chamei por ela. Mais depressa do que em imaginava, ela apareceu, feliz e de cauda ao alto. Escusado será dizer que as lágrimas escorriam-me pela cara abaixo e jurei nunca mais repetir a “proeza”. Trinta e cinco dias depois já havia evidências seguras da sua prenhez, notícia que de imediato transmiti ao meu irmão, geralmente acompanhada de bons augúrios e na certeza de cachorros extraordinários. Os cachorros nasceram no tempo certo e saíram uns matulões, metade preto-afogueados e a outra metade lobeira a puxar para o cinza. Para que os meus planos dessem certo, escolhi o cinzento maior da ninhada, um infante que havia nascido com 890 g e isto sem a mãe haver tomado qualquer suplemento ou aditivo.
Depois do desmame, entreguei o cachorro ao meu irmão, grato e pleno de expectativas. O cachorro crescia assustadoramente e todos os dias o dono levava-o várias vezes à rua. Grande e de orelhas abatidas (apesar de as haver levantado de vez e no tempo certo), ninguém o via como um Pastor Alemão. Vinham uns e inquiriam: “É um Deutsche Dogge? Outros exclamavam: “ Que lindo Weimaraner!” A paciência do dono acabou quando um indivíduo lhe disse: “ Esse cão tem cor de burro quando foge!” Farto de aturar os comentários dos transeuntes, no seu ver asnos a rasar a ignorância, voltou para o escritório e questionou-me: “Ò Hans, ninguém diz que o ILAK é um Pastor Alemão, todos lhe atribuem outra raça e agora mesmo, um disse-me que o cão tem cor de burro quando foge! O que queria ele dizer com isso? Como o meu irmão havia sido alfabetizado na estranja, ele não entendia muito a língua materna, o que me facilitou a resposta e lhe sossegou as ideias. “O que o homem queria dizer é que o cão é muito raro! – disse-lhe. Ele respondeu-me: “Lá raro é, porque não é nada parecido com o cão do Wilhelm! Com o passar do tempo o cachorro fez-se soberbo, toda a gente o admirava e o orgulho do seu dono aumentava a olhos vistos.

Por volta dos seis meses de idade, já o cachorro era enorme e começava a demonstrar algumas tendências, nomeadamente a aversão que tinha ao nosso offiziellen, um funcionário africano que trabalhava para nós e que tudo fazia para nos encalacrar, para quem o cão era um demónio pior do que o dono, no mínimo, o melhor dos complementos prà sua malvadez! Se fosse só por causa do homenzinho, o cão jamais viria a ser treinado, porque a antipatia entre os homens era recíproca e o cão prestava-se à festa. Numa tarde sou surpreendido por uma pergunta:” Hans, quem é o veterinário mais entendido em Pastores Alemães?” Como quem não está acostumado a mentir, sempre lhe foge a boca para a verdade, respondi-lhe prontamente: “ É o Dr. Weiss Schlösser!”, sem pensar nas consequências de tal resposta. “ Prepara-te, porque depois de almoço vamos ao seu consultório, pois gostava de uma opinião avalizada sobre o ILAK” – concluiu. O apetite para o almoço daquele dia desapareceu ainda antes de ter chegado, a ida ao veterinário atormentava-me de sobremaneira, temia ver-me denunciado e com o futuro laboral comprometido. Pelo caminho pensava em estratégias para ludibriar o Dr., e como não é bom ter só um plano A, ia formulando desculpas credíveis para o sucedido, caso a trama viesse a ser descoberta.

No consultório fomos amavelmente recebidos, o cão foi colocado em cima da marquesa e a inspecção demorou cerca de trinta minutos, minutos de muito aperto para mim, agravados pelo silêncio cortante da observação, nem as moscas se ouviam, somente o boliço distante dos carros que passavam pelo exterior do edifício. O clínico observou o cão à minúcia, não parava para comentários, até que finalmente soltou: “ Parabéns Sr. Jurgen, o seu cão é o melhor Pastor Alemão que vi nestes últimos trinta anos! Disto não se vê todos os dias! Verdadeiramente um perfeito exemplar!” Suspirei de alívio, parecia estar a viver o dia da redenção e dizia em silêncio para Deus: “ Obrigado bom pai, deste-me aquilo que não mereço!” Daquele dia em diante, a soberba do meu irmão aumentou e os Pastores Alemães passaram a dividir-se em duas categorias: o ILAK e os outros; o exemplar e as imitações. O caso não era para menos, o bicho atingiu 74 cm de altura, veio a atingir um perímetro torácico de 130 cm e um peso de 53 kg, sem nunca estar gordo.

Pressionado pelos clientes e também pelos restantes utentes do escritório, o Jurgen viu-se coagido a mandar treinar o seu cão, não sem antes consultar a minha opinião, parecer que muito me agradou e que iria evitar, mais uma vez, a minha denúncia, mantendo assim a sua gratidão por mim. “ O que achas de o mandar treinar na polícia? Dizem que são muito bons treinadores?”. “Nem penses nisso! Esses tipos já estão ultrapassados e são violentos. Coitado do teu cão, o que iria sofrer! Está descansado que hei-de encontrar-te um treinador capaz. Vou já começar a tratar do assunto” – respondi-lhe. Ele aceitou a sugestão e eu meti mãos ao trabalho ou por outra, puz os pés ao caminho. Dizem que o diabo as tece, que sempre ajuda nas patranhas e assim aconteceu. No regresso a casa, vinha eu no autocarro, deparei-me com um homem que se fazia acompanhar por Pastor Alemão que rebocava uma carrocinha carregada com uma bilha de gás. Os gestos do homem, a aparência dos seus trajes e o aspecto do cão levaram-me à seguinte conclusão: “ ora aqui está o homem certo para o cliente certo!” Desci do autocarro e fui falar com ele, inquiri da sua disponibilidade, condições e honorários, adiantando-lhe em simultâneo da excelência do animal. Ele respondeu-me que estava disponível, que o treino custaria 250 marcos mensais (pensão completa) e que o cão ficaria em sua casa por um período de dois meses. Não podia ser melhor, porque antes desse período expirar, já eu estaria colocado numa sucursal estrangeira, segundo as melhores recomendações do meu irmão. Combinámos a entrega do cão para o dia seguinte, porque a urgência a todos interessava, ao Jurgen para evitar problemas, a mim porque me protegia e ao treinador porque andava necessitado de alguns cobres (dá para desconfiar quando um negócio agrada às duas partes!).

O tempo correu de tal maneira que quando demos por isso, já estávamos a entregar o cão. Seguiu-se a observação detalhada do animal pelo treinador, que estupefacto me disse: “ Amigo Hans, este bicho é dos gigantes, nunca vi coisa assim e olhe que já vi muitos pastores alemães. Nele tudo é grande, até os dentes!”, ao que lhe respondi: “Eu bem lhe disse Sr. Franz, afinal não o enganei, o cachorro é mesmo de primeira!” Depois disso fomos assistir à primeira aula e seria melhor não termos ido. Ao passar por uma poça de água, o homem pôs os pés por ela adentro e o cachorro passou-lhe ao lado. A atitude do cão não agradou ao mestre e este tomado de zelo, agarrou-o ao colo e projectou-o para dentro do charco dizendo: “ 1ª Lição, metes as patas onde eu meto as minhas!”. O meu irmão levantou as mãos à cabeça em silêncio, enquanto olhava para mim, meio confuso e outro tanto indignado. Para o sossegar, eu projectava o meu polegar direito para cima e apertava o óvulo da minha orelha em sinal de aprovação. Mais confiante em mim do que na demonstração daquele treinador, o Jurgen aceitou as suas condições e entregou-o aos cuidados daquele mestre, que foi o seu único treinador e que acabou por treiná-lo irrepreensivelmente, outros não o fariam tão bem e facilmente se entende porquê.

Passado pouco tempo parti para o estrangeiro e lá recebia amiúde notícias do treinador agradecido, relatos que despoletavam a minha hilaridade face à ignorância do homem e às suas dificuldades. Dizia ele: “Amigo Hans, o ILAK não fica com elas, devolve ao remetente tudo aquilo que recebe. É torcido como os chifres de uma cabra montesa, mas havemos de lá chegar!” O pobre homem não entendia, até porque nem sabia, que mais vale tratar um lobo como cordeiro do que aguçar-lhe os dentes. Pela valentia do homem e pela aceitação da lei do mais forte por parte do cão, aquela equipa tornou-se unha com carne, não sem que antes os dentes de alguém tivessem entrado na carne de outrem. Conhecedor das características do animal e apostado em fazer dele um bom guardião, o treinador aprimorava o seu instinto de presa nos fundilhos de uns quantos toxicodependentes, que mesmo fustigados dessa maneira, persistiam em se reunir junto à Bahnhof (estação de comboios). Certa vez num mercado, a dupla Franz/ Ilak aguentou a carga de nove ciganos e conseguiu desbaratá-los. Episódio atrás de episódio crescia por aquelas paragens a lenda de um cão chamado ILAK.

Forçado a ir também para o estrangeiro e com a família às costas, na impossibilidade de o levar, sabe-se Deus quanto lhe custou, o meu irmão deu ou vendeu, ainda hoje não sei bem, o ILAK a uns Musiklehrer, um casal que dava aulas de música num reputado colégio privado. Quando eu retornei ao País, já o cão lhes pertencia e era tratado como um verdadeiro príncipe, porque nada lhe era exigido, deambulava à vontade pelo quintal e era objecto do maior carinho por parte daquela família. Porém, eu ignorava o que lhe teria sucedido e onde estaria. Poucos dias após o meu regresso, recebo um telefonema de um cidadão estrangeiro que dizia: “ Alô, estou a falar com o Sr. Hans Freudig? É para lhe dizer que tenho um cão dos seus, um exemplar muito bonito, mas infelizmente é muito manso e não serve para guarda! Se o Sr. estiver de acordo, eu entrego-lhe este cão e o Sr. dar-me-á futuramente um cachorro filho dele mais apto para o que eu pretendo”. Estranhando o comportamento do cão, porque era atípico nos cães que criava, perguntei-lhe qual o nome do animal, ao que ele me respondeu: “ Ele chama-se ILAK”. Ao ouvir tal nome, soltei um palavrão daqueles que a todos choca e que acabou também por assustar o meu interlocutor, por força da entoação e do ímpeto da resposta. Depois de haver respirado, disse-lhe que aquele cão estava treinado para guarda de modo irrepreensível e que caso lhe interessasse, iria providenciar um encontro dos dois com o treinador do cão, coisa que veio a acontecer no dia seguinte pela manhã. O reencontro do ILAK com o seu mestre foi efusivo e a demonstração do trabalho de ambos excelente. Tão excelente que o homem já não me quis dar o cão, finalmente convencido da sua qualidade e mais-valias.

Durante algum tempo deixei de ter notícias do cão-lobo e aproveitei um convite do Sr. Franz para almoçar, já que a sua mulher era uma excelente cozinheira. Na alegria do convívio e na euforia produzida pelos bons vinhos da nossa terra, até porque a comida estava apurada e puxava parar beber, decidi revelar um segredo e disse para o dono da casa: “ Sr. Franz, sabe porque é que o ILAK devolvia ao remetente tudo aquilo que recebia? Simplesmente porque é um híbrido de lobo!” Ao ouvir a estranha revelação, o velho treinador permaneceu quedo e mudo, somente os seus olhos se mexiam, lembrando fagulhas prontas pra tudo incendiar. Depois, levantou-se da mesa e abriu a gaveta de um armário, tirando de lá uma pistola que ele mesmo havia construído. Com ela empunhada e apontada para mim, disse-me: “ Podia ter-me dito a verdade desde o princípio, que eu não me negava. Agora, brincar com a minha boa fé e gozar com a minha integridade, nunca!” Antes que carregasse no gatilho e aproveitando um breve momento em que limpava o suor da sua testa, eu saí pela janela e estivemos meia dúzia de anos sem nos falarmos. O homem tinha carradas de razão!

Entretanto, gratos pela atenção que havia dispensado ao ILAK, fui convidado para lanchar na casa dos músicos seus proprietários, onde acabei por conhecer também a Sr.ª Gertha, uma visita assídua da casa e uma apaixonada incondicional por cães. Bastante curiosa com o tema da conversa, ela decidiu ir ao quintal conhecer o cão. Ainda dentro de casa e reparando nele através da vidraça da porta da cozinha, disse: “Gretchen, o teu cão é enorme e devia ser treinado. Posso ir lá fora ter com ele?” A dona de casa sorriu e respondeu-lhe:” O meu cão já foi treinado e bem. Claro que podes ir lá fora, está à vontade”. Já haviam passado vinte minutos e a Sr.ª Gertha teimava em regressar. “Gertha, o teu chá já deve estar frio! Não te faltará tempo para conviveres com o ILAK. Vem para dentro!” Como ninguém respondeu ao apelo da dona casa, decidi ir procurar a senhora em falta. Ao chegar ao jardim, deparei-me com uma imagem insólita: a pobre da Gertha estava debaixo de um limoeiro, presa pela garganta, com os dentes do ILAK a segurá-la! O bicho rosnava e ela não se mexia. Depois de liberta, soltou: “Que rico cão, deixas-me levá-lo ao treino?” Os donos da casa olharam um para o outro e disseram-lhe que sim. Temendo por danos maiores ou pela ocorrência de qualquer disparate, combinei com aquela senhora que a acompanharia no primeiro dia ao treino.

Poucos dias depois, deslocámo-nos ao campo de treino. A Sr.ª Gertha saiu com o cão e eu fiquei dentro do seu BMW amarelo de duas portas, de atalaia, não fosse algo acontecer. Mal tinham passado o portão do recinto e sentindo a proximidade dos outros cães, o ILAK soltou um uivo tremendo e metálico. Os condutores dos outros cães viram-se a braços com o susto provocado nos seus animais, parecia que um tornado ali havia passado e levado tudo à sua volta. O Sr. Ferdinand, o director daquela escola, estarrecido e espavorido, gritou: “ Ò Gertha, tira imediatamente esse cão daqui!” A boa da senhora sentiu-se descriminada e lá respondeu: “ Tiro o cão porquê? Eu sou sócia da escola!” Possesso, o treinador retorquiu-lhe: “Mas não é o cão! Ponham-se os dois lá fora!” Até hoje, porque me viu dentro do carro, o Sr. Ferdinand jura que o sucedido foi obra minha, uma manobra para o comprometer e desacreditar. Contrariada, a Sr.ª Gertha nunca mais saiu com o ILAK, apesar de muitas vezes o ir visitar a sua casa e brincar com ele no jardim. E como a vida não pára, o cão-lobo morreu de velho no princípio do século, o Sr. Franz, agora viúvo, vive no estrangeiro com o filho, o casal de músicos separou-se e só agora o meu irmão tomou conhecimento de todos os factos. Esta é a história do ILAK, o cão-lobo, uma história verídica que poderia ter um final diferente, um relato da minha maldade que apresento como um pedido de desculpas. Queira Deus que o meu irmão me perdoe, se fosse ao contrário, eu não sei se lhe perdoaria. Resta-me a esperança de ele ser melhor do que eu. Sosseguem os mais exaltados ou medrosos, porque o comportamento do ILAK é atípico dentro dos híbridos de lobo, porque na sua maioria eles não evidenciam tais características, sendo ao invés medrosos e desconfiados, naturalmente avessos à formação de equipa, porque a sua carga instintiva fala mais alto e obsta ao seu aproveitamento. Apesar de tudo, tenho saudades do ILAK, ainda sonho com ele, vejo-o todas as noites a correr na floresta antes de dormir.

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