quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Caderno de ensino: XXIX. Tirar o medo aos tiros ou preparar o cão para os disparos?

O treino contra os disparos, vulgarmente mal entendido como “tirar o medo aos tiros”, deve preparar o cão para 3 acções indispensáveis ao seu uso e sobrevivência: a defesa (ocultação), o contra-ataque (progressão dissimulada) e o desarme. A familiarização a operar não deverá suprimir o medo do animal, mas alertá-lo para o perigo (que é real), e suscitar-lhe a resposta adequada. Os que foram combatentes sabem, por experiência própria, que foi o medo que os manteve vivos e que muitos valentes morreram, ingloriamente, por falta de cuidado. O condicionamento desejável acontecerá pelo contributo da memória afectiva canina, porque nela o cão armazena experiências felizes e aterradoras mal aconteça a sua apresentação, o que torna o medo instintivo num subsídio inestimável, quando bem aproveitado.

A familiarização com os disparos é por si mesmo estéril, porque apenas produz habituação e não sugere resposta (não alerta o animal e nem opera a sua salvaguarda), muito embora seja necessária e essencial pràs acções procuradas. Com maior ou menor medo todos os cães a alcançarão e com mais ou menos trabalho todos eles virão a apossar-se das reacções desejadas, dependendo isso dos indivíduos a instruir e dos métodos a utilizar. Subsistem vários métodos e todos eles mais eficazes do que prender um cão a uma oliveira e depois descarregar uma dúzia de tiros à sua volta. Os cães sujeitos ao boliço das cidades, particularmente os instalados junto a bairros problemáticos, virão a suportar melhor os tiros do que aqueles que nunca os ouviram e que virão a ser surpreendidos pelo ribombar das caçadeiras, independentemente do seu perfil psicológico. Há quem use música clássica nos canis e que se valha de marchas do tipo Radetzky-March ou Ich hatt’einen Kameraden. Indo para além do gosto de cada um e dos meios ao seu alcance, a familiarização terá que acontecer, evoluindo-se de longe para perto e da presença do dono para a sua ausência. A familiarização tem sido responsável pela aprovação de muitos cães nos testes de carácter, mesmo daqueles que geneticamente nele são deficitários, demonstrando dessa forma a falibilidade dos testes e a supremacia ambiental que premeia o esforço humano em detrimento da qualidade canina, mercê da ocorrência que anuncia o prémio prós animais.

Se houver que tirar o medo aos tiros, primeiro há que suprimi-lo da cabeça dos donos, convidando-os para manobras binomiais perante a sua ocorrência, serenando dessa forma os cães (o que raramente é visível) e reforçando as suas acções, tornando os disparos parte do habitat e próprio daquele ecossistema. Uma aula de obstáculos pode ser acompanhada de disparos, porque a novidade remete-se aos tiros e os automatismos direccionais serão soberanos, graças à sua instalação e à presença dos condutores. Treinar debaixo de foguetes pode constituir-se numa excelente ocasião, assim como junto a um campo de tiro, a uma oficina de latoeiro ou ao redor de uma estação de troca de pneus. É contraproducente iniciar estes trabalhos pelos automatismos de imobilização e de todo conveniente encetá-los pelos direccionais, para evitar o abuso do travamento e alcançar uma parceria mais dividida e descontraída. É evidente que os cães rijos desnecessitarão disto e os cachorros criados desde o aleitamento debaixo de disparos também, porque a riqueza de personalidade nos cães tende a esconder algumas mazelas presentes no seu carácter, nomeadamente as acções instintivas que obstam à sua mais-valia.

Caso, debaixo de fogo, os cães consigam desempenhar cabalmente os exercícios e trajectos de ginástica, a aceitação dos disparos transitará naturalmente para os automatismos de imobilização, sem os contratempos fornecidos pelo excessivo travamento, motivados pelo stress e pelo isolamento forçado. A prática da ginástica debaixo de fogo irá possibilitar ainda toda e qualquer evolução debaixo de tiro real, o que aumentará a operacionalidade canina e reforçará de sobremaneira a liderança, na relação entre os simulacros (treino) e as acções reais, manobras dispensáveis para a esmagadora maioria dos cães quer eles sejam de companhia ou não. É importante relembrar, e há gente que parece esquecer-se disso, que o travamento sucede à acção e não o inverso, persistindo em travar que nem sequer avança. A morosidade deste treino encontrar-se-á ligada à capacidade do líder se fazer compreender e à aceitação canina da liderança, factores interligados com o tipo de parceria havida, porque quando o cão confia no dono jamais o abandonará.

Tirar o medo aos tiros é fácil, difícil é preparar o cão para os disparos ou contra atiradores, considerando a sua ocultação, o ataque dissimulado, a surpresa e o seu sucesso (desarme e domínio do agressor). Tudo no adestramento é progressivo, gradual e ele não dispensa os mais elementares princípios da pedagogia de ensino, comuns a homens e a cães, garante da melhor evolução binomial. Através da brincadeira quase todos os cães perderão o medo aos tiros, outros serão levados à sua aceitação pelo contributo e dum ou mais impulsos herdados e só os cães mais sérios se tornarão verdadeiramente combatentes, recuperando dessa forma o seu estatuto de predadores, condição própria dos cães de guerra. O desarme do agressor não é difícil de se treinar, mas não nos cabe a nós explicá-lo aqui, porque confiamos na justiça instituída, dispensamos a popular e não queremos que nenhum cão morra numa tentativa frustrada. Com a paciência do dono e com a habituação todos os cães acabarão por ignorar os tiros, facto que muitos caçadores ignoram e que tem levado ao abandono de um sem número de cães.

Sem comentários:

Enviar um comentário