segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

MEMÓRIAS DE UM HOTEL IMPLODIDO

Este mau hábito de aturar donos e ensinar cães, para além do incómodo, é também farto em amizades, profícuo em paixões e rico em histórias. As histórias tendem a aumentar com o acumular dos anos e algumas nem podem ser contadas, muito embora a sua esmagadora maioria seja hilariante. Hoje vou contar uma delas, passada há cerca de 15 anos atrás num hotel já implodido em Tróia ou “na Tróia” como dizem os setubalenses.
Na altura estava a gravar em Setúbal alguns episódios da série “Inspector Max” para a TVI, no que contava com a colaboração dos CPA’s “Bibos” e “Jazz”, cães inesquecíveis pela sua generosidade, disponibilidade e talento, qualidades que ao fomentarem a cumplicidade necessária, deram vida àquela exigente personagem de ficção. Apesar de na altura não ter tempo para me coçar, ainda abracei outro pequeno projecto, o de dirigir a prestação de um cão, pretensamente de traficantes, que circulava sobre a popa de um barco perto de um atoleiro. A cena passou-se no Porto Palafítico junto da localidade de Carrasqueira do Mar e o cão escolhido foi o “Afonso”, um híbrido dourado de Chow-Chow com CPA, conhecido na altura como “cão-relógio” pelo seu acerto em tudo o que fazia.
Como as filmagens se iniciavam bem perto do romper da aurora, para eliminar a possibilidade de atrasos, a produção entendeu hospedar-nos num hotel em Tróia para chegarmos atempadamente ao local das gravações. Pernoitei no pequeno quarto do hotel durante dois dias com o cão e o motorista dos cães, um amigo de setenta e muitos, grande e anafado, um bom garfo, de bem com a vida e rico nas mais variadas experiências, portador de uns grandes olhos azuis, com uma barriga substancialmente maior e com um roncar levado dos diabos, ao ponto de se tornar ameaçador durante a noite.
Dormimos em duas camas paralelas com o cão deitado entre elas (estou em crer que o Afonso não pregou olho durante toda a noite). O nosso amigo motorista, para além de ressonar ininterruptamente tal qual ribombar de canhões, ainda era importunado pela hiperplasia prostática benigna (próstata aumentada), achaque o que o levava a urinar várias vezes durante a noite em intervalos regulares.
O bom do Afonso, cão que nunca gostou de levar desaforo para casa e que estava acostumado a dormir em paz na sua boxe, entendeu como ameaça ou provocação o roncar daquele motorista, rosnando-lhe amiúde e tendo-o sempre debaixo de olho. Quando o pobre homem despertava para urinar, coisa que acontecia sensivelmente de duas em duas horas, o cão estava pronto para o comer e o homem depressa se apercebeu disso.
Infelizmente, a coisa acabou por sobrar para mim, porque de duas em duas horas era acordado debaixo do seguinte pedido: “Ò João, agarra lá o cão, que ele está a tirar-me a fotografia e eu preciso de ir à casa de banho!” Na altura não sofria da próstata, mas fiquei logo a saber o quando incómoda pode ser. O trabalho correu sem percalços e todos regressámos a casa ilesos, ainda que o Afonso parecesse insatisfeito por não ter sido fotógrafo naquela ocasião.

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