Este mau hábito de aturar
donos e ensinar cães, para além do incómodo, é também farto em amizades,
profícuo em paixões e rico em histórias. As histórias tendem a aumentar com o
acumular dos anos e algumas nem podem ser contadas, muito embora a sua
esmagadora maioria seja hilariante. Hoje vou contar uma delas, passada há cerca
de 15 anos atrás num hotel já implodido em Tróia ou “na Tróia” como dizem os
setubalenses.
Na altura estava a gravar
em Setúbal alguns episódios da série “Inspector Max” para a TVI, no que contava
com a colaboração dos CPA’s “Bibos” e “Jazz”, cães inesquecíveis pela sua
generosidade, disponibilidade e talento, qualidades que ao fomentarem a
cumplicidade necessária, deram vida àquela exigente personagem de ficção.
Apesar de na altura não ter tempo para me coçar, ainda abracei outro pequeno
projecto, o de dirigir a prestação de um cão, pretensamente de traficantes, que
circulava sobre a popa de um barco perto de um atoleiro. A cena passou-se no
Porto Palafítico junto da localidade de Carrasqueira do Mar e o cão escolhido
foi o “Afonso”, um híbrido dourado de Chow-Chow com CPA, conhecido na altura
como “cão-relógio” pelo seu acerto em tudo o que fazia.
Como as filmagens se
iniciavam bem perto do romper da aurora, para eliminar a possibilidade de
atrasos, a produção entendeu hospedar-nos num hotel em Tróia para chegarmos
atempadamente ao local das gravações. Pernoitei no pequeno quarto do hotel durante
dois dias com o cão e o motorista dos cães, um amigo de setenta e muitos,
grande e anafado, um bom garfo, de bem com a vida e rico nas mais variadas
experiências, portador de uns grandes olhos azuis, com uma barriga
substancialmente maior e com um roncar levado dos diabos, ao ponto de se tornar
ameaçador durante a noite.
Dormimos em duas camas
paralelas com o cão deitado entre elas (estou em crer que o Afonso não pregou
olho durante toda a noite). O nosso amigo motorista, para além de ressonar
ininterruptamente tal qual ribombar de canhões, ainda era importunado pela hiperplasia
prostática benigna (próstata aumentada), achaque o que o levava a urinar várias
vezes durante a noite em intervalos regulares.
O bom do Afonso, cão que
nunca gostou de levar desaforo para casa e que estava acostumado a dormir em
paz na sua boxe, entendeu como ameaça ou provocação o roncar daquele motorista,
rosnando-lhe amiúde e tendo-o sempre debaixo de olho. Quando o pobre homem despertava
para urinar, coisa que acontecia sensivelmente de duas em duas horas, o cão
estava pronto para o comer e o homem depressa se apercebeu disso.
Infelizmente, a coisa
acabou por sobrar para mim, porque de duas em duas horas era acordado debaixo
do seguinte pedido: “Ò João, agarra lá o cão, que ele está a tirar-me a
fotografia e eu preciso de ir à casa de banho!” Na altura não sofria da
próstata, mas fiquei logo a saber o quando incómoda pode ser. O trabalho correu
sem percalços e todos regressámos a casa ilesos, ainda que o Afonso parecesse
insatisfeito por não ter sido fotógrafo naquela ocasião.
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