Apesar dos milhares de anos que leva domesticado, o cão continua um predador, a desenvolver estratégias que sirvam os seus intentos e que melhor enganem os seus donos. Os cães domésticos são peritos na arte de chantagear, porque têm vontade própria, mesmo sendo dependentes. Sem grande dificuldade, conseguem chantagear emocionalmente os donos, apelando despudoradamente aos seus sentimentos e adquirindo posturas que os sensibilizam, quando surpresos na desobediência ou quando intentam desobedecer, exactamente como fariam diante dum chefe de matilha (macho-alfa), como sinal de submissão, não se coibindo de gemer quando desejam algo ou de pedir festas aos donos para o alcançar. Os mais mimados são os que mais chantageiam, porque conhecem o âmago dos seus mestres e os limites da sua resistência, podendo apresentar-se tristes, afastar-se e amuar, tirando ainda proveito dum mimetismo indutor à compaixão (abatimento das orelhas, cauda debaixo do corpo, tremuras, barriga deitada para cima, transporte dum objecto, pedido de colo, etc.), criando à nossa volta um ambiente de mal-estar, que nos levará à cedência, exactamente como faria um filho interesseiro, futuramente mal-educado, incontrolável e carenciado de mais ajuda.
Nos cães destinados ao trabalho, ao contrário do que se esperaria, sobressai um grande número de velhacos, cuja manha se anicha na insegurança emocional dos seus condutores, atrapalhados entre o uso da razão e o apelo emocional. É importante relembrar que a manha não tem uma origem genética, mas sim ambiental, o que transfere para os líderes a responsabilidade do fenómeno, ainda que dois cães de idêntico perfil psicológico recorram às mesmas artimanhas. Como a manha é reactiva, surgindo como resposta à impropriedade da liderança, não sendo contrariada, tende a aumentar e a comprometer a obediência no seu todo, o que infelizmente, para cúmulo das nossas penas, levará ao reparo dos condutores, correcção raramente bem aceite e por vezes até aparentemente desnecessária, porque os homens resistem à mudança e muitos deles dificilmente sairão da fossa entre o “querer” e o “fazer”. Porém, o respeito pelos cães não nos deixa outra opção. Um cão assim manhoso, para além de colocar a máscara de “carneiro mal morto”, começa por perder velocidade e a demorar no cumprimento das ordens, na ânsia de receber algum alento para depois voltar a desobedecer. E quando isto se repete amiúde, o seu conserto torna-se quase impossível. Por via disto, persistirá no erro, continuará a chantagear, a aproveitar qualquer distracção, a pôr-se em fuga quando menos se espera, a atacar quem não deve, a comprometer o seu uso e a atrasar a sua autonomia.
A artimanha canina eclode poucos dias depois dum cachorro entrar pelo nosso lar adentro, quando começa a conhecer os cantos à casa e as pessoas que nela habitam. Breve irá aprender a fugir, a desobedecer-nos, a resistir às regras, e a aproveitar as dissensões, para depois intentar pôr todos ao seu serviço, o que não é difícil atendendo à sua fragilidade e ao carinho que desperta. Assim como todos cachorros precisam de ser mimados para se sentirem seguros e desejados, em simultâneo, porque as suas tropelias tendem a agravar-se e a torná-los manhosos e incontroláveis, convém ensinar-lhes regras de higiene e convivência, dando assim início à sua coabitação harmoniosa connosco.
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