quinta-feira, 22 de abril de 2010

Dites-moi porquoi

Optámos pelo título em francês por 3 razões: primeiro para homenagear Jean de La Fontaine (o mestre das fábulas), depois porque o Eduardo Santos está em França com os seus cães (um grande amigo) e finalmente porque a frase em português é por demais acutilante (diz-me porquê), pois não queremos ferir susceptibilidades, tão-somente alertar. Pôr os cães a falar é impossível, muito embora, depois de árduo trabalho, um reduzidíssimo número deles venha a silabar precariamente. Apesar disso, os seus desejos são facilmente perceptíveis e elementares, todos os entendem e muitos fazem-lhes ouvidos de mercador. Optámos por dar voz aos cães, tendo o cuidado de não enveredar pela tendência antropomórfica, coisa natural em nós que os tratamos como filhos. Afortunadamente eles não fazem o balanço das suas vidas, apesar da insatisfação, tristeza e infelicidade a que muitos se encontram votados. Entrando pela ficção adentro, vamos pôr um cão a questionar o seu dono, minutos antes da sua morte. Diz o bicho:

- Vou partir, mas antes gostaria de saber o porquê da minha miserável existência. Ao longo da minha curta permanência aqui nunca passei as férias contigo, fiquei privado da tua presença e entregue a outros que pouco ou nada me diziam, apesar de passar os anos geralmente sozinho, porquê? A maior parte das vezes em que tentei interagir contigo fui ignorado, cheguei a correr atrás da minha cauda para te chamar à atenção, roubei-te pertences, ladrei sem cessar e não me deste ouvidos, porquê? Nos teus momentos de maior euforia arredaste-me da tua presença e convidaste outros para os dividirem contigo, porquê? Apesar de saberes o quanto me agradava passear, porque passei dias infindos sem sair à rua? Aqueles em que me levaste à árvore mais próxima não contam, de pouco me valeram! Porque razão tantas e tantas vezes me vi privado da minha higiene diária, arredado do exercício físico e isento da excursão? E já agora, porque não tive direito a ser cão? Alegrei-te quando estiveste triste, fui o melhor dos confidentes, aguentei a tua cólera e ainda por cima votaste-me ao silêncio. Que mais te poderia ter dado?

Apesar de ter mais dúvidas e antes de ouvir qualquer resposta por parte do dono, o cão expirou. A morte é assim mesmo, não se compadece de dúvidas, mas a de algum, ainda que fictícia, pode dar outro sentido e melhorar a vida de muitos. É isso que esperamos e desejamos.

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