quinta-feira, 15 de abril de 2010

Canis, albardeiros e correeiros

Os homens são por vezes parecidos com os cães, cujo comportamento reflecte a sua experiência anterior, resistindo à mudança pelo incómodo da novidade que obriga à adaptação constante. Para isto arranjou o povo um aforismo: “burro velho não aprende línguas”. Relembrando o jumento, agora em vias de extinção e por isso mesmo pouco visto nestas paragens, usaremos o seu mundo perdido para melhor nos fazermos compreender. No tempo em que os burros enfileiravam pelas charnecas, muitos eram os albardeiros e em cada feira sempre se viam três ou quatro. Diz-se de albardeiro aquele que fabrica albardas; albarda é um substantivo de origem árabe, apropriado pelo português e que designa um tipo de arreio, feito de palha e próprio para as bestas de carga. Com o marchar do tempo os burros entraram em desuso e os albardeiros perderam o seu ganha-pão. Somente um pequeno grupo deles conseguiu avançar pela correaria e transitar do encher da palha para o esmero do couro, alcançando assim outro leque de clientes. A maioria, incapaz de se adaptar, morreu com o ofício, sem fregueses, amargurada e de barriga vazia.

Nesta semana fomos motivo de chalaça, quando aconselhámos a alguém a colocação de um painel de azulejos num canil recém edificado, num muro lateral e defronte para a entrada da moradia que o alberga, a bem da estética, de acordo com a arquitectura adjacente e segundo as tradições do lugar, hoje descaracterizado, abastardado com construções “a metro” e agredido com cores anti-ambientais. O branco e o azul, cores tradicionais da região saloia (branco nas paredes e muros, azul nas barras e ombreiras), remanescente do seu passado árabe e que trouxe também os azulejos, estão a ser escoiceados por cores que lembram a savana subsariana, de acordo com a moda e com os caprichos dos seus proprietários, menosprezando o parecer dos arquitectos e engordando quem lhes faz o gosto: albardeiros do desenho e gente tradicionalmente desenrascada, arredada de qualquer escola e devoradora de catálogos. Aconselhámos os azulejos, diga-se timidamente e respeitando a soberania dos proprietários em tal matéria, porque para além da mais-valia estética, possibilitam uma limpeza mais fácil, rápida e eficaz num clima sobejamente húmido e que provoca o aparecimento sistemático de fungos, lodo, musgo e verdete, ecossistemas optimizados para a giárdia.

E porque o assunto se reporta a canis, lembramos aqui a exclamação doutro proprietário acerca dum que mandou fazer recentemente, segundo o nosso parecer: “ Qual canil? Aquilo é um hotel, um palácio! ”. Apraz-nos perguntar: E não era para ser? Bem sabemos que ainda recentemente os cães dormiam dentro de bidões e comiam os restos da comida, que a melhoria dos seus alojamentos, intimamente ligada à melhor qualidade de vida, tem acontecido lentamente e por vezes com alguns recuos. Por causa disso, os nossos conselhos relativos aos canis pressupõem o mínimo indispensável, considerando a abertura cultural e a disponibilidade financeira dos seus proprietários, fazendo jus ao provérbio que diz: “albarda-se o burro à vontade dono”.

Adiantamos que as paredes internas de canil deverão ser subdivididas em duas partes: uma de madeira e outra de azulejos. A de madeira, com cerca de 1 metro de altura, de madeira tratada e envernizada, parte do chão e garante simultaneamente o isolamento térmico e a comodidade do animal. Daí para cima e até ao tecto, as paredes devem ser revestidas a azulejos. Quando a antecâmara do canil é demasiado escura, aconselha-se a colocação de algumas telhas transparentes. Os tectos deverão ser isolados por forro térmico e a frente dos canis deverá ter uma barreira de arbustos ou sebe de altura igual à do cão e com o mesmo comprimento do habitáculo, o que lhe possibilita dormir descansado sem ser observado e a surpresa da sua presença. A escolha dos arbustos deve considerar a sua toxidade para o animal e as suas propriedades insecticidas. Na antecâmara o estrado é obrigatório e os bebedouros e comedouros devem distanciar entre si de 50 cm (no mínimo). As condições que aqui adiantámos consideraram o nosso particular climático: temperado marítimo.

Nunca aconselhámos o aquecimento dos canis, muito embora já existam por aí alguns com esse particular, porque as raças caninas que nos são confiadas dispensam esse cuidado pela sua rusticidade. No entanto, sempre reclamamos pela electrificação dos canis e nunca aconselhamos uma área inferior aos 10 m2, sempre que tal seja possível. Como amigos do ambiente e apostados na melhoria global, defendemos o fornecimento de electricidade autónomo pelas energias alternativas (solar, eólica ou outra ao dispor). Como já tratámos deste assunto em artigos anteriores, aconselhamos a sua consulta. Já sabemos que este mundo não é perfeito, que o aumento dos proventos nem sempre traz a cultura inerente ao status, porque o homem continua o mesmo, agarrado às berças que o viram nascer e sujeito aos percalços da sua formação. Daqui apelamos à curiosidade que leva ao querer compreender, ao abandono das albardas e à opção pelo progresso, que passa também pelo tratamento dos nossos cães, facto que a nossa herança cultural semita (moura e judia) teima em desconsiderar.

Sem comentários:

Enviar um comentário