Enganam-se aqueles que pensam ser a cinotecnia um mundo à parte, distante da filosofia, pedagogia e políticas vigentes, vendo nela um oásis liberto das influências exteriores, um espaço imaculado, lúdico e onde cada um se pode esconder, isolar ou espraiar a seu belo prazer, tendo o seu cão por companhia. O número e a diversidade das escolas civis isso contraria, muito embora, mais cedo que se julga, tendam à homogeneidade pela soberania das regras impostas pela sociedade (oxalá se opte por bons critérios e não pela média baixa, coisa que sinceramente suspeitamos). As diferentes metodologias usadas no adestramento canino sempre reflectiram o viver social humano, os seus princípios, valores, prioridades, preocupações e anseios, tornando-as submissas ao peso da sociedade e dependentes do avanço científico, factores determinantes na escolha dos métodos. A passagem de Gerasbach para Lorenz (cinólogos renomeados) aconteceu quase sem darmos por isso e até alguns pensamentos de Nietzsche se fizeram presentes na canicultura, para já não falarmos em Illya Ivanovich Ivanov e tantos outros menos conhecidos. Agora estão na berra os etólogos e cinólogos americanos, o que facilmente se compreende.
Reconhecendo a dependência dos métodos relativa ao tempo histórico e ao avanço científico, não descorando as vertentes antropológicas e sociológicas, facilmente descobrimos a sua filosofia e propósitos. Hoje queremos falar-vos sobre o antigo e hoje muito reclamado treino do cão de guarda, sucedâneo do treino do cão de guerra, sempre evocado quando a crise se instala e a instabilidade social aumenta. Para facilitar a sua compreensão importa reconhecer qual a metodologia actual e donde é advinda. A carta dos direitos do animal é obra das sociedades democráticas, apostadas na abolição do especicismo e onde o cidadão não é um inimigo a abater mas um amigo a pôr na ordem. Por causa disso, os cães são hoje ensinados com base na recompensa e a partir da brincadeira, abraçam novas especialidades de acordo com as necessidades e novas raças são recrutadas. Esta é a realidade vigente no mundo ocidental, não é absoluta e muito menos global, porque noutras latitudes e hemisférios o panorama é bem diverso.
O cão sai da II Guerra Mundial como militar (cão de guerra) e irá permanecer assim até ao final dos conflitos coloniais, transformando-se mais tarde em cão polícia (Cães de Pastor Alemão). Em Portugal os pára-quedistas foram o primeiro corpo militar a utilizá-lo como tal e a GNR prontamente lhe seguiu o rasto (1957/1958). As prestações fora de horas e para além da porta d’armas de alguns tratadores militares e polícias, apostados no ganho suplementar de alguns cobres, ao treinarem cães civis, lançaram até hoje a confusão entre aquilo que é um cão de guerra e um cão de guarda, apesar dalguns pressupostos de ensino e procedimentos pedagógicos serem ao tempo comuns ou similares, considerando o concurso da coerção, da persuasão e da própria natureza dos agentes de ensino. Hoje, dizem-nos, que já ninguém treina assim, o que nos parece óptimo atendendo ao bem-estar canino. Queremos aqui destacar o trabalho notável do então Capitão Colares Rodrigues da GNR, apesar de ninguém nos incumbir a tarefa, já que a ingratidão leva ao esquecimento, apesar de haver outros, oriundos doutras tropas e de quem oportunamente falaremos, quando tal se justificar.
O que não se entende é porque raio querem os civis ter cães de guerra! Será que os marginais cães de luta já não serão mal que baste? Será a nossa sociedade fratricida e a haverá a necessidade de andarmos a “jogar ao pau com os ursos”? Bem sabemos que o homem continua inalterável na sua essência, entregue às suas paixões, vaidades e devaneios, mas não aprenderá com os seus erros e não dará valor à paz? O cão de guerra é um soldado, um combatente, alguém que mata para não ser morto e que sobrevive pelo medo e pela disciplina (furcht und disziplin), que progride em constante alerta e que está sempre pronto a disparar (a arremeter-se). Agora que o actor Raul Solnado morreu, será que precisamos doutro para reinventar “a ida à guerra”? Seguindo o raciocínio, temos alguma dificuldade em compreender o aumento do poder de fogo da segurança privada, estamos cientes dos riscos que ela corre e dos perigos a que se sujeita, mas privatizar por privatizar, mais vale privatizar o governo do que a polícia, porque com dificuldade a sustenta, coloca escassos meios ao seu dispor e pouco faz pelo seu prestígio, muito embora essa não seja a única forma de combater o crime. Se assim fosse, mal estaríamos!
A selecção do cão de guerra, como não podia deixar de ser, acontecia sobre os cães muito dominantes e recaía sobre os mais aptos e apetrechados. O seu treino era mecânico, levado a sério e exigente, farto em simulacros, nada dado a brincadeiras, tudo tinha um propósito e a prestação do serviço era soberana, não fossem os cães militares e o treino por definição rigor. Esse era o tempo das “pistas de fogo”. A escassez de criadores nacionais e a fraca qualidade do seu produto, que ainda hoje se mantém, obrigava a deslocações esporádicas ao estrangeiro, onde a escolha era possível e qualidade aceitável. A sociedade mudou, os critérios selectivos são outros, os criadores não são os mesmos e outras raças chegam à ribalta.
O cão de guerra era treinado para não ser surpreendido, vivia debaixo da suspeição que o inimigo o espreitava, a indução operada levava-o para outra realidade e acabava por sofrer de stress pós-traumático, o que dificultava a sua integração social quando incapacitado, velho ou dispensado do serviço. Alguns deles acabaram os seus dias no lar dos seus tratadores, outros aprisionados às correntes e alguns foram simplesmente eliminados. A transformação de militar para polícia, forçada pelas novas formas de fazer a guerra e pela novidade do serviço, pelo reconhecimento dos direitos do animal, pelo fim dos conflitos e pela alteração dos modelos sociais, acabou por suavizar o trabalho até então destinado aos cães. A dependência canina relativa ao homem acabou por sujeitá-los aos distintos modelos sociais e seus objectivos, obrigando-os às adaptações inerentes aos períodos históricos que atravessaram. Já o dissemos e voltamos a dizer: se o homem foi o animal que mais evolui, o cão foi certamente quem melhor o acompanhou.
O actual cão de guarda destinado aos civis é geralmente oriundo das fileiras da guarda desportiva, onde é adestrado segundo os seus critérios e transformado em “cão de patrulha”, o que de certa maneira lhe pode ser fatal, atendendo à frequência das provas e a exposição pública do seu “ modus operandi”. As ênfases passam hoje pela presença ostensiva e pelas vozes de aviso e ameaça (ladrar e rosnar), muito embora a captura continue a ser amplamente exercitada face a circunstâncias extraordinárias (ataques ordenados). O épico cão de guerra, letal, muito dominante, de progressão dissimulada, ansioso pelo inimigo e extremamente disciplinado é hoje uma espécie em vias de extinção, entrará em breve nos museus evocativos das batalhas do passado e permanecerá para sempre na cabeça daqueles que dividiram as trincheiras com ele. Se souberem onde ainda se encontra um em actividade, digam-nos por favor, porque por ali jamais passaremos. A procura da surpresa e o medo de ser surpreendido, quando associados à selecção genética, ao treino rigoroso e à supremacia da ordem, transformaram o cão doméstico num soldado e levaram-no para guerra. Ao fim de tantos milénios decidimos estender também a paz aos cães, devolvendo-lhes aquilo que são: uns companheiros de eleição. Se a eles coubesse a decisão, já há muito teriam rasgado as fardas, sacudido os enforcadores e abandonado as companhias. E como poderemos recompensar aqueles que morreram no troar da batalha, com o Céu que não podemos oferecer-lhes?