terça-feira, 27 de abril de 2010

Medo e disciplina: A opção pelos dominantes

Enganam-se aqueles que pensam ser a cinotecnia um mundo à parte, distante da filosofia, pedagogia e políticas vigentes, vendo nela um oásis liberto das influências exteriores, um espaço imaculado, lúdico e onde cada um se pode esconder, isolar ou espraiar a seu belo prazer, tendo o seu cão por companhia. O número e a diversidade das escolas civis isso contraria, muito embora, mais cedo que se julga, tendam à homogeneidade pela soberania das regras impostas pela sociedade (oxalá se opte por bons critérios e não pela média baixa, coisa que sinceramente suspeitamos). As diferentes metodologias usadas no adestramento canino sempre reflectiram o viver social humano, os seus princípios, valores, prioridades, preocupações e anseios, tornando-as submissas ao peso da sociedade e dependentes do avanço científico, factores determinantes na escolha dos métodos. A passagem de Gerasbach para Lorenz (cinólogos renomeados) aconteceu quase sem darmos por isso e até alguns pensamentos de Nietzsche se fizeram presentes na canicultura, para já não falarmos em Illya Ivanovich Ivanov e tantos outros menos conhecidos. Agora estão na berra os etólogos e cinólogos americanos, o que facilmente se compreende.

Reconhecendo a dependência dos métodos relativa ao tempo histórico e ao avanço científico, não descorando as vertentes antropológicas e sociológicas, facilmente descobrimos a sua filosofia e propósitos. Hoje queremos falar-vos sobre o antigo e hoje muito reclamado treino do cão de guarda, sucedâneo do treino do cão de guerra, sempre evocado quando a crise se instala e a instabilidade social aumenta. Para facilitar a sua compreensão importa reconhecer qual a metodologia actual e donde é advinda. A carta dos direitos do animal é obra das sociedades democráticas, apostadas na abolição do especicismo e onde o cidadão não é um inimigo a abater mas um amigo a pôr na ordem. Por causa disso, os cães são hoje ensinados com base na recompensa e a partir da brincadeira, abraçam novas especialidades de acordo com as necessidades e novas raças são recrutadas. Esta é a realidade vigente no mundo ocidental, não é absoluta e muito menos global, porque noutras latitudes e hemisférios o panorama é bem diverso.

O cão sai da II Guerra Mundial como militar (cão de guerra) e irá permanecer assim até ao final dos conflitos coloniais, transformando-se mais tarde em cão polícia (Cães de Pastor Alemão). Em Portugal os pára-quedistas foram o primeiro corpo militar a utilizá-lo como tal e a GNR prontamente lhe seguiu o rasto (1957/1958). As prestações fora de horas e para além da porta d’armas de alguns tratadores militares e polícias, apostados no ganho suplementar de alguns cobres, ao treinarem cães civis, lançaram até hoje a confusão entre aquilo que é um cão de guerra e um cão de guarda, apesar dalguns pressupostos de ensino e procedimentos pedagógicos serem ao tempo comuns ou similares, considerando o concurso da coerção, da persuasão e da própria natureza dos agentes de ensino. Hoje, dizem-nos, que já ninguém treina assim, o que nos parece óptimo atendendo ao bem-estar canino. Queremos aqui destacar o trabalho notável do então Capitão Colares Rodrigues da GNR, apesar de ninguém nos incumbir a tarefa, já que a ingratidão leva ao esquecimento, apesar de haver outros, oriundos doutras tropas e de quem oportunamente falaremos, quando tal se justificar.

O que não se entende é porque raio querem os civis ter cães de guerra! Será que os marginais cães de luta já não serão mal que baste? Será a nossa sociedade fratricida e a haverá a necessidade de andarmos a “jogar ao pau com os ursos”? Bem sabemos que o homem continua inalterável na sua essência, entregue às suas paixões, vaidades e devaneios, mas não aprenderá com os seus erros e não dará valor à paz? O cão de guerra é um soldado, um combatente, alguém que mata para não ser morto e que sobrevive pelo medo e pela disciplina (furcht und disziplin), que progride em constante alerta e que está sempre pronto a disparar (a arremeter-se). Agora que o actor Raul Solnado morreu, será que precisamos doutro para reinventar “a ida à guerra”? Seguindo o raciocínio, temos alguma dificuldade em compreender o aumento do poder de fogo da segurança privada, estamos cientes dos riscos que ela corre e dos perigos a que se sujeita, mas privatizar por privatizar, mais vale privatizar o governo do que a polícia, porque com dificuldade a sustenta, coloca escassos meios ao seu dispor e pouco faz pelo seu prestígio, muito embora essa não seja a única forma de combater o crime. Se assim fosse, mal estaríamos!

A selecção do cão de guerra, como não podia deixar de ser, acontecia sobre os cães muito dominantes e recaía sobre os mais aptos e apetrechados. O seu treino era mecânico, levado a sério e exigente, farto em simulacros, nada dado a brincadeiras, tudo tinha um propósito e a prestação do serviço era soberana, não fossem os cães militares e o treino por definição rigor. Esse era o tempo das “pistas de fogo”. A escassez de criadores nacionais e a fraca qualidade do seu produto, que ainda hoje se mantém, obrigava a deslocações esporádicas ao estrangeiro, onde a escolha era possível e qualidade aceitável. A sociedade mudou, os critérios selectivos são outros, os criadores não são os mesmos e outras raças chegam à ribalta.

O cão de guerra era treinado para não ser surpreendido, vivia debaixo da suspeição que o inimigo o espreitava, a indução operada levava-o para outra realidade e acabava por sofrer de stress pós-traumático, o que dificultava a sua integração social quando incapacitado, velho ou dispensado do serviço. Alguns deles acabaram os seus dias no lar dos seus tratadores, outros aprisionados às correntes e alguns foram simplesmente eliminados. A transformação de militar para polícia, forçada pelas novas formas de fazer a guerra e pela novidade do serviço, pelo reconhecimento dos direitos do animal, pelo fim dos conflitos e pela alteração dos modelos sociais, acabou por suavizar o trabalho até então destinado aos cães. A dependência canina relativa ao homem acabou por sujeitá-los aos distintos modelos sociais e seus objectivos, obrigando-os às adaptações inerentes aos períodos históricos que atravessaram. Já o dissemos e voltamos a dizer: se o homem foi o animal que mais evolui, o cão foi certamente quem melhor o acompanhou.

O actual cão de guarda destinado aos civis é geralmente oriundo das fileiras da guarda desportiva, onde é adestrado segundo os seus critérios e transformado em “cão de patrulha”, o que de certa maneira lhe pode ser fatal, atendendo à frequência das provas e a exposição pública do seu “ modus operandi”. As ênfases passam hoje pela presença ostensiva e pelas vozes de aviso e ameaça (ladrar e rosnar), muito embora a captura continue a ser amplamente exercitada face a circunstâncias extraordinárias (ataques ordenados). O épico cão de guerra, letal, muito dominante, de progressão dissimulada, ansioso pelo inimigo e extremamente disciplinado é hoje uma espécie em vias de extinção, entrará em breve nos museus evocativos das batalhas do passado e permanecerá para sempre na cabeça daqueles que dividiram as trincheiras com ele. Se souberem onde ainda se encontra um em actividade, digam-nos por favor, porque por ali jamais passaremos. A procura da surpresa e o medo de ser surpreendido, quando associados à selecção genética, ao treino rigoroso e à supremacia da ordem, transformaram o cão doméstico num soldado e levaram-no para guerra. Ao fim de tantos milénios decidimos estender também a paz aos cães, devolvendo-lhes aquilo que são: uns companheiros de eleição. Se a eles coubesse a decisão, já há muito teriam rasgado as fardas, sacudido os enforcadores e abandonado as companhias. E como poderemos recompensar aqueles que morreram no troar da batalha, com o Céu que não podemos oferecer-lhes?

Morangos e juízos

Um engenheiro agrónomo duma direcção regional da agricultura, no âmbito das suas funções, decidiu visitar um fruticultor que se dedicava também à produção de morangos. Ao chegar ao local da exploração, surpreendeu o agricultor a sulfatar aqueles frutos rosáceos com um pesticida de largo espectro e duração. Depois de breve conversa, apercebeu-se que o homem era simples, de pouca instrução e que ignorava os cuidados a haver com o pesticida utilizado, que ao não serem respeitados, poderiam colocar em risco a saúde dos futuros consumidores. Como lhe competia, para além de lhe ter adiantado alguns subsídios para o aumento da produção, o engenheiro explicou-lhe quais os procedimentos correctos, alertando-o que a colheita só deveria acontecer nove dias depois da aplicação daquele pesticida. Contente com as explicações e não querendo passar por ingrato, o fruticultor foi de imediato colher um pequeno cesto de morangos, que entregou de imediato ao engenheiro, dizendo: “ São para si, pode comer à vontade, mais frescos do que estes não há!”.

Esta história verídica, que nos foi contada há poucos anos, remete-nos para os procedimentos exigíveis aos condutores pela salvaguarda dos seus cães, geralmente pouco observados, esquecidos ou ignorados, também para a fraca aplicação dos conteúdos de ensino, muitas vezes submersos no fosso que separa o conceito da prática e que reclamam pela recapitulação doméstica (estudo e exercício). O momento e a circunstância são factores a considerar diante de qualquer investidura ou encargo, na transição do presente para o futuro e nas implicações de um para o outro. Neste momento, parece-nos, os jovens não são ensinados a raciocinar, o que obsta à análise concreta dos seus problemas e retarda a sua solução, o que nos transporta para um verdadeiro desastre de origem ambiental. Por outro lado, considerando as implicações genéticas e culturais adjacentes à geografia da nossa escola (zona saloia), onde a população nativa é assolada pela subjectividade, resiste à erudição e apenas respeita o seu próprio juízo, ouvindo apenas o que julga conveniente e subtraindo tudo para além disso, torna-se muito difícil proceder à mudança de mentalidades e operar as adaptações inerentes ao exercício do adestramento. O momento não é o melhor e as circunstâncias pouco ajudam.

Passemos a alguns exemplos concretos tão caricatos quanto o episódio do cesto dos morangos. É do conhecimento de todos os condutores, como medida preventiva contra os envenenamentos, que os cães devem comer e beber à altura certa (5 cm abaixo da sua altura corporal). Alguns deles, quando participam nas actividades escolares no exterior, nos momentos de descanso e supercompensação, acabam por distribuir a água a escassos 20 cm do chão ou com os bebedouros nele colocados, mesmo a dois passos de uma rocha ou de um banco de jardim (esclarece-se que a classe escolar actual é maioritariamente constituída por cães de Pastor Alemão, invariavelmente acima da tabela). Todos também sabem dos tratamentos semanais preventivos contra as otites e da contribuição da água para o problema. Não obstante chegam a Abril, mês em que treinamos o salvamento dentro de água, sem os terem levado a cabo e depois admiram-se que os cães abanem as orelhas no dia seguinte. Determinado condutor depois de haver desleixado a excursão diária do seu cão, acção inadvertida em que invariavelmente reincide, repara na estreiteza da traseira do animal e diz: “este cão nunca mais engorda!” Será que a gordura pode substituir os músculos e não serão estes sujeitos a maior esforço com o aumento do peso do animal? E para terminarmos com chave d’ouro, reproduzimos aqui a sentença de uma condutora, digna de figurar nos diálogos do filme “Aldeia da Roupa Branca”, fiel testemunho da prosápia e sapiência regionais: “ A gente dê-xó falar, que fale praí à vontade, e depois cá fazemos a nossa conta”. Daqui endereçamos a nossa solidariedade para todos os que leccionam, pois nunca foi fácil ser professor!

E as crianças?

Como é sabido, o adestramento canino é uma opção familiar, independentemente do maior ou menor empenho do seu agregado, porque influi directamente no seu viver social, obriga a adaptações, não acontece sem algumas cedências e acaba por protelar alguns sonhos e desejos. Apostados no bem-estar dos cães e conhecedores da importância ambiental para a sua estabilização e equilíbrio, sempre insistimos na presença da família dos condutores, visando o seu esclarecimento e a constituição de elementos neutros (agentes pedagógicos com atribuições específicas dentro do grupo de adopção), o que aumenta a nossa responsabilidade pela presença das crianças nas aulas, gente miúda que nos acalenta a esperança e que não pode ser ignorada. Por outro lado, já abolimos há muito a regra relativa à idade, aquela que só aceitava condutores dos 13 anos de idade para cima, por força das excepções e de acordo com o nosso propósito pedagógico. Agora a selecção assenta sobre o particular psicomotor e a robustez física de cada infante. Neste momento temos 2 condutores abaixo dos 13 anos (Gonçalo e Rodrigo), muito embora cada sessão de treino possa ser acompanhada por maior ou menor número de crianças, que invariavelmente acompanham os pais nas nossas excursões. E quando não vêm, é o incómodo dos pais que fala mais alto do que o transtorno que nos causam.

A horda infantil, que em boa hora nos cai em braços, mobiliza a escola para o seu acompanhamento através de jogos ou brincadeiras didácticas, tendo em conta o seu grau de desenvolvimento e como complemento às suas tarefas curriculares. Face a essa necessidade e de acordo com os adultos presentes, sempre alguém é incumbido para o ofício, não resultando daí qualquer entrave para as lições. O comum condutor da Acendura Brava, imagem que se vai vulgarizando, sai para a excursão de mochila às costas, de mãos dadas com o filho e com o cão atrelado do lado esquerdo. A presença das crianças é para nós de valor inestimável, porque ao contribuímos para o seu desenvolvimento, elas possibilitam a sociabilização mais célere dos cães escolares e sem percalços. Apesar das nossas classes serem essencialmente constituídas por lupinos, não desejamos dar corpo à história do “Capuchinho Vermelho” e sujeitar as crianças ao tamanho dos seus dentes (as nossas e as alheias). Mais cedo ao mais tarde, elas darão os primeiros passos no adestramento, para garbo dos seus pais e espanto de quem passa. Crianças? – Tudo a favor!

A prática das barreiras

Há que saber distinguir a diferença entre os diversos exercícios de tracção e o convite para as barreiras (elevações ou depressões em plano inclinado, mais ou menos acentuadas), uma vez que os propósitos são diferentes, os objectivos díspares e o esforço animal bem diverso, ainda que a prática das barreiras possa ajudar no canicross (prática desportiva destinada ao cross binomial), quando constituídas em parte de percurso ou como meio de preparação. Dispensando a análise dos propósitos que nos são alheios (os relativos à tracção), vamos aqui explicar os nossos, aqueles que nos levam às barreiras e às suas mais-valias.

O concurso às barreiras, prática sazonal que desenvolvemos por excelência na Primavera e no Verão, prende-se com a fixação de dois automatismos direccionais (“à frente” e “atrás”), com o preparo binomial para situações emergentes, com o reforço da liderança, com o evitar das acções instintivas caninas, com a melhoria dos ritmos vitais dos cães e com o seu apetrechamento físico, muito embora o façamos sistemática e preferencialmente pelo contributo do 2º andamento natural: a marcha, sem o qual jamais nos chegaríamos às barreiras, atendendo ao esforço extra a que obrigam e à necessidade objectiva da obediência. Apesar do nosso cuidado e modo gradativo de agir, sempre surgem algumas cambalhotas inesperadas, quando os donos se desequilibram e os cães ficam estupefactos a observá-los. Esta semana o melhor enrolamento coube à Joana, condutora do Flikke, que dada à paródia foi alvo de uma brincadeira sem consequências.

Por norma, vencemos primeiro as barreiras no sentido ascendente e só depois procedemos à sua descida. Dependendo da idade, robustez, preparo e particular dos cães da classe, assim aceitaremos o ângulo e a extensão da área a subir e a descer, tendo o cuidado prévio de os adaptar numa barreira de fácil transposição e por várias vezes. O desafio proporcionado pelas barreiras só é aceite depois da instalação dos já referidos automatismos direccionais que garantem a sua transposição segura, quer se suba ou se desça. Mais tarde evoluiremos para a escalada e para o uso do arnês, prática destinada aos binómios mais aptos e à voluntariedade dos seus donos. Esta semana (Domingo) iniciámos a sua prática por uma artificial de barro e cascalho, com 50 m de extensão e com uma inclinação de 20%. Nos dias excessivamente quentes e sem brisa marítima dispensamos o concurso das barreiras, assim como naqueles passíveis de favorecer aluimentos ou derrocadas. As escaladas nocturnas, que só acontecem depois da aprovação nas diurnas, ou servem-se da luz lunar ou obrigam a iluminação artificial acessória.

Caderno de Ensino: IX. Os automatismos direccionais

O QUE SÃO OS AUTOMATISMOS DIRECCIONAIS. São comandos que indicam ao cão qual o sentido e a direcção a tomar, assim como o seu modo de progressão.

CATEGORIA E NÚMERO DOS AUTOMATISMOS. Sinteticamente os comandos usados para a codificação de um cão, independentemente da linguagem empregue ou escolhida, são 3: de imobilização, direcção e específicos. Os comandos de imobilização visam a cessação e o aguardar de ordens; os direccionais indicam qual o rumo a tomar e o modo de progressão adequado, os específicos são próprios de cada disciplina cinotécnica, segundo as diferentes especialidades atribuídas aos cães. Todos carecem de ser automáticos, de se transformar em automatismos pelo concurso do condicionamento. Para além destes existem outros, chamados de inibição ou inibitórios, dos quais o “não” faz parte e que só deverão ser usados excepcionalmente, diante do incumprimento das ordens ou diante da ineficácia dos demais. O uso abusivo dos comandos inibitórios tende à descodificação dos restantes e arruína a obediência como um todo. Cada disciplina pode ter comandos inibitórios específicos. Qualquer comando só passa a automatismo quando a sua execução for alcançada em liberdade (com o cão desatrelado).

OS AUTOMATISMOS DIRECCIONAIS QUE ENSINAMOS. Os automatismos direccionais que ensinamos são: “junto”, “de pé”, “em frente”, “troca”, “roda”, “à frente”, “atrás”, “para trás”, “cruza”, “up”, “abaixo”, “acima”, “à direita”, “devagar”, “gira”, escalar, escavar, nadar, rastejar e flanquear. Excepcionalmente ensinamos outros a cães de alta capacidade de aprendizagem, oferta da genética e prémio do excelente concurso ambiental.

DA TRANSIÇÃO DOS AUTOMATISMOS DIRECCIONAIS. Os automatismos direccionais, ao serem o esqueleto das acções caninas, viabilizam o uso dos cães para além do seu uso mais corrente, podendo constituir-se em acções defensivas e ofensivas, de detecção, de resgate e de prestação de socorro, podendo ser imediatas ou previamente condicionadas.

AUTOMATISMOS DIRECCIONAIS E PEDAGOGIA. A maneira mais suave de ensinar um cão passa pelo socorro dos automatismos direccionais, que tornam o treino dinâmico e por isso mesmo mais agradável aos olhos dos cães. A ginástica cinotécnica que os acompanha possibilita o acesso à obediência de forma menos artificial e de acordo com o particular social canino, tornando-a apreensível pela comunhão da experiência. No nosso entender, o adestramento deve começar por aí e jamais pelo fardo dos automatismos de imobilização. A partir da ginástica, os automatismos direccionais instalam-se naturalmente e uma vez aceites possibilitam a absorção natural dos inerentes ao travamento. Como o assunto não se esgota aqui, manifestamos desde já a nossa disponibilidade para maiores esclarecimentos.

Compreender a história e usufruir da serra

Este fim-de-semana fomos para a Serra do Socorro, onde desenvolvemos diferentes automatismos e induções. A classe foi concorrida e o trabalho primou pela eficácia. A prole da Luna provou as suas aptidões e o Master matou saudades. Ainda houve tempo para alguns exercícios de endurance e para a instalação da sociabilização. Ali na Serra do Socorro, onde outrora os ingleses tiveram um posto de transmissões, por ocasião da Guerra Peninsular, ainda nos valemos de uma família numerosa para a sociabilização, gente simpática que anuiu ao nosso pedido e que desfrutou dos exercícios divididos e propostos.

Almoçámos na “Charrua” e rumámos para a Pedra Furada, onde nos entregámos às barreiras e a um conjunto de peripécias. Ensinámos alguns cães a nadar correctamente e adaptámos os donos à novidade do ecossistema. A tradicional valentia das nossas mulheres está de volta, exemplo disso foram as prestações das manas Isabel e Célia. No Domingo permanecemos junto ao Palácio de Queluz, onde num parque adjacente nos dedicámos aos automatismos de imobilização. Por necessidade de descanso do Adestrador não houve turno da tarde. Nada sabemos da Carla Ferreira e ignoramos se a Elisabete caiu pela pia abaixo.

Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: António Cunha/Zorro, Bruno/Pepe, Carla Abreu/Becky, Célia/Igor, Francisco/íris, Gonçalo/Rocky, Isabel Silva/Luna, Joana/Flikke, Joaquim/Maggie, Jorge/Juvat, Luís Leal/Teka I, Pedro Rocha/Menina, Roberto/Turco e Teka II, Rodrigo/Tarkan, Teresa/Buster, Vítor Hugo/Yoshi e Zé Gabriel/Master.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Dites-moi porquoi

Optámos pelo título em francês por 3 razões: primeiro para homenagear Jean de La Fontaine (o mestre das fábulas), depois porque o Eduardo Santos está em França com os seus cães (um grande amigo) e finalmente porque a frase em português é por demais acutilante (diz-me porquê), pois não queremos ferir susceptibilidades, tão-somente alertar. Pôr os cães a falar é impossível, muito embora, depois de árduo trabalho, um reduzidíssimo número deles venha a silabar precariamente. Apesar disso, os seus desejos são facilmente perceptíveis e elementares, todos os entendem e muitos fazem-lhes ouvidos de mercador. Optámos por dar voz aos cães, tendo o cuidado de não enveredar pela tendência antropomórfica, coisa natural em nós que os tratamos como filhos. Afortunadamente eles não fazem o balanço das suas vidas, apesar da insatisfação, tristeza e infelicidade a que muitos se encontram votados. Entrando pela ficção adentro, vamos pôr um cão a questionar o seu dono, minutos antes da sua morte. Diz o bicho:

- Vou partir, mas antes gostaria de saber o porquê da minha miserável existência. Ao longo da minha curta permanência aqui nunca passei as férias contigo, fiquei privado da tua presença e entregue a outros que pouco ou nada me diziam, apesar de passar os anos geralmente sozinho, porquê? A maior parte das vezes em que tentei interagir contigo fui ignorado, cheguei a correr atrás da minha cauda para te chamar à atenção, roubei-te pertences, ladrei sem cessar e não me deste ouvidos, porquê? Nos teus momentos de maior euforia arredaste-me da tua presença e convidaste outros para os dividirem contigo, porquê? Apesar de saberes o quanto me agradava passear, porque passei dias infindos sem sair à rua? Aqueles em que me levaste à árvore mais próxima não contam, de pouco me valeram! Porque razão tantas e tantas vezes me vi privado da minha higiene diária, arredado do exercício físico e isento da excursão? E já agora, porque não tive direito a ser cão? Alegrei-te quando estiveste triste, fui o melhor dos confidentes, aguentei a tua cólera e ainda por cima votaste-me ao silêncio. Que mais te poderia ter dado?

Apesar de ter mais dúvidas e antes de ouvir qualquer resposta por parte do dono, o cão expirou. A morte é assim mesmo, não se compadece de dúvidas, mas a de algum, ainda que fictícia, pode dar outro sentido e melhorar a vida de muitos. É isso que esperamos e desejamos.

A Célia, os mouros e os camelos

Apesar do turbante, não se trata de nenhuma muçulmana à beira da nossa costa, a senhora apanhada é a Célia, mãe do Rodrigo e condutora do CPA Igor, num momento retemperador de energias, muito embora já passasse um episódio curioso com mouros, inerente à sua condição feminina e particular genético, coisa habitual entre certas mulheres portuguesas que optam por visitar o Reino de Marrocos, geralmente assediadas por pretensos consortes exaltados e de ocasião, de difícil descarte, proprietários de camelos e que os usam como moeda de troca. Que descansem as morenas de cabelo escuro e encaracolado (as mais idosas também), porque não serão incomodadas naquelas paragens e poderão transitar ali como na sua própria casa, confundindo-se com as naturais e diferindo apenas na indumentária. Tal não foi o caso da Célia, denunciada pela sua tez alva e adornada por sardas, pelo porte e demais traços fisionómicos, que chamaram à atenção e aumentaram a cobiça de alguns enamorados mouros. E como a mercadoria era do seu agrado, teimosamente instaram, regatearam e não foi nada fácil demovê-los dos seus intentos – um cabo dos trabalhos! Se você é jovem e alta, de pele branca e cabelo louro e ainda por cima tem olhos claros, não circule sozinha por Marrocos, para não transformar a sua visita num autêntico inferno, a menos que se queira despedir da família e a obrigue ao transporte forçado de uma manada de camelos pelo Estreito de Gibraltar adentro! Cuidado com os pinga-amor de turbante.

Adestrar

Não existe adestramento sem trabalho. Adestrar exige amor, diversão, o alcance de uma nova linguagem e um novo modo de agir, para além da sensatez entre aquilo que pedimos e a resposta canina, para que possamos servir de exemplo para os nossos cães, já que condutores realizados e com auto-estima transmitem isso aos seus fiéis companheiros de quatro patas. O acto de adestrar não é uma faceta isolada mas uma decorrência ou complemento do desenvolvimento pessoal e da capacidade de resolução individual. Pondo de parte a paciência de santo necessária, o adestramento exige uma disponibilidade física e anímica monumental, uma dedicação assaz notória e uma tolerância já em desuso. A execução do obstáculo natural, acima efectuada pelo binómio Francisco-Iris, espelha o que acabámos de dizer.

Caderno de Ensino: VIII. O "quieto"

O QUE É O “QUIETO”. O “quieto” é um automatismo de imobilização próprio para a cessação das acções. É um comando que desnecessita do concurso das outras imobilizações e que geralmente as reforça como trinco. Consiste na imobilização automática do cão e é por isso mesmo um subsídio de travamento eficaz. O recurso sistemático ao comando tende a reforçar a liderança e a aumentar a submissão canina.

INSTALAÇÃO DO COMANDO E USO ABUSIVO. Entendemos o “quieto” como uma decorrência do “junto” e só operamos a sua instalação depois de alcançado o tri-comando básico (“alto”, “senta” e “deita”). Instalar o comando desde tenra idade num cachorro é abusivo, porque o travamento induz à inibição e esta tende a fragilizar o carácter. Os cachorros que forem sobrecarregados na obediência em detrimento da ginástica, por força do condicionamento abusivo que obsta à curiosidade, verão a sua capacidade de aprendizagem reduzida e serão por isso mesmo menos propensos a desafios, podendo mais tarde constituir-se em estátuas ou múmias. O uso precoce do travamento dificulta os desejáveis laços afectivos binomiais, inibe a velocidade canina e transforma os cães em simples autómatos, robots sem vida própria e isentos de alegria.

PARA QUE SERVE O “QUIETO”. O “quieto” enquanto subsídio de travamento serve um tríplice objectivo: a salvaguarda do cão, a protecção do dono e a cessação das acções caninas (automáticas ou ordenadas).

COMO FAZER O “QUIETO”. Se entendermos a obediência como um meio para o cão ser recompensado, tanto este comando como todos os outros poderão ser alcançados naturalmente. O “quieto” acontece primeiro ao lado do dono, depois perante o seu afastamento e finalmente na sua ausência, de acordo coma resposta animal que deverá ver premiado o seu esforço. A execução do comando pode não dispensar o uso da trela ou da corda de 6 metros e obrigar ao prender do cão. Como já tratámos este procedimento em artigos anteriores e não nos querendo repetir, aconselhamos a sua leitura aos interessados.

OLHAR AO REDOR E PÔR-SE EM FUGA. O que é natural nos cães saudáveis é a desobediência, porque são competitivos, nascem com impulso ao poder e lutam por chegar mais alto na escala hierárquica. Essa ascensão sempre será suportada pelo impulso à luta quando acompanhado pelos restantes que o alimentam (ao alimento, movimento, defesa e conhecimento). Assim facilmente se compreende como a obediência é uma decorrência da dependência canina e nisto os cães não diferem muito dos homens, porque ambos são seres sociais e em cada um deles persiste um indivíduo. Os cães de maior dominância e os de reconhecida submissão resistirão ao comando, os primeiros por resistência à autoridade e os segundos por se sentirem mais vulneráveis face à separação dos donos. Ambos lançarão mão de vários estrategas para se libertarem da ordem. Um dos mais comuns e a que importa estar atento é o dos cães que invariavelmente viram a cabeça em diferentes direcções quando imobilizados, lançando-se em fuga logo após isso, coisa interdita e que deve de imediato ser combatida. A solução virá da fixação exclusiva na pessoa do dono, alcançável tanto pela dependência como pelo reforço da autoridade (certeza da recompensa ou recurso a comando inibitório).

A RELAÇÃO DO “QUIETO” COM A SOCIABILIZAÇÃO. É loucura proceder a qualquer sociabilização sem a certeza de um ou mais comandos de travamento (imobilização), até porque os cães fogem dos donos para guerrearem entre si e sabem que tal desagrada aos seus líderes, contudo não resistem e cedem às suas paixões. Por detrás do êxito na sociabilização esconde-se o “quieto”, quando correctamente aplicado e usado como meio para a familiarização que a antecede a sociabilização propriamente dita. Muitos tentam alcançar a familiarização pela separação dos cães ou pelo seu afastamento, o que atrasa significativamente o processo pedagógico e geralmente não resulta. Para haver luta é necessário haver dois contendores e se um não iniciar as hostilidades e o outro for atrelado, dificilmente ela acontecerá. As manobras de sociabilização mais objectivas que praticamos resultam da prestação do “quieto” (contorno, enquadramento e duo, mais tarde voltaremos a elas). Há alguns anos atrás (não muitos), ouvimos uma história caricata acerca disto, a de uma senhora que tinha um cão dito agressivo e que passava as horas do treino, dia pós dia e semana após semana, com ele dentro do seu automóvel a ver os outros cães a treinar, segundo o parecer do director dessa escola para alcançar a sociabilização do seu pupilo. Quando a coisa parecia ir bem, quando o cão já não ladrava de dentro do carro para os outros, optava-se por o levar à pista e “apresentá-lo” aos demais. Depois de várias tentativas frustradas pelos constantes desacatos, a senhora optou por zarpar dali e procurar quem lhe valesse. A sociabilização é um prémio oferecido pela obediência, particularmente quando a familiarização é inexistente ou abrupta, entre iguais ou espécies diferentes.

O “QUIETO” COMO MODO DE CORRECÇÃO. Os cães detestam ver-se privados da presença dos donos e geralmente “entendem” isso como forma de castigo, porque o isolamento forçado atenta contra o seu viver social, pois nasceram para o grupo, não sobrevivem sem ele e sempre carregam as suas marcas. Obrigar um cão ao “quieto” e dispensá-lo de nos acompanhar é para ele um castigo tremendo, algo que o transtorna e que sente vivamente na pele, porque se sente preterido ou desprezado. E se no meio disto tudo formos afagar outro cão, o castigo vira tortura e regressará para nós tal qual “filho pródigo”, arrependido, manso, obediente e solícito, tudo fazendo para nos agradar e demonstrando a sua gratidão. Dispensamos esta terapia, excepcionalmente, para os cães que nasceram muito dominantes ou para aqueles que se comportam como tal.

LIMITES E AUTONOMIA DO “QUIETO”. O “quieto”, depois de convenientemente instalado e tirando-se partido de uma imobilização mais cómoda para o animal, deve garantir a execução da ordem num período de até 2 horas, muito embora cães bem treinados possam ultrapassar esse limite, na ausência do dono e com serviço destinado. A distância que separará o emissor e o receptor da ordem (homem e cão), que deverá acontecer de modo gradual, será garantida pela recepção da linguagem empregue ou escolhida (verbal, gestual, sonora ou mediante outro condicionamento prévio e específico). Apesar do “quieto” poder contribuir para o robustecimento de carácter dos cães mais frágeis, eles não devem ser por demais explorados nesse trabalho, porque enveredam pela letargia, perdem auto-defesa e tornam-se mais vulneráveis. Sempre será melhor investir no “junto”, porque só a certeza da presença do dono manterá confiança do cão na sua ausência.

A APLICAÇÃO DO “QUIETO” NA DISCIPLINA DE GUARDA. A guarda do automóvel é quase automática e não carece de grande número de lições ou de recapitulação constante, desde que não se atente contra ela ou se opere a descodificação do animal, porque o cão sente-se “dentro de casa”, no seu território e sabe a quem a viatura pertence. Maiores dificuldades terão os cães que raramente entram nas viaturas dos seus donos, porque as associam ao mal-estar ou a saídas de emergência, normalmente incómodas e do seu desagrado. A partir do “quieto” se inicia a habituação binomial aos disparos e se instala a guarda de pessoas e bens, ainda que as tarefas necessitem de comandos específicos. Podemos dizer, sem correr o risco de nos equivocarmos, que o “quieto” alerta o cão para as acções e propicia a sua concentração para o policiamento pretendido. Por outro lado, e acima de tudo o que foi dito, o comando possibilita a ocultação do cão, a suspensão dos seus ataques e a eliminação das suas arremetidas furtivas.

O “QUIETO” E A SALVAGUARDA DO CÃO. Porque não somos adeptos das “guerras de alecrim e manjerona” e já há muito abandonámos a brincadeira dos polícias e ladrões, levados pela maturidade e confiantes na ordem estabelecida, ensinamos o “quieto” primordialmente para a salvaguarda dos cães, objectivo maior do nosso ofício e do qual não abdicamos. E quando o fazemos estamos a pensar nos cães que morrem atropelados diariamente, nos sujeitos a quarentenas e naqueles que virão a ser abatidos. A diminuição dos riscos e a prevenção contra acidentes podem ser alcançadas pelo “quieto”, um comando que ao procurar a salvaguarda dos cães aposta em simultâneo no bem-estar dos cidadãos. O “quieto” é um assunto vastíssimo e a sua aplicação muito diversificada. Não obstante, estamos prontos para maiores explicações.

Companheiros do Sol

Passámos este fim-de-semana na companhia do sol, rodeados de água e com os olhos postos no mar. Apesar de ter chovido por todo o lado, o sol não nos largou e possibilitou o bom andamento dos nossos trabalhos. Trabalhámos em 3 locais diferentes, reforçámos o “quieto”, melhorámos o “aqui”, aperfeiçoámos o “deita” e andámos de mãos dadas com o “junto”.

Sábado estivemos em Cheleiros e em Montachique, onde para além da obediência recorremos às manobras de sociabilização animal, às diferentes induções e treinámos exaustivamente o “deita”. Esta fornada de cachorros tem sido particularmente feliz graças à variação dos ecossistemas, à correcta sociabilização e ao contacto com a natureza. Nenhum dos mais frequentes se encontra atrasado em relação ao Quadro de Crescimento Funcional.

No Domingo trabalhámos na Foz do Lisandro e introduzimos as verticais pelo contributo de obstáculos naturais, reciclando troncos e canas que a maré devolveu à praia. Almoçamos no João da Vila Velha e acabámos por desfrutar do pôr-do-sol. As ausências foram significativas mas não esfriaram o empenho daqueles que participaram. O Jorge Santos acabou o trabalho em fato de banho e a Isabel Silva está a recuperar a boa forma.

Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: Célia/Igor, Clara/Shara, Francisco/Íris, Isabel Silva/Luna, Joana/Flikke, Joaquim/Maggie, Jorge/Juvat, Rodrigo/Tarkan, Tiago/Sane, Teresa/Buster e Vítor Hugo/Yoshi.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Caderno de ensino: VII. O "aqui"

PREÂMBULO. Se o “junto” é a pedra basilar da obediência, o “aqui” será certamente a sua mão direita, porque em cima de ambos se alicerça todo o adestramento clássico. O ensino do “quieto” sempre deveria suceder ao do “aqui”, indicando qual o modo da reunião binomial pretendida. No entanto, para nossa desventura, somos por vezes obrigados a inverter essa ordem e nem sempre por causa do carácter dos cães, a quem não cabe a pedagogia e que acabam vítimas da sua inexistência. O adestramento versus condicionamento procura tão-somente nos cães a parceria, a autonomia controlada e a sua prestação complementar, coisas oferecidas pela cumplicidade, garantidas pela obediência e executadas de acordo com o particular canino. A cumplicidade não pode provir de uma raiz cínica, mas basear-se na afeição recíproca, a obediência não pode desconsiderar o carácter do animal enquanto indivíduo e seu desempenho desnudará sempre a qualidade dos seus líderes, apesar de todos os cães serem diferentes e patentearem diversas mais-valias ou habilidades. Para que a liderança surta efeito, ocupando o líder o lugar mais alto da hierarquia, é necessário que ele aja de acordo com o cão que tem na frente: mais paternal com os submissos e menos tolerante com os dominantes. Como os submissos vivem normalmente à sombra dos donos e os dominantes divertem-se a fugir deles, é preciso encontrar o ponto de equilíbrio entre o travamento e a recompensa. Aos binómios constituídos por cães muito dominantes e por donos deveras submissos ensinamos primeiro o “quieto”, para robustecer a autoridade do dono e aumentar a submissão do cão; aos binómios constituídos por donos muito dominantes e cães muito-submissos ensinamos primeiro o “aqui”, para amaciar os donos e levar de vencida o medo dos cães. À parte destas situações extraordinárias, sempre começamos pelo “aqui”, particularmente se não foi alcançado no lar.

O QUE É O “AQUI”. Do ponto de vista operacional o “aqui” é um comando híbrido, porque tanto pode ser um automatismo de imobilização, quando usado para a cessação das acções, como um automatismo direccional, quando requerido para as mudanças de direcção. Não obstante, é mormente usado como automatismo direccional. Consiste no chamamento do cão e na sua apresentação imediata. Normalmente a figura é alcançada pelo rodar do cão sobre as costas do condutor, entrando pelo seu lado direito e imobilizando-se depois à sua esquerda. Numa fase mais adiante, na procura de um “aqui” mais célere, o cão entrará directo no lugar de condução (o esquerdo) rodopiando automaticamente sobre si próprio. O comando não necessita de ser salpicado com o nome do animal, porque o bicho não é surdo e bem cedo reconhece a voz do dono. Quando se persiste neste erro, facilmente o comando transitará para o nome do cão, substituindo-o, o que é altamente reprovável, porque sabendo-se o nome do guardião logo se alcançará o seu controle. O “aqui” não deve substituir o “junto”, erro bastante comum e visível nalgumas modalidades desportivas caninas. Esse uso abusivo do comando acaba por arruiná-lo e dar cabo daquele que substitui.

O “AQUI” NATURAL. Todo e qualquer comando podem ser alcançados sem o contributo da coerção e deseja-se que assim aconteça. O “junto” e o “aqui” são figuras naturais no cão doméstico, ainda que careçam de algum aprimoramento, porque os cachorros seguem-nos por toda a parte e sempre procuram a nossa presença. A tarefa entre os cães territoriais encontra-se mais facilitada e pode ser de difícil obtenção junto dos mais primitivos, instintivos ou seleccionados para outros propósitos. Tal é o caso das raças seleccionadas para o tiro (reboque de trenós para o transporte de pessoas e mercadorias), dalgumas próprias para o ofício cinegético e daquelas cuja utilidade não foi procurada e por isso mesmo é desconhecida. Nestes casos a mecanicidade das acções tende a consertar aquilo que geneticamente foi omisso. Havendo o cuidado de aproveitar a propensão natural canina de seguir o dono, a obediência acontece sem problemas como resultado da coabitação. A ruína da obediência doméstica, porque o cão é um animal social, resulta de dois factores: da ausência do líder e da entrega do cão a si próprio (muitas vezes logo após a sua adopção). Se o “aqui” decorrer do bom acompanhamento doméstico, ele será mais pronto e célebre, alegre e duradouro e facilitará de sobremaneira o adestramento, particularmente quando recompensado. Por outro lado, se o comando de “aqui” anteceder a distribuição do penso diário, o automatismo acontecerá naturalmente por força da experiência directa.

O “AQUI” E A PROCURA DO DONO. O exercício da pistagem, que começa pela procura do dono, é um dos melhores meios para o alcance do “aqui”, especialmente para os cães mais autónomos e cientes do seu estatuto. Este trabalho que é uma brincadeira para ambos, algo tangível ao “jogo do gato e do rato”, é indispensável para os cães valentes e super mimados, propensos à emancipação precoce e despertos para desafios alheios à constituição binomial. O exercício da obediência é por norma mais fácil junto das cadelas, dos cães mais submissos, vulneráveis e franzinos. Os machos, que ainda não perderam o atavismo que os leva à procura de novos grupos, são geralmente mais rebeldes e procuram a evasão. A procura do dono deve acontecer antes da sua maturidade sexual, porque a ausência de regra quando somada aos ímpetos juvenis excursionistas, desprezará a ordem e obrigará a meios mais persuasivos ou coercivos para a instalação do “aqui”.

A GULA E O “AQUI”. É muito fácil ensinar o “aqui” aos cães que foram obsequiados por um forte impulso ao alimento, porque a gula os submete agradavelmente, havendo alguns que vivem literalmente para comer. O recurso ao biscoito ou a outra iguaria tem-se revelado um importante subsídio para a instalação do comando, evitando maiores contratempos, o duelo das vontades e reforçando o papel da liderança, porque a entrega do petisco garante o automatismo. A técnica não é nova e não carrega qualquer erudição. A haver alguma novidade, ela passará pela ausência de maior contacto entre o homem actual e os animais ao seu redor, porque o dono da comida sempre foi o patrão do animal. Não se passará o mesmo com os homens? Todavia, a técnica não é absoluta e a sua validade é restrita, porque existem cães pouco propensos ao alimento e que apenas comem para sobreviver, desinteressando-se dos manjares colocados à sua disposição. Para estes a técnica terá de ser outra e passará certamente pelo reforço dos laços afectivos comuns.

O “AQUI”, O INSTINTO DE PRESA E O IMPULSO AO MOVIMENTO. Um churro, uma bola ou outro brinquedo do agrado do cão podem ajudar na instalação do comando, quando usados como estímulo e reforço da mão indicadora do movimento, desde que a atenção do cão neles se fixe. Se o objecto utilizado apitar quando apertado, a tarefa torna-se mais fácil e a concentração canina mais objectiva, porque o brinquedo responde à captura operada pelo cão e desperta o seu instinto predador. Após o alcance da figura, porque os cães detestam perder e desinteressam-se do que está para além do seu alcance, o brinquedo deve-lhes ser jogado e o seu prémio alcançado, porque só a certeza do sucesso mantém o seu interesse. E para que não restem dúvidas, os brinquedos destinados aos cães não são os seus exclusivos destinatários, mas meios através dos quais se estabelece o entendimento entre homens e cães, o que equivale a dizer que são também para os donos. É efémero lançar brinquedos num canil ou jogá-los num quintal, particularmente se ali houver pedaços de madeira, penas de aves e outros objectos de uso comum aos moradores da casa. O que torna o brinquedo artificial atractivo é o odor do dono, o movimento que ele lhe imprime, a sua constituição em presa, a acção dividida e a aprovação do trabalho realizado pelo cão. A ausência destas condições, porque são elas que estabelecem a diferença, torna os brinquedos desprezíveis aos seus olhos, que os pode considerar como cacos ou dejectos, algo sem interesse, sem préstimo e isento de vida.

O “AQUI” COERCIVO. O recurso ao “aqui” coercivo sempre espelha a incapacidade do dono em se fazer ouvir, o seu distanciamento relativo ao animal e o desprezo pelos mais elementares princípios pedagógicos, maleitas advindas do desrespeito pelo cão enquanto indivíduo social, reflexo e dependente. Quando a Escola é vista como uma panaceia, o adestrador vira Deus; quando ele aponta erros, que vá para o diabo que o carregue! Querendo libertar-se desses desígnios, isentar o cão de maior desaprovo e perante o carácter rudimentar de alguns donos (felizmente poucos), cuja adaptação rasa o impossível, o educador, ainda que à revelia e contrafeito, vê-se obrigado ao “aqui coercivo”, já que o automatismo irá ser alcançado para além dos desejáveis vínculos afectivos e acontecerá pelo gélido, cru e puro condicionamento mecânico. O “aqui” coercivo é desenvolvido em 3 fases e serve-se da corda de 6 metros como subsídio de ensino, exactamente a mesma que mais tarde irá ser usada para a pistagem. A corda pode e tem vindo a ser substituída pelas trelas extensíveis, de modelo profissional, de tela mais larga e de igual comprimento, já que a sua recolha é automática e não causa qualquer embaraço. A opção forçada pelo “aqui” coercivo obriga à prévia instalação do comando de “quieto”. Na 1ª fase, depois da imobilização do cão e uma vez tirada a folga da corda ou guia, o condutor puxa vigorosamente o animal para si e em simultâneo solta o comando de “aqui”, de modo a garantir a celeridade e a surpresa da acção na busca do automatismo. A progressão linear e o arranque automático do cão são objectivos a considerar. Depois, ensina-se ao animal o lado de entrada, solicita-se-lhe o comando de roda, depois o “junto”, logo a seguir o “alto” e depois o “senta” (não convém pedir-lhe o “deita” por causa da morosidade das acções). A distância entre condutor e cão vai aumentando gradualmente e todas as acções desejam-se perfeitas. Na 2ª fase, que só acontece pela instalação do condicionamento anterior, a guia continua esticada mas presa ao pé esquerdo do condutor, que a pisa. A ordem de chamada dispensa a acção da guia e procura-se a soberania do comando verbal. Quando tal não acontece, o retorno à fase anterior torna-se obrigatório. Na 3ª fase o comando já é executado em liberdade. Uma boa sessão de treino costuma bastar para o automatismo, muito embora necessite de recapitulação para sua instalação definitiva.

O “AQUI”: O CHECK-UP DA OBEDIÊNCIA. Considerando o exercício da obediência, se um condutor pode ser avaliado pela sua postura, modo de respirar e pela entoação dos comandos, a qualidade de um treinador desnuda-se na execução do “aqui”, porque duma assentada vê-se a obrigado à execução de 7 figuras (“quieto”, “aqui”, “roda”, “junto”, “alto”, “senta” e “deita”). A prontidão das acções, a mímica canina visível na figura, a execução correcta dos automatismos e o respeito pelos alinhamentos são parâmetros avaliativos. A excelência do “aqui” revela-se no “junto” automático, quando o cão rodopia sobre si mesmo e se coloca à disposição do condutor, debaixo da mão de condução ordinária (a esquerda), após ali ter chegado a galope. Este aprimoramento técnico dificilmente será alcançado por meios coercivos e resulta normalmente do concurso da recompensa ou dos brinquedos, espelhando assim a importância da cumplicidade prá melhor prestação binomial.

PARA QUE SERVE O “AQUI”. Este automatismo serve exclusivamente a reunião binomial, independentemente do cariz ou propósito das suas acções (lúdicas, normativas, policiais, etc.), ainda que possa ser usado como travamento das acções indesejáveis por parte do cão ou como subsídio de correcção direccional. Em qualquer dos casos ele é um comando de emergência e serve para evitar o afastamento não autorizado do cão ou solicitar a sua presença imediata, porque o binómio desloca-se ordinariamente a par e passo (em “junto”).

COMO FAZER O “AQUI”. Todas as figuras que constituem o “aqui” e que manifestámos há dois parágrafos atrás (O “AQUI”: O CHECK-UP DA OBEDIÊNCIA), podem ser alcançadas naturalmente e sem maiores dificuldades, mediante recurso ao espólio do cão e tirando-se partido dos seus impulsos herdados mais desenvolvidos, havendo o cuidado de o recompensar efusivamente pelo trabalho efectuado. O comando pode evoluir da linguagem verbal para outras linguagens e ser accionado mediante sinal sonoro. Se houver o cuidado de o usar, aquando da distribuição do penso diário, ele passará rapidamente a automatismo pelo contributo da feliz experiência directa. Apesar dos cães não nascerem com um kit de obediência, ela encontra-se facilitada pelo particular social do cão. As dificuldades no ensino e a estupidez atribuída a certos cães resultam maioritariamente do fraco empenho dos seus donos. Quiçá se a sua dificuldade de adaptação não os transporta a outros défices ou impropriedades. O assunto não se esgota aqui, estamos prontos para maiores explicações.