quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Rasar os píncaros para alcançar a liderança


O Ti Filipe, um adestrador brilhante de quem já falámos atrás, pessoa mítica para quem o conheceu e para quem dele ouviu falar, não sabemos se está vivo ou morto porque rumou para a Alemanha, sempre carregou uma dupla herança, a deixada pelos visigodos e a transmitida pelos mouros, porque ambas são bem visíveis nos estremenhos (nos da Estremadura e nos alentejanos). De corpo e trabalho era teutónico, um atarracado branco que abraçava qualquer empreitada, indo para além das dificuldades dos demais, um homem de “mãos à obra” que diariamente desafiava o impossível. O coração era-lhe mouro, constantemente atraiçoado pelas paixões, dado à piedade e votado à pobreza. Ele podia ter sido muito mais do que foi, não fora a conformação semita do destino e o seu desprezo pelo colectivo. Tirou a 4ª classe à revelia e conseguia arranjar qualquer máquina ou motor, ser operário ou artífice era-lhe natural, era um inventor em potência e um observador inato. Mas para o nosso tema interessa-nos mais a parte moura, aquela que o invadia depois do almoço, à hora da sesta, obrigando-o à dissertação pela contemplação: a hora das sentenças. Dizia ele: “ Meu amigo, esta coisa dos cães dá volta à cabeça de qualquer um e se um homem não tiver cuidado ainda dá em maluco, porque causa desgaste e porque se tem de fazer das tripas coração!” Este era o comentário que normalmente tecia sobre o exercício da liderança, um homem que ignorava a existência da psicologia e para quem as ciências sociais eram meras estratégias políticas, modos fáceis para encher a pança!

Ano após ano e por toda a parte, ainda que sem sucesso substancial, grande número de empresas e instituições promovem workshops sobre o exercício da liderança prós seus quadros superiores, no sentido de dotar e apetrechar as chefias existentes e as que imediatamente lhe sucederão, através de novos subsídios que lhes garantam um melhor desempenho. Muitas dessas acções formadoras, se não a sua maioria, acontecem à distância do trabalho propriamente dito e em locais escolhidos para o efeito, geralmente paradisíacos e arredados das tarefas específicas, o que não capacita os visados e dificulta a aplicação dos conceitos. Há gente que papa cursos desses como patos a engolir carochas e nem por isso alcança uma melhor prestação, porque o líder nasce líder e nisso deve ser exercitado e continuamente avaliado, considerando as dificuldades no terreno e o particular de cada uma delas. A quebra desta dinâmica acaba por condenar todo e qualquer workshop desenvolvido para o efeito, porque a ausência da confrontação isenta de culpa as menos valias. Ainda que as estratégias sejam apreendidas, a sua aplicação é inválida na ausência de qualquer tipo de estágio avaliativo, no desgraçado abismo entre o querer e o fazer.
Como é sabido, o alcance do adestramento só é possível pela instituição da liderança e o insucesso escolar pode resultar do seu abuso, da sua ausência, desaproveitamento ou aproveitamento parcial. A maioria dos proprietários e condutores de cães não nasceu líder e não denota qualquer propensão para isso, o que obriga ao policiamento constante das suas acções, ao reparo dos seus erros e ao apego aos procedimentos, enquanto agentes de ensino e emissores da mensagem que possibilita o condicionamento das acções caninas. A grosso modo e à imagem dos pressupostos usados na reeducação canina, os condutores de cães dividem-se em dois grupos: os que precisam de ser travados e os que necessitam de incentivo, porque os primeiros tendem a desconsiderar o particular animal e os segundos dificilmente saem da relação de paridade. Não havendo correcção objectiva dos seus actos, a necessária alteração de comportamento, os cães dos primeiros abominarão o treino e os segundos acabarão conduzidos pelos seus cães.
É evidente que o auxílio do reforço positivo e o apego aos princípios da pedagogia geral de ensino tendem a colmatar acções menos próprias dos líderes, mas jamais substituirão a liderança que deve fazer uso deles, porque o condicionamento necessita de reavivamento e os cães não são todos iguais, comportando-se de maneira diferente face à novidade dos desafios, quando entregues a si próprios ou quando as condições lhe são propícias. À parte disso e por mais inverosímil que nos pareça, superabundam nas classes escolares indivíduos assolados por diferentes graus de cinofobia, o que os deixa pouco à vontade e limita as suas acções perante a resistência dos seus companheiros, que apercebendo-se disso, cedo apostarão no logro dos seus intentos. O homem desnuda-se perante o cão e qualquer investidura cedo cai por terra, particularmente as forçadas e contranatura, porque o “lobo doméstico” é perito em disfarces e dificilmente se deixará iludir por máscaras, já que vive connosco, conhece os nossos hábitos e disso tira vantagem.

Apesar das dificuldades, quer queiramos ou não, todos os condutores necessitarão de ser líderes, o que jamais será uma tarefa fácil. Ainda que a operação da serotonina venha em nosso auxílio e o desenvolvimento atlético aumente a cognição dos condutores, as suas limitações, medos e traumas sempre se farão presentes, realçando impropriedades de origem genética ou ambiental, presentes no seu quotidiano e transferidas para o treino, porque somos de alguma forma fruto da experiência que temos. A novidade e a mais-valia do adestramento residem na possibilidade de cada um reescrever a sua história, de acordar para uma nova experiência para além da anteriormente havida. Poucas actividades oferecem isso e os benefícios da comunicação interespécies ultrapassam largamente a constituição binomial, tornando os condutores mais seguros e objectivos, aptos para novos desafios e mais confiantes, pelo cúmulo da experiência encontrada nas pequenas vitórias. Nisto se revê a função terapêutica da cinecultura e por causa disso convidamos os jovens para as nossas fileiras.

A transformação “milagrosa” de um subordinado em líder obedece a um conjunto de estratégias ao alcance de qualquer um, quando salvaguardada a confiança no adestrador e estabelecido o necessário discipulado, porque o treinador de uma escola outra coisa não é que um personal trainer, alguém que vai adiante e exemplifica, que toma sobre si as dificuldades e as resolve, mostrando para os demais os requisitos inerentes ao sucesso das acções, diminuindo os riscos e levando de vencida os obstáculos, apresentando o final da história e encorajando. Mesmo assim, pela falta de experiência directa e em função da anterior, muitos resistirão por algum tempo, escudando-se em desculpas usuais e noutros imperativos, que sendo aparentemente justificáveis, não escondem as suas limitações inatas ou adquiridas. A situação exige tacto e a confrontação gratuita nada resolve, o despreparo não capacita e o logro pode aumentar a desconfiança, porque a aceitação do trabalho é sustentada pela certeza e avidez do sucesso.

A opção pelas aulas colectivas, a troca de condutores e a participação nas diferentes induções servem os nossos propósitos, dispensando as avaliações individuais pela prestação colectiva que obriga cada um à excelência, desenvolvendo nos indivíduos uma militância que os leva a considerar a sua prestação como fundamental e de todo necessária ao grupo. Não obstante, alguns rasarão os píncaros e chegarão a um estado limite da sua personalidade, ultrapassando instintos e potenciando impulsos, descobrindo uma nova identidade e evoluindo de acordo com ela, em prejuízo de outras percepções, inválidas para o treino e castradoras da sua profusão social. O tão badalado slogan “yes we can” bem que podia ser aplicado ao adestramento, porque é esse o seu objectivo e resulta do empenho colectivo no crescimento individual. A força motriz do colectivo vem do saber e aplicação do adestrador, que ao torná-lo dinâmico, capacita todos os seus membros e estabelece a parceria rentável, porque o trajecto comum induz à procura de idêntica solução, divide a experiência e torna possível o êxito. O Ti Filipe tinha razão: “esta coisa dos cães dá volta à cabeça de qualquer um!”

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