segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Educar é mais difícil do que se pensa

Numa dessas revistas a que se dá pouco crédito e que valem pelas imagens, Sílvia Buarque, filha do celebérrimo cantor brasileiro Chico Buarque, ao falar sobre o seu trajecto enquanto actriz, nomeadamente sobre a pré-produção por ela desenvolvida para um melhor desempenho do seu papel na telenovela “ Caminho das Índias”, que a levou a visitar várias escolas e diferentes estabelecimentos de ensino, chegou à seguinte conclusão: “ Depois de vivenciar tudo isso, descobri que educar é mais difícil do que eu pensava”.



É praticamente impossível educar cães sem educar os seus donos e esta é uma das maiores dificuldades no mundo do adestramento. A aquisição e o treino de um cão obrigam a alteração de hábitos e à obtenção de novos por parte do seu dono e treinador, o que não é gratuito e pode causar algum transtorno. E neste sentido, somos obrigados a falar sobre educação binomial, porque a cada um dos seus membros cabe parte do sucesso comum, enquanto unidade ou equipa apostadas em idênticos propósitos.

A coabitação que leva à alteração das rotinas, a aquisição de uma nova linguagem, a obtenção de uma mímica própria, o controle dos instintos, o uso acertado das emoções e o exercício da liderança, são alguns dos desafios colocados ao condutor doméstico e que implicam numa maior disponibilidade cognitiva, psíquica e física. Grande número de proprietários de cães ignora isso e abraça expectativas inatingíveis sem o seu contributo objectivo para o alcance das tarefas desejadas, esperando dos cães o retorno daquilo que nunca chegaram a receber. Adestrar, na sua forma mais simples e sintética, outra coisa não é que uma permuta que possibilita a divisão de tarefas e que encontra na cumplicidade a melhor das linguagens.

A generalização do cão doméstico, agora presente em todos os extractos da pirâmide social, ultrapassando culturas, povos, etnias, ocupações, sexos e idades, levou também à alteração dos métodos de treino, substituindo as mais-valias técnicas exigíveis aos condutores pela submissão canina tirada a partir da sua inescusável dependência, pondo o adestramento ao alcance de qualquer um, diminuindo as exigências e tornando-o mais lúdico e agradável. Esta abertura que antevê um nivelamento, essencialmente destinada ao cão doméstico, não procura a excelência e aposta no alcance dum efémero certificado, tal qual “habilitação por nova oportunidade” que não esconde o deficit mas engrossa as estatísticas, na paz podre das verdades subjectivas. Contudo, há que dizer uma verdade: os cães saíram protegidos e os índices do especicismo baixaram consideravelmente.

A excelente instalação doméstica canina, a excursão e higiene diárias, o aproveitamento dos diversos ecossistemas, as brincadeiras pedagógicas e a recapitulação doméstica dos exercícios desenvolvidos em classe, são trabalhos que visam o aproveitamento e desenvolvimento do impulso ao conhecimento presente em todos os cães, sustentáculo da parceria, estímulo operacional e capacitação para o seu quotidiano. Para que isso aconteça, talvez alguém vá dormir menos, aumentar o seu cansaço, perder o golo da equipa da sua eleição, alterar as férias, anular qualquer compromisso ou relegar para depois uma actividade predilecta. O transtorno de ter cães só pode ser vencido pelo amor e quando ele não existe, a sobrecarga da maçada constitui-se em sacrifício e todas tarefas virão a ser desleixadas.

Educar donos é ensinar a amar, é contrariar respostas naturais e canalizar emoções, estabelecer novas práticas e trabalhar para o abandono de outras. Nada disto é automático e o desconforto sempre andará de braço dado com o adestrador, porque confronta e busca alteração, transitando rapidamente de anjo para demónio. Acerca das alterações operadas pelo adestramento canino na pessoa dos donos, lembramos aqui as palavras de um ex-aluno: “Tenho que lhe agradecer, a minha mulher, depois que veio para o treino, melhorou consideravelmente e o nosso relacionamento também”. Educar na perspectiva cinotécnica é muito difícil, porque induz a alterações de comportamento e fomenta o uso consertado das emoções de cada um.

Entre nós, a procura da cumplicidade obriga-nos à coabitação, ao reparo da postura, à expressão corporal, à adopção de uma mímica nova, ao controle das emoções, a uma maior disponibilidade, à mecanicidade das acções e um entendimento por vezes extra-sensorial, mercê da coabitação que antevê as acções. A responsabilização dos condutores tem como objectivo a “transcendência” dos cães, porque são agentes transformadores e objecto de idêntico processo de transformação. Educar nunca foi fácil!

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