quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

São como os Espanhóis: têm de ver com as mãos!

Apesar de ignorarmos a origem da sentença, ela assenta-nos muito bem, muito embora duvidemos que todos os espanhóis assim procedam, porque a sua coroa alberga diferentes povos de distintos usos e costumes. Ainda que o seu número tenda à redução, há muito português que conserva o hábito de mexer, de apalpar a mercadoria antes de a comprar para se inteirar da sua qualidade. A acção é instintiva e acontece nos mais variados estabelecimentos comerciais: apalpamos e escolhemos a fruta, abrimos embalagens, destapamos e cheiramos os frascos de cosméticos, folheamos revistas e não as compramos, esticamos os tecidos, provamos à revelia o sabor dos produtos alimentares e nem sempre deixamos as coisas como estavam. O enraizado hábito de mexer, ligado à compreensão sensitiva, é transportado para o nosso quotidiano, dando ao relacionamento mútuo um calor, que não sendo intencional, pode ser identificado por outros como primitivo e passional. Graças ao despertar dos sentidos e porque sempre fomos assim, somos efusivos e damos ocasião aos sentimentos para além das razões ou convenções, deixando boquiaberto quem nos visita. Essa capacidade de tratar tudo como seu, é própria do português e foi transmitida ao brasileiro, ainda que essa intimidade se restrinja, na maioria dos casos, somente ao tratamento e daí não vá adiante. Debaixo da euforia cultural que nos domina, os cães são alvos preferenciais e duas perguntas inevitáveis ecoam nas praças (há quem nem pergunte e avance directo para o contacto), quando surge um cachorro no horizonte: “Como se chama? Posso fazer-lhe uma festa?”

Recebemos ontem um e-mail do Vítor Hugo, proprietário do Yoshi, um cachorro Pastor Alemão de 3 meses e meio, a pedir-nos conselho e que a seguir transcrevemos:
“Não sei se este tema já foi abordado no Blog. No meu caso é uma dúvida que desperta. O Yoshi, na rua, atrai alguns curiosos que se aproximam para o ver mais de perto e fazer uma “festinha”. Normalmente a reacção dele é a de ladrar quando algum estranho se aproxima. O que devo fazer quando as pessoas pedem para lhe mexer? Devo permitir ou desaconselhar?”

Antes de respondermos à questão e porque o assunto é o mesmo, lembramos a estupefacção de um aluno que já não está entre nós, aquando da sua visita à cidade norte-americana de New York. Segundo nos fez saber, quando se encontrava no Hide Park, encontrou um “handler” que passeava 15 cães em simultâneo. Após ter avistado a carrinha dos “Hot Dogs”, o homem mandou deitar todos os animais, no que foi prontamente obedecido, indo depois ao local do seu repasto. Os transeuntes passavam ao lado dos cães e ninguém lhes mexia, apesar de serem visíveis nos seus rostos expressões de cumplicidade e afecto. A atitude das pessoas apanhou o nosso aluno de surpresa, porque nunca tinha visto tal e estava acostumado a outra realidade. Dizia ele: “se fosse em Portugal, está bem, está! Caíam em cima deles que nem moscas!”
A dúvida do Vítor Hugo é pertinente, porque não quer prejudicar o cachorro e ser tido como bruto, que é o adjectivo mais aplicado a quem não deixa acariciar o seu amigo de quatro patas. Na cabeça das pessoas confunde-se familiarização com sociabilização, porque a primeira antecede a segunda e o vulgo tende à generalização. Todos os cães carecem de se familiarizar com toda a gente, mormente com aqueles susceptíveis de accionar os seus mecanismos de agressividade, unicamente pela diferença e na ausência de qualquer atitude hostil. E nesse sentido, a mudança dos ecossistemas e a variação dos passeios torna-se indispensável, não vá a bengala do cego constitui-lo em agressor ou a brincadeira das crianças num convite à peleja. A familiarização é uma forma primária da sociabilização propriamente dita, é ela que possibilita a guarda dos rebanhos, a tolerância com o pessoal das reparações e leva à aceitação daqueles que ocasionalmente nos visitam, como parte integrante do viver canino. No entanto, as pessoas querem mais e não antevêem de imediato o resultado das suas acções, porque sem darem conta, estão a possibilitar a morte do cachorro por envenenamento e o seu roubo, a criar entraves ao relacionamento dono-cão e a sujeitar o animal a uma série de comandos inibitórios, porque há gente que não presta e as suas intenções não são as melhores, ainda que vestidos de cordeiros e com o coração na mão. Na nossa compreensão, entendemos como filial a relação binomial, será que entregaremos os nossos filhos a qualquer um? Que de bom grado os sujeitaremos às delícias dos bajuladores? Que conselhos lhe damos na nossa ausência? Será que o perigo não espreita?
E perante a confusão reinante entre a simpatia e a empatia, somos obrigados ao esclarecimento das pessoas, o que exige algum tacto porque estamos a lidar com as suas emoções, apesar do abuso e da impropriedade dos seus actos, porque aparecem sem ser convidados e exigem tratamento íntimo, o que é uma clara violação aos olhos do animal e um atentado à propriedade do dono. Mas mesmo assim, temos que contar com eles e acostumar os nossos cães às suas arremetidas, não vá o diabo tecê-las e sobrar-nos algum dissabor. E porque há gente que não tem emenda, por mais claros que sejam os esclarecimentos, há que evitar aqueles que persistem no erro e nunca tomam conhecimento disso. Nestes casos, o comando direccional “roda” que garante a inversão do sentido de marcha, encontra rara oportunidade e mais rapidamente passará a automatismo. E o mais engraçado, se nisto houver alguma graça, é que temos regulamentos de conduta dos cães para os homens e o inverso não existe, ainda que se badale por aí a Carta dos Direitos do Animal.

O nosso conselho para o Vítor Hugo, extensível agora a todos vós, é que evite os bajuladores desenfreados e compulsivos, de modo discreto e cortês, mantendo a amizade do seu cachorro com aqueles que o fazem de modo regrado, que escutam o seu parecer e respeitam o animal. Ocasionalmente, “a ponto largo que o freguês é de longe”, sugerimos que sujeite o Yoshi a este tipo de encontros, que não necessitam de ser procurados, enquanto fauna dominante e milenar, para que não suceda ao cachorro o mesmo que me aconteceu, quando era menino e saía da catequese, que corria pelos campos fora para me livrar dos ósculos de velhas desdentadas. Alguns condutores de cães, fartos de banquetear os mais carentes, têm lançado mão de várias mentiras com algum sucesso, atribuindo aos seus cães doenças contagiosas, evitando assim os excessos e livrando-se de futuras investidas. Quando o Yoshi crescer o problema fica automaticamente resolvido, porque imporá respeito e só terá olhos para o dono. O desrespeito incide essencialmente sobre os cachorros, porque suscitam ternura e protecção, acabando alguns abandonados quando alcançam a fase adulta, por gente dita sensível e plena de sãos propósitos, dessa que é como os espanhóis: que vêem com as mãos.

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