Comecemos pelo “17”, um sabujo de 10 anos, trôpego e sarnento, abandonado e alimentado pela vizinhança num determinado bairro citadino. A sua história é muito fácil de contar, admiti-la é que é difícil. Nasceu numa aldeia remota entre as fragas, o seu pai foi cão-pastor e a sua mãe caçadora, veio ao mundo num curral e numa noite de invernia. Com ele nasceram mais cinco irmãos, só ele e outro sobreviveram, porque os outros iam sendo chapados contra a parede à medida que iam nascendo, porque eram cadelas e havia um muito enfezado. Aquecido no bardo, foi alimentado pela mãe, fraca de leite mas esmerada nos cuidados.
O Celso Gouveia nasceu serrano, fadado para a agricultura e pecuária, exactamente na mesma aldeia do 17, lugar que amava mas para ele sem futuro. Os seus pais sempre rataram por uma economia de sobrevivência, fortemente marcada pela austeridade e por vezes a rasar a fome, mercê da impiedade climática e da falta de meios. Anualmente matavam um porco e ele tinha que durar até ao ano seguinte, permanecendo cobiçado na salgadeira como o melhor dos bens. A carne do bicho era racionada, guardada para ocasiões especiais ou para alguém da família quando estava doente. O toucinho também não escapava à regra e o pão de centeio durava uma semana. Mesmo assim havia folar na Páscoa e broa quando iam à feira. Não raramente entremeavam o azeite com a banha e aguentavam-se com legumes, batatas e castanhas, ingredientes sempre presentes no caldo, por vezes enriquecido com alguns ossos. À medida que ia crescendo, e sem os pais darem por isso, o Celso sonhava em sair dali e vir trabalhar para a cidade. Tinha Lisboa como preferência e a referência foi-lhe alimentada por um primo, estabelecido no Lumiar e proprietário duma mercearia. A ocasião chegou com a ida para a tropa e ele nem queria acreditar, porque foi parar à Ajuda, ao Quartel dos “Lanceiros da Rainha”. Apesar da recruta ter sido dura, dois meses depois de instalado na Capital, já tinha engordado 6 quilos e nunca tinha sido tão bem tratado. Como era brioso e de poucas falas, acabou impedido de um tenente que sempre o amparou. Graças a ele, quando chegou à disponibilidade, arranjou trabalho numa fábrica, passando de camponês e cabo 17 a operário.
Mesmo depois da morte dos seus pais, que ainda lhe deixaram as casas velhas e um pedaço de pinhal, sempre voltava à terra que o viu nascer. Ia matar saudades e de lá sempre saía borracho, pelas agruras do passado e pela vitória na vida. Numa dessas deslocações, depois de bem comido e bebido, provavelmente mais bebido do que comido, porque se escapou para as bandas do rio, deu de caras com uma cadela e dois filhotes, todo eles famintos e de pêlo arrepiado. Pegando no cachorro que mais lhe agradou, disse: “ Tu hás-de ser como eu, hás-de ir para Lisboa comigo. Chamar-te-ás “17”, porque aqui o comandante sou eu e hei-de fazer de ti um bom cabo”. Com a mala do carro atulhada de batatas e garrafões de vinho e azeite, o cachorro viajou por entre as alcofas de castanhas que enchiam o banco traseiro do automóvel. Nessa altura já o Celso era viúvo, encontrando-se aos cuidados esporádicos de uma das filhas, mais amiga de reparos e menos dada a consolos. A patrulha viveu 10 felizes anos, até que o homem morreu e o cão foi posto na rua, à revelia do finado e para desgraça do animal.
A adaptação do cão não foi instantânea e os outros cães vadios também não ajudaram muito, porque o mordiam impiedosamente e jogavam-no para o pior dos territórios, arredavam-no da comida e sujeitavam-no aos piores abrigos. Breve virou uma carga de ossos e viu-se apoquentado pela sarna. A expulsão pela matilha levou-o à procura das pessoas, das conhecidas e desconhecidas, movido pela sobrevivência e cativo à sua experiência anterior. Valeram-lhe os bons ofícios dos vizinhos, conhecedores da sua história e amigos do seu dono. Mas outros fizeram o mesmo e todos lhe davam comida, o “17” virou mascote e tornou-se pertença do bairro, património colectivo e um amigo de toda a gente.
O Alexander, Alexandre para os de casa e prós amigos, quiçá primo daquele “Tony Silva” tantas vezes satirizado pelo Herman, é um cantor da berra, debaixo de bom astral e portador de boa onda, daqueles a quem é comum ouvir-se: “ stress out, tá-se bem! Estamos numa curte, man!” Sem compreender bem porquê e porque a vida tem destas coisas, a sua popularidade aumentou e os seus fãs crescem a cada dia que passa. Precocemente viu-se atirado para a ribalta, uma estrela na constelação cadente que é a vida dos artistas. Apesar da fama, continua um puto birrento e “engalinha-se” com tudo e todos, porque a idade não ajuda e não é fácil ser vedeta. A máscara “in love” que evidencia nos concertos, não se coaduna com a sua pessoa, porque tem imensas dúvidas, deseja mais poder e quer um lugar perpétuo ao sol. Como qualquer jovem é um contestatário, um revolucionário etário afogado no mundo dos negócios, condenado à imagem e ao politicamente correcto. Mas ao chegar a casa, descalça as botas e joga-as para o tecto, prega dois urros e atira-se sobre o sofá. Ali sim, ali está o verdadeiro Alexandre, distante dos microfones e das luzes, desobrigado dos sorrisos e igual si próprio. Deus no palco e rei em casa, adquiriu recentemente como súbditos três Pit Bull, em tudo idênticos aos que proliferam pelos bairros marginais. Apresenta-os como a sua “Trindade” e não tem sobre eles qualquer controle, deixando-os entregues ao seus instintos e acima do bem-estar e direitos dos demais, como três “alexanderzinhos” que todos têm que gramar. Não serão eles os filhinhos do sucessor do Júlio Iglésias? As estrelas têm destas coisas!
Alheio a tudo isto, o “17” descia a praceta do bairro, depois duma soneca e na procura dos últimos raios de sol, porque o frio o incomodava e ainda tinha que suportar a noite. Ia descontraído, sem pressas e sem “dar cartucho a ninguém”, no caminho rotineiro rumo ao lugar habitual. Inesperadamente, vindos não se sabe donde, 3 Pit Bull caiem-lhe em cima, atacando-o ferozmente e cortando-o indiscriminadamente, sem razão ou pré-aviso. Impedido de se defender e tardando o auxílio, a sua vida escoava-se pelo sangue que ia vertendo. Está internado entre a vida e a morte, perante a raiva e indignação dos seus protectores que não vão em cantigas. Parece que acidentalmente alguém se esqueceu de um portão aberto e os cães, tal qual terroristas, aproveitaram a ocasião para a prática do crime. Gostaríamos que o “17” sobrevivesse. Infelizmente não sabemos ainda o desfecho desta tragédia, comum entre nós e fardo do nosso quotidiano. Dezassete é um número que não queremos ver multiplicado. Diz-se que a mudança dos tempos traz consigo a mudança das vontades e a nossa é a de acabar, de uma vez por todas, com aquilo que nos liga às arenas do circo romano. A Lei em vigor é branda com os donos em termos de incriminação, os cães não podem pagar as favas e os donos esconderem-se atrás da simples responsabilidade civil.
O Celso Gouveia nasceu serrano, fadado para a agricultura e pecuária, exactamente na mesma aldeia do 17, lugar que amava mas para ele sem futuro. Os seus pais sempre rataram por uma economia de sobrevivência, fortemente marcada pela austeridade e por vezes a rasar a fome, mercê da impiedade climática e da falta de meios. Anualmente matavam um porco e ele tinha que durar até ao ano seguinte, permanecendo cobiçado na salgadeira como o melhor dos bens. A carne do bicho era racionada, guardada para ocasiões especiais ou para alguém da família quando estava doente. O toucinho também não escapava à regra e o pão de centeio durava uma semana. Mesmo assim havia folar na Páscoa e broa quando iam à feira. Não raramente entremeavam o azeite com a banha e aguentavam-se com legumes, batatas e castanhas, ingredientes sempre presentes no caldo, por vezes enriquecido com alguns ossos. À medida que ia crescendo, e sem os pais darem por isso, o Celso sonhava em sair dali e vir trabalhar para a cidade. Tinha Lisboa como preferência e a referência foi-lhe alimentada por um primo, estabelecido no Lumiar e proprietário duma mercearia. A ocasião chegou com a ida para a tropa e ele nem queria acreditar, porque foi parar à Ajuda, ao Quartel dos “Lanceiros da Rainha”. Apesar da recruta ter sido dura, dois meses depois de instalado na Capital, já tinha engordado 6 quilos e nunca tinha sido tão bem tratado. Como era brioso e de poucas falas, acabou impedido de um tenente que sempre o amparou. Graças a ele, quando chegou à disponibilidade, arranjou trabalho numa fábrica, passando de camponês e cabo 17 a operário.
Mesmo depois da morte dos seus pais, que ainda lhe deixaram as casas velhas e um pedaço de pinhal, sempre voltava à terra que o viu nascer. Ia matar saudades e de lá sempre saía borracho, pelas agruras do passado e pela vitória na vida. Numa dessas deslocações, depois de bem comido e bebido, provavelmente mais bebido do que comido, porque se escapou para as bandas do rio, deu de caras com uma cadela e dois filhotes, todo eles famintos e de pêlo arrepiado. Pegando no cachorro que mais lhe agradou, disse: “ Tu hás-de ser como eu, hás-de ir para Lisboa comigo. Chamar-te-ás “17”, porque aqui o comandante sou eu e hei-de fazer de ti um bom cabo”. Com a mala do carro atulhada de batatas e garrafões de vinho e azeite, o cachorro viajou por entre as alcofas de castanhas que enchiam o banco traseiro do automóvel. Nessa altura já o Celso era viúvo, encontrando-se aos cuidados esporádicos de uma das filhas, mais amiga de reparos e menos dada a consolos. A patrulha viveu 10 felizes anos, até que o homem morreu e o cão foi posto na rua, à revelia do finado e para desgraça do animal.
A adaptação do cão não foi instantânea e os outros cães vadios também não ajudaram muito, porque o mordiam impiedosamente e jogavam-no para o pior dos territórios, arredavam-no da comida e sujeitavam-no aos piores abrigos. Breve virou uma carga de ossos e viu-se apoquentado pela sarna. A expulsão pela matilha levou-o à procura das pessoas, das conhecidas e desconhecidas, movido pela sobrevivência e cativo à sua experiência anterior. Valeram-lhe os bons ofícios dos vizinhos, conhecedores da sua história e amigos do seu dono. Mas outros fizeram o mesmo e todos lhe davam comida, o “17” virou mascote e tornou-se pertença do bairro, património colectivo e um amigo de toda a gente.
O Alexander, Alexandre para os de casa e prós amigos, quiçá primo daquele “Tony Silva” tantas vezes satirizado pelo Herman, é um cantor da berra, debaixo de bom astral e portador de boa onda, daqueles a quem é comum ouvir-se: “ stress out, tá-se bem! Estamos numa curte, man!” Sem compreender bem porquê e porque a vida tem destas coisas, a sua popularidade aumentou e os seus fãs crescem a cada dia que passa. Precocemente viu-se atirado para a ribalta, uma estrela na constelação cadente que é a vida dos artistas. Apesar da fama, continua um puto birrento e “engalinha-se” com tudo e todos, porque a idade não ajuda e não é fácil ser vedeta. A máscara “in love” que evidencia nos concertos, não se coaduna com a sua pessoa, porque tem imensas dúvidas, deseja mais poder e quer um lugar perpétuo ao sol. Como qualquer jovem é um contestatário, um revolucionário etário afogado no mundo dos negócios, condenado à imagem e ao politicamente correcto. Mas ao chegar a casa, descalça as botas e joga-as para o tecto, prega dois urros e atira-se sobre o sofá. Ali sim, ali está o verdadeiro Alexandre, distante dos microfones e das luzes, desobrigado dos sorrisos e igual si próprio. Deus no palco e rei em casa, adquiriu recentemente como súbditos três Pit Bull, em tudo idênticos aos que proliferam pelos bairros marginais. Apresenta-os como a sua “Trindade” e não tem sobre eles qualquer controle, deixando-os entregues ao seus instintos e acima do bem-estar e direitos dos demais, como três “alexanderzinhos” que todos têm que gramar. Não serão eles os filhinhos do sucessor do Júlio Iglésias? As estrelas têm destas coisas!
Alheio a tudo isto, o “17” descia a praceta do bairro, depois duma soneca e na procura dos últimos raios de sol, porque o frio o incomodava e ainda tinha que suportar a noite. Ia descontraído, sem pressas e sem “dar cartucho a ninguém”, no caminho rotineiro rumo ao lugar habitual. Inesperadamente, vindos não se sabe donde, 3 Pit Bull caiem-lhe em cima, atacando-o ferozmente e cortando-o indiscriminadamente, sem razão ou pré-aviso. Impedido de se defender e tardando o auxílio, a sua vida escoava-se pelo sangue que ia vertendo. Está internado entre a vida e a morte, perante a raiva e indignação dos seus protectores que não vão em cantigas. Parece que acidentalmente alguém se esqueceu de um portão aberto e os cães, tal qual terroristas, aproveitaram a ocasião para a prática do crime. Gostaríamos que o “17” sobrevivesse. Infelizmente não sabemos ainda o desfecho desta tragédia, comum entre nós e fardo do nosso quotidiano. Dezassete é um número que não queremos ver multiplicado. Diz-se que a mudança dos tempos traz consigo a mudança das vontades e a nossa é a de acabar, de uma vez por todas, com aquilo que nos liga às arenas do circo romano. A Lei em vigor é branda com os donos em termos de incriminação, os cães não podem pagar as favas e os donos esconderem-se atrás da simples responsabilidade civil.
Esta história é fictícia, mas podia ser real; fruto da nossa imaginação, mas possível de acontecer. Não se pretende aqui incriminar ninguém, apenas salvaguardar o direito canino à existência, porque tudo acontece pelo beneplácito humano. E bem vistas as coisas, os cães são os menos culpados, quer sejam terroristas ou não. Sabemos educar cães e estamos cá para isso, para aconselhar os donos e aliviar o sofrimento dos seus parceiros, nascidos por consentimento e aprimorados para além da sua vontade.