Todos nos lembramos, nem
que seja da banda desenhada, da imagem dum jumento evoluindo cabisbaixo,
inexpressivo, de orelhas tombadas e de cauda a bater nos curvilhões para enxotar
as moscas. Com os burros em vias de extinção, não nos faltam cães que os
substituam, por terem sido castrados, subaproveitados e demasiado mimados,
todos vítimas da forçada dependência que a muitos induz à manha e a um número
infindo de taras, contribuindo assim para o seu envelhecimento precoce e
encurtamento de dias.
Como falar de cães é falar
também dos homens, do bem e do mal que lhes causam, conhecendo-se de antemão o
dolo e as incapacidades imputadas pela excessiva dependência, importa dissecar
as causas que a subsidiam e sustentam, normalmente indutoras à manha canina que
obsta ao bem-estar e ao bom uso dos cães, animais sociais que sempre reflectem
o carácter da liderança de que são alvo e que os leva à assunção de díspares
posturas e comportamentos, já que não estamos a lidar com uma espécie selvagem,
autónoma e por conseguinte auto-suficiente.
Quando iniciamos o
processo de ensino de um cão somos obrigados a optar: ou reforçamos a
dependência ou subsidiamos a coragem do animal, opção intimamente ligada às
expectativas do seu proprietário e ao serviço canino procurado, que não nunca deverá
desconsiderar o particular do indivíduo e a personalidade do seu dono. Ainda
que as duas opções provenham do condicionamento e visem o controlo do cão, cada
uma delas serve diferentes propósitos e exige díspares posturas da liderança
para o alcance dos objectivos binomiais, que deverão harmonizar-se com o
bem-estar do animal.
Exceptuando os ditos “cães
de companhia”, que são terapeutas e dependentes por excelência, nenhum “cão de
serviço” dispensa a autonomia condicionada no seu desempenho, porque doutro
modo não teria qualquer préstimo. Alcançar essa autonomia, que acontece pelo
treino árduo e rigoroso, não está ao alcance de todos os donos ainda que a
desejem, mercê da ancestral dificuldade entre o desejo e a sua concretização.
Um dos cães que não dispensa a autonomia condicionada é o “cão de guarda”,
companheiro que exige em simultâneo controlo e ânimo, procedimentos certos e constância
nas acções, para quem a excessiva dependência é um verdadeiro atentado ao seu
desempenho.
Como homens e cães aprendem
com os seus erros, ao invés de discriminarmos aqui todos os procedimentos
correctos a ter com um cão de guarda, vamos apenas adiantar os erros mais
comuns fornecidos pelos seus líderes, que reforçando a sua dependência e não
subsidiando a sua coragem, acabam por torná-los inaptos para o serviço e presa
fácil para os seus adversários, por falta da autonomia que melhor serviria a
sua salvaguarda e missão. Se é verdade que um cão nasce guardião, também não é
impossível deixar de sê-lo, bastando para isso uma liderança imprópria e inibidora,
facto comprovado pelo sucesso na reeducação canina.
Nunca nos cansamos de
dizer e vamos dizê-lo mais uma vez: a
esmagadora maioria dos cidadãos não necessita e não apresenta condições para
ter um cão de guarda, havendo alguns que os têm e que jamais deveriam tê-los!
Para além das insanidades que levam à procura de um cão assim (não estamos no Far
West e o Django é uma personagem de ficção), essa história de “quem tem medo,
compra um cão” nunca deu bom resultado, porque o medroso ou acaba mordido ou acaba
por lançar o cão sobre tudo e todos.
Imaginemos um cão nascido
para guarda com todas as aptidões para isso, sujeito a um dono inibido e pouco
expressivo, que guarda as suas emoções para si e não as transmite ao animal,
fraco de voz e dado à surdina, parco de indução e pouco dado ao incentivo,
pactuante com a desobediência do cão e avesso a novos desafios, cujas metas e
objectivos são curtos num calendário por definir, que passa o tempo a inibir o
animal, dando-lhe um tratamento antropomórfico e atribuindo-lhe um nome próprio
para cães indefesos, que resiste a fazer correcções e que perante o desacerto
do cão ainda o felicita, não hesitando em suborná-lo ou distraí-lo quando não
cumpre com o esperado. Virá alguma vez este cão a ser valente? Terá o ânimo necessário ou sentir-se-á abandonado? Conseguirá o dono travá-lo em condições desfavoráveis? Um líder assim não tornará o animal
simultaneamente carente e manhoso? O cão não esperará o momento “para fazer das
suas”? Se não for exercitado para guarda, não canalizará a sua agressividade
para outros cães?
É evidente que não existem
cães perfeitos, mas já é tempo de deixarmos de culpabilizá-los pelo seu
insucesso laboral, mentira e filosofia que todos os condutores mal adaptados
tendem a absorver por lhes ser cómodo e não lhes exigir qualquer mudança. Temos
entre nós um slogan que diz: “a alma do cão é a vontade do dono”, o que equivale
a dizer que o animal não vai para além daquilo que o seu dono for capaz. O
adestramento é um estado de alma que se alcança pela sensibilidade, experiência
e clarividência, uma predisposição que ao ser correcta aplica a emoção e a
razão na ocasião certa. Na cinotecnia, como em tantas outras coisas na vida, a
culpa nunca é de quem não cumpre as ordens, mas de quem não as sabe fazer
cumprir.
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