sábado, 17 de dezembro de 2016

REFORÇAR A DEPENDÊNCIA OU SUBSIDIAR A CORAGEM?

Todos nos lembramos, nem que seja da banda desenhada, da imagem dum jumento evoluindo cabisbaixo, inexpressivo, de orelhas tombadas e de cauda a bater nos curvilhões para enxotar as moscas. Com os burros em vias de extinção, não nos faltam cães que os substituam, por terem sido castrados, subaproveitados e demasiado mimados, todos vítimas da forçada dependência que a muitos induz à manha e a um número infindo de taras, contribuindo assim para o seu envelhecimento precoce e encurtamento de dias.
Como falar de cães é falar também dos homens, do bem e do mal que lhes causam, conhecendo-se de antemão o dolo e as incapacidades imputadas pela excessiva dependência, importa dissecar as causas que a subsidiam e sustentam, normalmente indutoras à manha canina que obsta ao bem-estar e ao bom uso dos cães, animais sociais que sempre reflectem o carácter da liderança de que são alvo e que os leva à assunção de díspares posturas e comportamentos, já que não estamos a lidar com uma espécie selvagem, autónoma e por conseguinte auto-suficiente.
Quando iniciamos o processo de ensino de um cão somos obrigados a optar: ou reforçamos a dependência ou subsidiamos a coragem do animal, opção intimamente ligada às expectativas do seu proprietário e ao serviço canino procurado, que não nunca deverá desconsiderar o particular do indivíduo e a personalidade do seu dono. Ainda que as duas opções provenham do condicionamento e visem o controlo do cão, cada uma delas serve diferentes propósitos e exige díspares posturas da liderança para o alcance dos objectivos binomiais, que deverão harmonizar-se com o bem-estar do animal.
Exceptuando os ditos “cães de companhia”, que são terapeutas e dependentes por excelência, nenhum “cão de serviço” dispensa a autonomia condicionada no seu desempenho, porque doutro modo não teria qualquer préstimo. Alcançar essa autonomia, que acontece pelo treino árduo e rigoroso, não está ao alcance de todos os donos ainda que a desejem, mercê da ancestral dificuldade entre o desejo e a sua concretização. Um dos cães que não dispensa a autonomia condicionada é o “cão de guarda”, companheiro que exige em simultâneo controlo e ânimo, procedimentos certos e constância nas acções, para quem a excessiva dependência é um verdadeiro atentado ao seu desempenho.
Como homens e cães aprendem com os seus erros, ao invés de discriminarmos aqui todos os procedimentos correctos a ter com um cão de guarda, vamos apenas adiantar os erros mais comuns fornecidos pelos seus líderes, que reforçando a sua dependência e não subsidiando a sua coragem, acabam por torná-los inaptos para o serviço e presa fácil para os seus adversários, por falta da autonomia que melhor serviria a sua salvaguarda e missão. Se é verdade que um cão nasce guardião, também não é impossível deixar de sê-lo, bastando para isso uma liderança imprópria e inibidora, facto comprovado pelo sucesso na reeducação canina.
Nunca nos cansamos de dizer e vamos dizê-lo mais uma vez: a esmagadora maioria dos cidadãos não necessita e não apresenta condições para ter um cão de guarda, havendo alguns que os têm e que jamais deveriam tê-los! Para além das insanidades que levam à procura de um cão assim (não estamos no Far West e o Django é uma personagem de ficção), essa história de “quem tem medo, compra um cão” nunca deu bom resultado, porque o medroso ou acaba mordido ou acaba por lançar o cão sobre tudo e todos.
Imaginemos um cão nascido para guarda com todas as aptidões para isso, sujeito a um dono inibido e pouco expressivo, que guarda as suas emoções para si e não as transmite ao animal, fraco de voz e dado à surdina, parco de indução e pouco dado ao incentivo, pactuante com a desobediência do cão e avesso a novos desafios, cujas metas e objectivos são curtos num calendário por definir, que passa o tempo a inibir o animal, dando-lhe um tratamento antropomórfico e atribuindo-lhe um nome próprio para cães indefesos, que resiste a fazer correcções e que perante o desacerto do cão ainda o felicita, não hesitando em suborná-lo ou distraí-lo quando não cumpre com o esperado. Virá alguma vez este cão a ser valente? Terá o ânimo necessário ou sentir-se-á abandonado? Conseguirá o dono travá-lo em condições desfavoráveis? Um líder assim não tornará o animal simultaneamente carente e manhoso? O cão não esperará o momento “para fazer das suas”? Se não for exercitado para guarda, não canalizará a sua agressividade para outros cães?
É evidente que não existem cães perfeitos, mas já é tempo de deixarmos de culpabilizá-los pelo seu insucesso laboral, mentira e filosofia que todos os condutores mal adaptados tendem a absorver por lhes ser cómodo e não lhes exigir qualquer mudança. Temos entre nós um slogan que diz: “a alma do cão é a vontade do dono”, o que equivale a dizer que o animal não vai para além daquilo que o seu dono for capaz. O adestramento é um estado de alma que se alcança pela sensibilidade, experiência e clarividência, uma predisposição que ao ser correcta aplica a emoção e a razão na ocasião certa. Na cinotecnia, como em tantas outras coisas na vida, a culpa nunca é de quem não cumpre as ordens, mas de quem não as sabe fazer cumprir.     

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