sábado, 3 de dezembro de 2016

A FRACÇÃO DE SEGUNDO

Costuma dizer-se que para morrer basta estar vivo, numa alusão à celeridade e à surpresa com que tudo nos acontece. Também não é raro ouvirmos que este e aquele cão são extremamente obedientes, que obedecem prontamente àquilo que lhes é solicitado. Seria bom que assim fosse mas será mesmo? Não dependerá o cumprimento das ordens da inequívoca prontidão do seu emitente visando a salvaguarda e o uso dos animais? Nestes circunstâncias, poderá a certeza de um código dispensar o acerto de seu emissor? A manha que leva à resistência dos comandos não será da exclusiva responsabilidade dos líderes? Quantos cães já se perderam pela gaguez, hesitação e inoperância seus dos donos? Como o assunto é sério, somos obrigados a abordá-lo, porque doutra maneira malbarataríamos o nosso propósito e missão.
Bem-comparados, certos donos lembram alguns pais actuais que não se cansam de dizer a mesma coisa aos filhos sem alcançarem deles qualquer alteração, argumentos repetidos que apenas reforçam a resistência animal e causam sérios entraves ao condicionamento pretendido, gente literalmente “a falar para o boneco” ou a fazer “figura de palhaço”, que desresponsabiliza os seus cães pelo muito que lhes quer, atribuindo-lhes um livre arbítrio que não alcançam e que lhes pode ser fatal, tratamento antropomórfico próprio de casais que não têm filhos em comum e que procuram desta forma a comunhão de afectos no seu viver quotidiano. Assim como os cães não podem dispensar a liderança, os seus donos não podem prescindir da autoridade, porque nem tudo sem rosas e a inversão de papéis pode induzir à irremediável perca dos animais, que no seu estado natural e sem intromissão humana, obedecem prontamente aos seus líderes pela necessidade de sobrevivência.
Instalar um código de actuação num cão, capaz de produzir alteração no seu comportamento, é também condicionar o seu dono, porque doutra forma a unidade binomial será circunstancial e sairá comprometida. Homens e cães melhoram com o tempo e o treino, aprendem com os erros e buscam aprovação, pelo que pactuar com os erros ou desacertos dos animais é criar-lhes barreiras cognitivas que impedirão o seu aprimoramento e progresso, despromovê-los a uma condição menos meritória. Poderá um adestrador pactuar com o desacerto dos seus instruendos humanos? Poder, pode mas não deve, isto se for honesto e não bajulador, porque desacertos são erros que não aproveitam a homens e cães, caso passem intactos e não produzam alteração.
A educação dos donos não dispensa a absorção do código, o seu domínio e articulação até se tornarem automáticos. O código, enquanto conjunto de ordens explícitas, implicitamente não dispensa a sua componente física transmitida pelas diferentes posturas corporais do condutor, que deverão estar em sintonia com as acções verbais solicitadas, porque se a voz disser uma coisa e a mímica outra, bem depressa o cão cairá em confusão. Nos cães destinados à indústria cinematográfica o primeiro a absorver a personagem é o dono, para poder vestir atempadamente o animal na personagem fictícia, o que não é tarefa fácil nem se alcança com um esporádico papel de “compére” numa rábula duma colectividade de Quadrazais ou da Rechocha. Se o cão tem que se apresentar furioso, terá que ser induzido à fúria; se tem que se mostrar amigável, deve absorver carinho e assim por diante. O cão de espectáculo não é convocado para mostrar as suas habilidades (o que acontece no circo), mas para dar vida e enriquecer a personagem que encarna pelas suas mais-valias, sabendo-se que o seu desacerto prejudica seriamente aqueles que com ele contracenam e compromete de sobremaneira o êxito das cenas (não se podem dirigir cães com as mãos no bolsos).
Dito isto, treinar cães para o mundo do espectáculo é prepará-los também para a sobrevivência e para os perigos que irão enfrentar na vida real, onde os erros do líder podem implicar no dolo ou desaparecimento precoce dos animais. Perante os perigos, o dono é obrigado a estar um passo à frente para poder valer ao animal, encontrar-se preparado para toda e qualquer eventualidade para não vir a ser surpreendido e perder o cão, acerto só possível pela antecipação e pelo apego aos procedimentos adiantados pelo código, numa fracção de segundo que poderá fazer toda a diferença.

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