quarta-feira, 21 de setembro de 2016

ELOGIO OU COMIDA?

Tratemos primeiro dos factos. Segundo fez saber Gregory Berns, um neurocientista da Universidade de Emory de Atalanta/Geórgia/USA, que recorreu ao uso de ressonância magnética para medir a actividade cerebral dos cães, trabalho pioneiro que combinou dados de imagens cerebrais com experiências comportamentais e já publicado na revista “Cognitive and Affective Neuroscience”, a maioria dos cães dá mais importância aos elogios dos donos que à comida, preferindo um dono carinhoso ao invés da barriga cheia.
Esta recente pesquisa veio dar-nos razão quanto aos métodos de treino, porque sempre resistimos, quando nos foi possível, à distribuição de guloseimas aos cães que nos foram e são confiados, parecer que nos isolou e que a ciência confirma agora como certo. A nossa resistência à recompensa pela comida, que para a maioria dos cães é perfeitamente dispensável, mormente nos seleccionados para o trabalho, prendeu-se e prende-se com a salvaguarda dos cães, com a recusa de engodos e com a formação de um carácter impoluto e incorruptível, onde o suborno não pode ter lugar por ser contraproducente, recompensando os cães pelo carinho e pelo elogio que demonstram o apreço dos donos, que eles desejam, esperam, sentem e compreendem.
Apesar disso e perante dificuldades com alguns indivíduos ou raças, notoriamente mais instintivos que ricos em personalidade, para serviços que não punham em causa a sua salvaguarda, usámos e continuaremos a usar a comida como subsídio para o condicionamento canino pretendido, excepção que aplicámos e aplicamos à maioria dos cães de caça, carentes dos necessários vínculos afectivos com os donos, por modo próprio ou por desastrosa indução. Contudo, nunca fizemos desta excepção regra, antes levámos os donos a uma mudança de atitude e de práticas, levando-os a reconhecer a importância do tratamento desejável para o alcance das respostas caninas expectáveis oferecidas pelo treino, libertando-os da paixão inconsequente para a prática do amor constante que ganha corpo no cuidado com os cães.
Está à vista de qualquer um e parece não suscitar dúvidas a ninguém, que a recompensa pela comida é o modo mais célere e menos exigente para se educar um cão, isto se ele tiver um forte impulso ao alimento: se for guloso. Sabemos também que nos últimos 25 anos, com a generalização da prática do adestramento entre os civis e perante a necessidade de qualquer um ser capaz de educar o seu cão, mesmo que ele não houvesse nascido ou fosse seleccionado para isso, que o recurso à gula canina seria o caminho escolhido perante adestradores inadequados, desprovidos de maiores requisitos técnicos, com menores índices atléticos (crianças e idosos), mais chegados ao lúdico que à seriedade necessária, desapegados de procedimentos e desprovidos de disponibilidade. Esta novidade acabou por recrutar para o adestramento gente que no passado dificilmente teria lugar nele, assim como acabou por engordar os lobbies da indústria alimentar e de acessórios para cães, cujo cúmulo são as coleiras de cabresto.
No caso português, que sempre acontece mais tarde, este método pegou de estaca e rapidamente, como se encerrasse em si mesmo todo o potencial do “reforço positivo”, devido ao advento e aumento dos rafeiros em treino, maioritariamente cães caçadores ou deles descendentes, caracterizados pela gula e forte carga instintiva, mais resistentes à autonomia condicionada e mais dados à liberdade de movimentos. Em simultâneo, porque são poucas as escolas caninas que aqui apetrecham cães para a actividade cinegética, os comuns centros caninos viram-se invadidos por toda a casta de bracóides, lebróides, bassetóides e outros, raças de cães que continuam a educar como focas ou como os leões no circo por desconhecimento doutras técnicas.
Já o fizemos e vamos continuar a fazê-lo, a convidar os donos isoladamente para a escola e só depois os cães, porque os últimos não nascem ensinados e carecem de quem os ensine. Dizem que o casamento é “uma carta fechada”, pode ser que seja mas a constituição binomial não deverá sê-lo, porque tudo aquilo que os cães exigem está perfeitamente ao alcance dos seus proprietários. Mais do que subornar cães, é urgente adequar os donos para ensiná-los a sobreviver, dotar os seus líderes de técnicas que facilitem a sua compreensão e possibilitem a mútua comunicação, lapidando-os para o uso acertado das suas necessidades, prerrogativas, emoções e afectos, mediante o aproveitamento do potencial dos cães que conduzem. Operar tamanho aprimoramento só será possível pelo amor aos cães, não um amor inconsequente mas aquele que produz alteração, que leva os homens ao aumento da sua disponibilidade física e cognitiva, a melhorar a sua voz, postura e mímica para que a cumplicidade aconteça e seja duradoura. Se a uns teremos que ensinar a amar e a ser pacientes, a outros teremos que ajudá-los a exteriorizá-lo!
Como se depreende, nada disto resulta de truques ou artimanhas mas sim de uma devoção que não dispensa a entrega total e que possibilita a fusão de propósitos e sentimentos entre homens e cães, tornando-os pela troca de afectos “unha com carne”. Trabalhar assim não cansa pelo muito que se aprende e alcança.

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