Receosa, uma senhora acerca-se de nós, de olhar vago e disperso, desesperada e sem querer incomodar, tarda em falar e questiona: “Ensinam cães?” Diante de resposta afirmativa, completa e sentencia: “Esta vai ser a última tentativa!” Intrigados, perguntámos-lhe que cão tinha e quais os problemas que lhe causava. Tratava-se de uma pastora alemã, com 12 meses de idade, recém-chegada de um internamento escolar, onde permaneceu por três meses, que persistia em rebocá-la desalmadamente na rua, como se não houvesse tido qualquer tipo de ensino. Dissemos-lhe que o problema era de fácil resolução, que 20 minutos depois a cadela adquiria outra postura e que a fosse buscar ao carro, que se encontrava a 250m de nós. Dizendo-se incapaz para o fazer, com medo de se desequilibrar e cair, na possibilidade de encontrar outro cão, acabámos por socorrê-la e um de nós foi buscar o animal. A cadela, uma lobeira red sable, de boa construção e aprumos, apesar de magra e a comer ração do “Continente”, para além de ter as unhas exageradamente compridas, o que denunciava o seu enclausuramento forçado, mostrou-se ansiosa e por demais “pendurada à esquerda”, desencantada pela trela e resistente a qualquer tipo de cumplicidade.
Depois de experimentarmos a cadela e de explicarmos para a sua condutora os procedimentos básicos para operar a correcção do animal, integrámos ambas na classe, apostados na sua evolução e melhor entendimento. Breve tivemos que desistir da ideia, porque a senhora tinha o andamento travado, parava amiúde, cansava-se demasiado e não conseguia fazer uso dos comandos. Não nos restando outra alternativa diante do nosso propósito inicial, a quem o desalento da dona nada serviria, optámos pela troca de condutores, entregando-lhe um cão já feito e a sua cadela a um condutor mais experimentado, para que não desanimasse e não visse na pastora “um bicho de sete cabeças”! Apesar do esforço da classe, já que todos os alunos acabaram por conduzir a cadela, a senhora mostrou pouco empenho, muito queixume, quase nenhuma esperança e acusou o esforço em demasia. Num ápice percebemos que o maior problema residia na dona e não na cadela. Decididos a ajudá-la, querendo integrá-la no nosso meio e compreender os seus problemas, convidámo-la para almoçar connosco, o que se veio a verificar, ficando um de nós com a cadela presa a uma perna, a comer apressadamente e com o bicho debaixo de olho, porque “quieto” não tinha e ladrava às pessoas e aos cães que por ali passavam.
No repasto ficámos a saber que a cadela lhe tinha sido oferecida, que não tem em mão qualquer tipo de registo dela e que o animal coabita com a família dentro de casa e que passa a maior parte do tempo num exíguo quintal anexo à habitação (um T0), para alegria dos vizinhos que simpatizam com ela. Que a sua dona, antes de nos contactar, estabeleceu contacto com outro treinador, que após as conhecer, nunca mais voltou e nem sequer lhe atende os telefonemas. A senhora, divorciada e quase sem proventos, tem ao seu encargo 3 filhos e 3 netos. Nenhum dos seus filhos trabalha e o neto mais velho tem quatro anos. Dois dos filhos, um rapaz de 18 anos e uma menina de 13, ainda estudam. O mancebo estuda teatro a 30km de casa e a menina frequenta uma academia de música a 50km da residência familiar. A filha mais velha, agora com 25 anos, permanece em casa e exige constantemente a presença da mãe a seu lado, apesar de ter saído do lar aos 16 anos e de ter retornado ali com 3 filhos nos braços, sem marido e ávida de socorro. Forçada pelas circunstâncias e a todos querendo valer, a matriarca optou por vender a sua casa e com o dinheiro da venda tem vindo a suprir as necessidades do seu agregado familiar. Antes de ter alugado o actual T0 onde vive, a senhora ainda tentou a sua sorte numa cidade da Beira Litoral e noutra do Oeste, lugares que deixou por inadaptação.
Perante um cenário destes, pergunta-se: porque raio foi ainda arranjar a cadela? Para cúmulo das suas penas? Certamente um acto impensado, talvez forçado por um apelo incontido e pela necessidade de se sentir feliz, porque as alegrias são poucas e quer livrar-se dos 6 ansiolíticos, anti-depressivos e calmantes que toma diariamente para se manter de pé, que custam um pouco mais do que a saca da ração para a pastora alemã, apesar do actual desentendimento com a cadela mais agudizar a sua situação e poder resultar no descarte do animal. Sabemos quão complicadas são as doenças de cariz psicológico, que algumas se agravam e tornam-se crónicas, que ao longo da vida ou se aumentam os proventos ou as dívidas, que a actual crise económica, enquanto modo de selecção, não se compadece dos mais fracos e que muitos não resistirão, que pessoas como esta senhora incorrem sistematicamente nos mesmos erros estratégicos, desistindo de si mesmas e dos seus objectivos, desvalorizando muitas vezes a sua própria vida e a mão que lhes é estendida em ajuda, que já nos bastam os nossos males e que não temos solução para todos os alheios. Diante destes factos não seria mais sensato e mais cómodo fazer como o outro treinador, que nunca mais deu notícia, já que é quase certo que iremos desperdiçar tempo e paciência, que não veremos o nosso trabalho remunerado nem o nosso esforço recompensado?
Entre nós, no dia em que o interior veio para o litoral, deixou a solidariedade no lugar recôndito donde veio, substituindo-a pelo culto individual que grassa nas cidades, empestadas de grandes massas humanas, indiferentes entre si e dominadas pela política de “cada um que se desenrasque”, onde todos são vítimas uns dos outros e ninguém se compadece do mal alheio, mesmo que ele bata na porta à nossa frente ou se cruze connosco na rua. Talvez por loucura ou teimosia, nós não pensamos e não agimos assim, porque entendemos que viemos para servir e não para ser servidos, mesmo que a gratidão deste mundo habite nos quartos traseiros de uma mula e um ou vários coices nos atinjam, fado a que infelizmente já estamos acostumados. Se a dita senhora nos pediu ajuda, não a deixaremos ir de mãos a abanar, tudo fazendo para que melhor se entenda com a sua cadela e possam as duas ser felizes. A recuperação da pastora acontecerá sem grandes delongas, porque é jovem, curiosa, e activa, não apresentando qualquer entrave para o seu processo/progresso pedagógico. Será através da cadela que iremos recuperar a dona, pessoa desnorteada, carente de amor-próprio, deprimida e à beira sabe-se lá de quê, que há muito perdeu a esperança e que deixou de acreditar em si mesma, pois já vimos alguns milagres operados pela terapia canina mediante a serotonina.
Não temos como melhorar o seu orçamento familiar, mas podemos indicar-lhe uma ração mais barata e própria para a idade da cadela, assim como ensinar-lhe a fazer o penso diário do animal por apenas 85 cêntimos (no máximo). Não podemos resolver os seus dramas familiares, mas podemos dividir a nossa experiência com ela, animá-la quando estiver abatida e entrosá-la no nosso meio, para que não se sinta só e consiga ir adiante, fazendo uso da razão para que não seja traída pela emoção, como tantas vezes lhe tem sucedido, já que ensinar cães em tempo de crise é primeiro valer aos donos, porque a tanto nos obriga o respeito pela dignidade humana. Não deixará de ser nossa aluna se não tiver como pagar as mensalidades e mesmo que opte por se livrar da cadela, não deixaremos de ser seus amigos e de nos interessarmos por ela. A cadela ainda terá muitas oportunidades para ser ensinada correctamente, a dona, ao invés, está a queimar os últimos cartuchos e nós queremos que seja bem sucedida. Oxalá consiga retomar a sua vida e conservar a sua amiga de quatro patas, adequando-a para si, porque neste projecto não está só e pode contar connosco.
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