sexta-feira, 1 de novembro de 2013

VER MORRETES E MORRER

Em Morretes não vi cães, e se os vi não me lembro deles, mas não dei o tempo por desperdiçado. Fui levado para lá por outras razões, sem saber o que me esperava, por uma estrada sinuosa, com bancos de nevoeiro, rodeada de mata infinda e infestada de curvas e sobressaltos, coberta de humidade, ocasionalmente ladeada por lençóis de água, misteriosa e quase infinda, tumultuada por camiões e salpicada por pequenos postos de venda. Depois de mil e uma ladeiras serra abaixo, cheguei lá e não vi razão de espanto, somente pequenas casas, velhos armazéns de piso térreo, a lembrar antigas colónias e a anunciar uma cidade do passado, o que a princípio me fez lamentar tanto quilómetro andado (vinha de Curitiba). 
Pouco a pouco, o que me era familiar tornou-se idílico junto do rio, apesar daqui e ali recordar pedaços de Sintra, alguns braços do Sado e até o Portinho da Arrábida. E como fui para lá num fim-de-semana, aquele pequeno aglomerado habitacional, quase por completo dedicado ao turismo, recebeu-me de portas abertas, propondo-me a compra de produtos da terra e um olhar mais atento sobre o artesanato local, engenhoso, apelativo, segundo o gosto daquelas paragens, de influências bugres e italianas, denotando a crendice popular, o simples viver tropical e a mística presente na alma brasileira, rural e infinda, onde os sentimentos se confundem com os desejos e acabam por nortear o viver das gentes. 
Debaixo daquela luz verde e difusa, bem diferente da nossa, branca e azulada, o rio anuncia-se majestoso, calmo e sereno, numa abrigada típica de porto real, não sendo difícil de imaginar vários bergantins no seu leito, com trajes e figuras doutrora. Morretes junto ao rio é um sonho de meninice tornado realidade, uma espécie de ilha encantada que finalmente encontrámos, reforçada por construções rústicas e multicolores, povoada por gente simpática e feliz. Os restaurantes e pousadas debruçam-se sobre o rio, tirando dele uma atmosfera relaxante, convidativa e atemporal, levando-nos à introspecção pelo deslumbre da paisagem. 
Algumas construções ribeirinhas lembram certos recantos europeus, pela sua graça e arquitectura, apesar da luxuriante e bem cuidada flora tropical ao seu redor, erguendo-se como pequenos palácios dedicados à evasão e ao recolhimento. Os jardins envolventes, que se casam perfeitamente com a paisagem, são de cariz romântico, limpos e próprios para fotografias de postal, pequenos canteiros que espreitam o esplendor da mata atlântica à sua frente.
 

Como bom português e por sugestão, acabei por atravessar a graciosa ponte sobre o rio e decidi-me a provar a iguaria dali: o barreado, que inevitavelmente é… de origem açoriana e obedece a um ritual já com 300 anos, uma espécie de “cozido à portuguesa” tropical, que leva 20 horas a cozer dentro de um grande tacho de barro, composto por várias carnes, arroz e farinha de mandioca, servido com frutas várias e acompanhado com vinho ou cachaça. Comi muito e bem, e paguei bem pouco. 
As horas correram mais depressa do que eu queria, com alguma relutância abandonei aquele paraíso. Rendido às evidências, porque o caminho de regresso era longo, a humidade aumentava, a estrada não era pêra doce e o carro era velho. Lá voltei para Curitiba, onde a hospitalidade há muito foi de férias e o pessoal é por norma “grosso” e “metido a besta”, apesar da cidade ser habitada por uma maioria caucasiana, facto visível no rosto das gentes e no nome das ruas. Os pardos e caboclos que habitam maioritariamente nos subúrbios, ainda que substancialmente mais pobres, são mais acessíveis e prestáveis, muito embora hajam muitos brancos a coabitar com eles e a viver nas mesmas condições. Dizer-se e ser português ali, não é fácil, “hay que tener cojones”, porque sem grande dificuldade, qualquer “portuga” se verá acusado do extermínio dos índios e responsável pela escravatura. Exemplo dessa pressão foi o acontecido alguns dias antes com uma senhora, que quando inquirida, me respondeu ser de origem italiana, apesar de se chamar Maria de Jesus Pereira da Silva (apelidos vero italianos).
Enquanto voltava, há medida que a noite avançava, tocado por Morretes e abafado pela mata atlântica, dizia para mim mesmo: depois do que vi, a morte pouco importa e morrer por morrer, que seja em Morretes ou num lugar assim. Lamentavelmente, a maioria dos brasileiros jamais ali irá e muitos paranaenses morreram e continuarão a morrer sem conhecer essa dádiva de Deus, um éden que Ele colocou à sua disposição, dentro do seu Estado e ali tão perto. Hei-de lá voltar e para a próxima vou de trem! 


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