Na semana passada contaram-me uma velha anedota que se encaixa perfeitamente como introdução ao tema de hoje: o perfil do condutor canino português, porque já demos aulas por toda a parte e ele possui características que mais ninguém tem. “Uma prestigiada agência norte-americana de espionagem recrutou três candidatos para os seus quadros: um alemão, um inglês e um alentejano, todos eles casados e necessitados de emprego. O teste de aprovação consistia em abrir a porta de um quarto escuro e abater a tiro a sua própria esposa. A sorte ditou que o alemão fosse o primeiro, deram-lhe a shotgun e ele lá foi. Apesar da delonga, não houve tiros e nada sucedeu, regressando o homem bastante abatido. Depois foi a vez do inglês e também não conseguiu. Finalmente deram a arma ao alentejano e ele lá foi resoluto. Ouve-se o estoiro de vários tiros, os gritos de uma mulher e o estalar de madeira a partir-se. O danado regressa e diz para os seus examinadores. “ Vossamecês podiam ter-me dito que os cartuchos eram de pólvora seca. A magana deu-me cá uma trabalheira, porque para a matar, tive que a aviar à cadeirada!”
Falar sobre portugueses não é fácil, porque não há nenhum igual e falar deles como condutores de cães, ainda é mais difícil, porque cada um pensa e age à sua maneira. No entanto, apesar da multivariedade e da heterogenia presente nas terras lusas, sobressai um tipo de comportamento maioritário, um modo português de fazer as coisas, que tem tendência a alterar-se, quando o luso abandona a sua terra e vai trabalhar para outro país, onde geralmente se destaca pela positiva e alcança notoriedade. Ao contrário doutros, que chegam ao treino à hora marcada ou 15 minutos antes, o português atrasa-se entre 15 a 40 minutos, aparecendo sorridente, como se houvesse chegado a horas e não estivesse a prejudicar o rendimento colectivo. No entanto, quando solicitado para isso, não se importa de trabalhar fora de horas, o que para outros seria no mínimo impensável. Quando obrigado a faltar à escola, ao invés de avisar antes da abertura dos trabalhos, uma hora ou duas depois, diz que não pôde vir, quando diz, e amofina-se quando o chamam à atenção.
O comportamento em classe do condutor canino português é por norma emocional, barulhento, indisciplinado e dominado pelo improviso, o que atrasa as metas e compromete os objectivos, graças ao desapego pelos procedimentos, ao desrespeito pelas regras, à ausência de serenidade e ao desprezo pelo bom senso, o que dificulta seriamente o condicionamento dos cães. Raro é o condutor que é melhor ouvinte do que falador, havendo alguns que nunca se calam ou que falam quando deviam ficar calados, porque também eles são objecto de instrução. Bem estaríamos se o fenómeno se remetesse apenas aos centros de adestramento. Há cerca de dois anos atrás, um canal de televisão foi auscultar estudantes universitários chineses e portugueses, ao abrigo do intercâmbio cultural entre Portugal e a China. Os portugueses enviados para as faculdades chinesas, estranharam o silêncio e a veneração que os seus colegas orientais nutriam pelos seus mestres. Os chineses vindos para Portugal, quando entrevistados acerca das diferenças no ensino, disseram que aqui todos falam e ninguém se entende. É possível que o burburinho que nos assola resulte do desprezo pelo conhecimento erudito, responsável pelo aparecimento de dúvidas para a sua aquisição, que exige atenção e concentração para melhor ser compreendido e absorvido.
Esse desprezo pelo conhecimento erudito, que sempre aguarda por um milagre e remete para a sorte o insucesso, quando não culpabiliza os cães, torna o condutor canino português num prático e trará ao mundo adestradores com igual insuficiência, gente capaz de copiar na íntegra, mas incapaz de ir mais adiante, própria para aceitar modelos e imprópria para criar os seus. O português que vai aos centros de treino caninos, geralmente mal informado, é mais confiado do que precavido, pouco exige e depressa sai conformado, porque é mais esperançado do que arguto, o que o transforma numa presa fácil. Vejamos o caso verídico de uma senhora, a braços com um cão anti-social, que se deslocou a uma escola para o sociabilizar. Quando lá chegou, mandaram-na permanecer dentro do carro com o cão ao seu lado, para ele se familiarizar com os outros cães, que trabalhavam no recinto à sua frente, dizendo-lhe que no dia em que o cão deixasse de lhes ladrar, estaria apto para conviver com eles. Depois de algumas destas “lições”, que ela aproveitava para ler o jornal, decidiram-se por levar o cão à pista e apresentá-lo aos outros cães. Como outra coisa não seria de esperar, o animal arremeteu-se contra os outros, retornando ao banco do pendura, “porque ainda não se encontrava preparado”! A pobre coitada andou por ali 3 meses, sem resultados à vista, até que mandou bugiar o treinador e a escola.
O mau hábito de pouco questionar e de o substituir pelo juízo próprio, lapso a que os seus mestres dão pouca ou nenhuma importância, quando não o aproveitam, porque lhes garante a supremacia, evita-lhes maiores explicações, poupa-lhes trabalho e aumenta-lhes os proventos, mas que em simultâneo leva à formação de alunos ainda piores do que eles, torna o ensino do condutor canino português fastidioso, arrastado e dispendioso, o que levará alguns à desistência e outros ao abraçar de modalidades desportivas tecnicamente mais rudimentares. Mesmo assim, ainda está para vir o dia em que seremos campeões do mundo em qualquer delas.
À primeira vista, ao olhar para o comum condutor de cães português, ele parece-nos extrovertido e alegre, quando na verdade não é uma coisa nem outra, porque é naturalmente introvertido e pesaroso, por vezes até desconfiado. Ele usa essa “extroversão” como máscara, sem se confundir e para encobrir os seus sentimentos e desejos mais ocultos, muitas vezes tão elementares que dispensariam esse cuidado, o que lhe permite uma abordagem segura a troco de quase nada. Essa capacidade de se transformar noutro, guardando para si o que pensa, facilita-lhe a integração, muito embora seja uma bomba prestes a detonar-se, o que dá corpo ao aforismo: “zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”. Lidar com ele exige tacto e alguma diplomacia, há que entrar no jogo e não perder os objectivos de vista, aceitar o que faz crer e levá-lo para onde é preciso, porque desiste com facilidade e tem dificuldade em equilibrar a emoção com a razão. Necessita de muito alento e não dispensa o elogio, apesar de ser parco a recompensar e comedido nos agradecimentos (mesmo com os cães). Mais cedo ou mais tarde, pelo dualismo das vontades, expressa no duelo entre a sua vontade e da cão que conduz, acabará por revelar a sua verdadeira identidade, mais dada à parceria do que à liderança. A aversão que tem à autoridade é visceral e não produto da actual crise, porque nos momentos difíceis, aí sim, é muito solidário.
Do ponto de vista técnico, o condutor canino português é por tendência ansioso, imediatista e desligado do pormenor, “ferve em pouca água” e teima em juntar ao desacerto uma atitude ainda pior, deitando tudo a perder. Tarda no domínio dos códigos (ordens), aldraba os comandos e persiste nos mesmos erros, é medianamente aplicado e pouco concentrado, quando comparado com outros europeus de diferente raiz linguística, características que o obrigam à assiduidade escolar, ao trabalho sistemático e a um condicionamento ainda maior, para adquirir as posturas e os meios necessários ao seu desempenho. Inibe melhor do que incentiva, tem dificuldade em transmitir os estímulos certos, sendo mais antropomorfista do que especicista. Raramente lê, é retraído de postura corporal, pouco competitivo e acusa o esforço. Enquanto líder do seu cão, adopta diferentes posturas na escola e em casa, resiste à recapitulação doméstica dos exercícios escolares, abusa do nome do cão, foge à regra e pode comprometer a salvaguardo do animal, escusa-se às responsabilidades e esconde os seus erros. Sente o contratempo em demasia e demora a recompor-se, é pouco insistente e foge às dificuldades.
Transformar uma classe de adestramento numa família, não dispensa a formação de um núcleo de base, geralmente assente nos mais aplicados e evoluídos no ensino, que ao darem o exemplo e prontificando-se para a ajuda, cativam e congregam os outros para o propósito comum, levando-os a aceitar os mesmos desafios. A formação do núcleo de base deverá ser a primeira preocupação de um adestrador, porque sem ele, entrará em sobrecarga, terá maiores dificuldades para alcançar novos alunos e pouco terá para mostrar em termos colectivos. Tanto em Portugal como noutros países europeus, pelo que vimos e experimentámos, a escolha dos indivíduos para o núcleo de base, deverá recair sobre indivíduos licenciados, bem sucedidos e de carreira promissora, porque não desprezarão a sua ascensão profissional e permanecerão por mais tempo nas escolas caninas, melhorando-as também nos aspectos científico, social e cultural. Doutro modo, escolhendo-se indivíduos de ocupação temporária, mal remunerados, não qualificados ou insatisfeitos profissionalmente, o núcleo de base depressa se desagregará, porque alguns deles partirão e abraçarão o adestramento como primeira ou segunda ocupação.
A transformação da escola canina em grupo familiar irá exigir a integração e interacção das diferentes classes, todo um conjunto de exercícios comuns, donde ninguém está dispensado, e um leque de actividades no exterior que vise o melhor entrosamento dos condutores, que os leve à partilha de novas experiências e que robusteça a unidade binomial (acampamentos, excursões, treinos em diferentes ecossistemas, exibições, concursos, etc.), estratégias que ao aumentarem o interesse dos condutores, pela necessidade do grupo, os levarão também à procura da pontualidade. E neste sentido, o tradicional Plano de Aula, unidisciplinar, cativo a um lugar e monótono, também deverá sofrer alteração e enveredar pelo trabalho interdisciplinar, para que os condutores vejam ”a luz no final do túnel” (o que sempre é do seu agrado) e compreendam o propósito daquilo que lhe é ensinado, passando-se da obediência estática para a dinâmica e usando os automatismos nas suas diversas aplicações. Com isto se combaterá o desalento provocado pelas rotinas e se aumentará o desejo de aprender. Esta experiência variada e rica, tanto para os homens como para os cães, elevará os binómios a patamares de ensino que doutro modo nunca alcançariam, promovendo em simultâneo a assiduidade escolar.
O que mais diferencia o condutor canino português dos seus congéneres europeus é a sua capacidade de improviso, que quando bem aproveitada, o transforma num excelente criativo e num condutor como poucos, capaz de ir mais além do que os outros, agrilhoados à regra, escravos de pressupostos e dependentes de condições. Para que isso aconteça, é necessário dar-lhe espaço para que se espraie, razões para acreditar e obra para construir, porque a ânsia, o imediatismo e o desinteresse que por vezes manifesta, resultam da ausência destes três requisitos, para ele fundamentais. O facto de ser instintivo e passional, aproxima-o de sobremaneira com os animais que conduz, mantendo com eles uma relação de cumplicidade para além da sujeição, do suborno ou da recompensa. Quando disciplinado, aguenta qualquer desafio e não desiste, adquire diferentes posturas, aceita qualquer investidura e cumpre como ninguém, porque é esperançado e procura a glória (ainda que não o diga).
Quem ministra o adestramento em Portugal, considerando o desgaste e a exigência a que se vê obrigado, caso seja bem sucedido, com facilidade ensinará em qualquer canto do mundo. Os condutores caninos portugueses dão muito trabalho, mas é deveras gratificante trabalhar com eles, porque nos constroem e capacitam como mais ninguém!
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