sexta-feira, 22 de novembro de 2013

PERFIL DO CONDUTOR CANINO PORTUGUÊS

Na semana passada contaram-me uma velha anedota que se encaixa perfeitamente como introdução ao tema de hoje: o perfil do condutor canino português, porque já demos aulas por toda a parte e ele possui características que mais ninguém tem. “Uma prestigiada agência norte-americana de espionagem recrutou três candidatos para os seus quadros: um alemão, um inglês e um alentejano, todos eles casados e necessitados de emprego. O teste de aprovação consistia em abrir a porta de um quarto escuro e abater a tiro a sua própria esposa. A sorte ditou que o alemão fosse o primeiro, deram-lhe a shotgun e ele lá foi. Apesar da delonga, não houve tiros e nada sucedeu, regressando o homem bastante abatido. Depois foi a vez do inglês e também não conseguiu. Finalmente deram a arma ao alentejano e ele lá foi resoluto. Ouve-se o estoiro de vários tiros, os gritos de uma mulher e o estalar de madeira a partir-se. O danado regressa e diz para os seus examinadores. “ Vossamecês podiam ter-me dito que os cartuchos eram de pólvora seca. A magana deu-me cá uma trabalheira, porque para a matar, tive que a aviar à cadeirada!”
Falar sobre portugueses não é fácil, porque não há nenhum igual e falar deles como condutores de cães, ainda é mais difícil, porque cada um pensa e age à sua maneira. No entanto, apesar da multivariedade e da heterogenia presente nas terras lusas, sobressai um tipo de comportamento maioritário, um modo português de fazer as coisas, que tem tendência a alterar-se, quando o luso abandona a sua terra e vai trabalhar para outro país, onde geralmente se destaca pela positiva e alcança notoriedade. Ao contrário doutros, que chegam ao treino à hora marcada ou 15 minutos antes, o português atrasa-se entre 15 a 40 minutos, aparecendo sorridente, como se houvesse chegado a horas e não estivesse a prejudicar o rendimento colectivo. No entanto, quando solicitado para isso, não se importa de trabalhar fora de horas, o que para outros seria no mínimo impensável. Quando obrigado a faltar à escola, ao invés de avisar antes da abertura dos trabalhos, uma hora ou duas depois, diz que não pôde vir, quando diz, e amofina-se quando o chamam à atenção. 
A falta de pontualidade portuguesa é estatutária, estendeu-se aos territórios por onde andámos e todos já nos acostumámos a ela, só os de fora a estranharão. É evidente que há gente cumpridora, mas o seu número é sobejamente inferior ao dos incumpridores. As novas gerações têm agravado o problema, porque teimam em acordar e são por norma noctívagas. Nos tempos do “cá vamos cantando e rindo”, estou a lembrar-me das célebres formaturas no Terreiro do Paço, por ocasião do Dia da Raça, para que tudo corresse a tempo e horas, obrigavam-se miúdos e graúdos, a formar duas horas antes do início das cerimónias, estratégia coerciva que nunca falhou. Será que somos assim por termos sido escravos dos romanos, servos dos godos, lacaios dos reis e vítimas dos republicanos ou seremos em tudo iguais aos outros? Estou em crer que o problema, longe de ser genético, é pedagógico (cultural), proveniente de vícios enraizados que teimamos em eliminar. Logo a seguir ao fatídico terramoto de 1755, quando alguns países europeus se mobilizaram para nos auxiliar, para além de ferramentas, os ingleses fartaram-se de nos enviar relógios, ao ponto de lhes pedirmos que não nos enviassem mais. Não estará na hora de nos acertarmos pelos ponteiros do relógio? Julgo ser mais fácil do que trocar de fuso horário! 
O comportamento em classe do condutor canino português é por norma emocional, barulhento, indisciplinado e dominado pelo improviso, o que atrasa as metas e compromete os objectivos, graças ao desapego pelos procedimentos, ao desrespeito pelas regras, à ausência de serenidade e ao desprezo pelo bom senso, o que dificulta seriamente o condicionamento dos cães. Raro é o condutor que é melhor ouvinte do que falador, havendo alguns que nunca se calam ou que falam quando deviam ficar calados, porque também eles são objecto de instrução. Bem estaríamos se o fenómeno se remetesse apenas aos centros de adestramento. Há cerca de dois anos atrás, um canal de televisão foi auscultar estudantes universitários chineses e portugueses, ao abrigo do intercâmbio cultural entre Portugal e a China. Os portugueses enviados para as faculdades chinesas, estranharam o silêncio e a veneração que os seus colegas orientais nutriam pelos seus mestres. Os chineses vindos para Portugal, quando entrevistados acerca das diferenças no ensino, disseram que aqui todos falam e ninguém se entende. É possível que o burburinho que nos assola resulte do desprezo pelo conhecimento erudito, responsável pelo aparecimento de dúvidas para a sua aquisição, que exige atenção e concentração para melhor ser compreendido e absorvido. 
Esse desprezo pelo conhecimento erudito, que sempre aguarda por um milagre e remete para a sorte o insucesso, quando não culpabiliza os cães, torna o condutor canino português num prático e trará ao mundo adestradores com igual insuficiência, gente capaz de copiar na íntegra, mas incapaz de ir mais adiante, própria para aceitar modelos e imprópria para criar os seus. O português que vai aos centros de treino caninos, geralmente mal informado, é mais confiado do que precavido, pouco exige e depressa sai conformado, porque é mais esperançado do que arguto, o que o transforma numa presa fácil. Vejamos o caso verídico de uma senhora, a braços com um cão anti-social, que se deslocou a uma escola para o sociabilizar. Quando lá chegou, mandaram-na permanecer dentro do carro com o cão ao seu lado, para ele se familiarizar com os outros cães, que trabalhavam no recinto à sua frente, dizendo-lhe que no dia em que o cão deixasse de lhes ladrar, estaria apto para conviver com eles. Depois de algumas destas “lições”, que ela aproveitava para ler o jornal, decidiram-se por levar o cão à pista e apresentá-lo aos outros cães. Como outra coisa não seria de esperar, o animal arremeteu-se contra os outros, retornando ao banco do pendura, “porque ainda não se encontrava preparado”! A pobre coitada andou por ali 3 meses, sem resultados à vista, até que mandou bugiar o treinador e a escola. 
O mau hábito de pouco questionar e de o substituir pelo juízo próprio, lapso a que os seus mestres dão pouca ou nenhuma importância, quando não o aproveitam, porque lhes garante a supremacia, evita-lhes maiores explicações, poupa-lhes trabalho e aumenta-lhes os proventos, mas que em simultâneo leva à formação de alunos ainda piores do que eles, torna o ensino do condutor canino português fastidioso, arrastado e dispendioso, o que levará alguns à desistência e outros ao abraçar de modalidades desportivas tecnicamente mais rudimentares. Mesmo assim, ainda está para vir o dia em que seremos campeões do mundo em qualquer delas. 
À primeira vista, ao olhar para o comum condutor de cães português, ele parece-nos extrovertido e alegre, quando na verdade não é uma coisa nem outra, porque é naturalmente introvertido e pesaroso, por vezes até desconfiado. Ele usa essa “extroversão” como máscara, sem se confundir e para encobrir os seus sentimentos e desejos mais ocultos, muitas vezes tão elementares que dispensariam esse cuidado, o que lhe permite uma abordagem segura a troco de quase nada. Essa capacidade de se transformar noutro, guardando para si o que pensa, facilita-lhe a integração, muito embora seja uma bomba prestes a detonar-se, o que dá corpo ao aforismo: “zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”. Lidar com ele exige tacto e alguma diplomacia, há que entrar no jogo e não perder os objectivos de vista, aceitar o que faz crer e levá-lo para onde é preciso, porque desiste com facilidade e tem dificuldade em equilibrar a emoção com a razão. Necessita de muito alento e não dispensa o elogio, apesar de ser parco a recompensar e comedido nos agradecimentos (mesmo com os cães). Mais cedo ou mais tarde, pelo dualismo das vontades, expressa no duelo entre a sua vontade e da cão que conduz, acabará por revelar a sua verdadeira identidade, mais dada à parceria do que à liderança. A aversão que tem à autoridade é visceral e não produto da actual crise, porque nos momentos difíceis, aí sim, é muito solidário. 
Do ponto de vista técnico, o condutor canino português é por tendência ansioso, imediatista e desligado do pormenor, “ferve em pouca água” e teima em juntar ao desacerto uma atitude ainda pior, deitando tudo a perder. Tarda no domínio dos códigos (ordens), aldraba os comandos e persiste nos mesmos erros, é medianamente aplicado e pouco concentrado, quando comparado com outros europeus de diferente raiz linguística, características que o obrigam à assiduidade escolar, ao trabalho sistemático e a um condicionamento ainda maior, para adquirir as posturas e os meios necessários ao seu desempenho. Inibe melhor do que incentiva, tem dificuldade em transmitir os estímulos certos, sendo mais antropomorfista do que especicista. Raramente lê, é retraído de postura corporal, pouco competitivo e acusa o esforço. Enquanto líder do seu cão, adopta diferentes posturas na escola e em casa, resiste à recapitulação doméstica dos exercícios escolares, abusa do nome do cão, foge à regra e pode comprometer a salvaguardo do animal, escusa-se às responsabilidades e esconde os seus erros. Sente o contratempo em demasia e demora a recompor-se, é pouco insistente e foge às dificuldades.
Diante deste panorama, dir-se-ia que o condutor canino português é um caso perdido e sem remédio, o que é falso e vamos já dizer porquê. Quem já dirigiu pessoal, chefiou equipas e distribuiu tarefas, sabe pela experiência, que o rendimento dum determinado grupo de pessoas depende da qualidade da liderança e não do trabalho isolado de cada uma delas, o quão importante é colocar a pessoa certa no lugar certo e usar cada uma naquilo que melhor sabe fazer. Para que isso aconteça, é necessário a quem lidera, conhecer bem cada um dos indivíduos ao seu encargo, as suas expectativas, virtudes e menos valias, e finalmente aquilo que os une e separa, para que a formação do grupo aconteça e os objectivos sejam cumpridos. Sabemos que os portugueses são por norma muito afectuosos, muito embora digam que não ou se retraiam, também sabemos o que os une ao redor do adestramento: o amor pelos cães. Conhecedores das características e dos sentimentos maioritários, só nos resta uma opção: transformar o grupo escolar numa família, onde todos terão lugar e se sentirão bem, graças ao auxílio mútuo que erigirá cada um deles, tornando-os responsáveis uns pelos outros e realçando a importância de cada um. 
Transformar uma classe de adestramento numa família, não dispensa a formação de um núcleo de base, geralmente assente nos mais aplicados e evoluídos no ensino, que ao darem o exemplo e prontificando-se para a ajuda, cativam e congregam os outros para o propósito comum, levando-os a aceitar os mesmos desafios. A formação do núcleo de base deverá ser a primeira preocupação de um adestrador, porque sem ele, entrará em sobrecarga, terá maiores dificuldades para alcançar novos alunos e pouco terá para mostrar em termos colectivos. Tanto em Portugal como noutros países europeus, pelo que vimos e experimentámos, a escolha dos indivíduos para o núcleo de base, deverá recair sobre indivíduos licenciados, bem sucedidos e de carreira promissora, porque não desprezarão a sua ascensão profissional e permanecerão por mais tempo nas escolas caninas, melhorando-as também nos aspectos científico, social e cultural. Doutro modo, escolhendo-se indivíduos de ocupação temporária, mal remunerados, não qualificados ou insatisfeitos profissionalmente, o núcleo de base depressa se desagregará, porque alguns deles partirão e abraçarão o adestramento como primeira ou segunda ocupação. 
A transformação da escola canina em grupo familiar irá exigir a integração e interacção das diferentes classes, todo um conjunto de exercícios comuns, donde ninguém está dispensado, e um leque de actividades no exterior que vise o melhor entrosamento dos condutores, que os leve à partilha de novas experiências e que robusteça a unidade binomial (acampamentos, excursões, treinos em diferentes ecossistemas, exibições, concursos, etc.), estratégias que ao aumentarem o interesse dos condutores, pela necessidade do grupo, os levarão também à procura da pontualidade. E neste sentido, o tradicional Plano de Aula, unidisciplinar, cativo a um lugar e monótono, também deverá sofrer alteração e enveredar pelo trabalho interdisciplinar, para que os condutores vejam ”a luz no final do túnel” (o que sempre é do seu agrado) e compreendam o propósito daquilo que lhe é ensinado, passando-se da obediência estática para a dinâmica e usando os automatismos nas suas diversas aplicações. Com isto se combaterá o desalento provocado pelas rotinas e se aumentará o desejo de aprender. Esta experiência variada e rica, tanto para os homens como para os cães, elevará os binómios a patamares de ensino que doutro modo nunca alcançariam, promovendo em simultâneo a assiduidade escolar. 
O que mais diferencia o condutor canino português dos seus congéneres europeus é a sua capacidade de improviso, que quando bem aproveitada, o transforma num excelente criativo e num condutor como poucos, capaz de ir mais além do que os outros, agrilhoados à regra, escravos de pressupostos e dependentes de condições. Para que isso aconteça, é necessário dar-lhe espaço para que se espraie, razões para acreditar e obra para construir, porque a ânsia, o imediatismo e o desinteresse que por vezes manifesta, resultam da ausência destes três requisitos, para ele fundamentais. O facto de ser instintivo e passional, aproxima-o de sobremaneira com os animais que conduz, mantendo com eles uma relação de cumplicidade para além da sujeição, do suborno ou da recompensa. Quando disciplinado, aguenta qualquer desafio e não desiste, adquire diferentes posturas, aceita qualquer investidura e cumpre como ninguém, porque é esperançado e procura a glória (ainda que não o diga).
Quem ministra o adestramento em Portugal, considerando o desgaste e a exigência a que se vê obrigado, caso seja bem sucedido, com facilidade ensinará em qualquer canto do mundo. Os condutores caninos portugueses dão muito trabalho, mas é deveras gratificante trabalhar com eles, porque nos constroem e capacitam como mais ninguém!

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