sexta-feira, 8 de novembro de 2013

ESTAMOS CARECAS DE SABER!

Para começo de conversa, usando uma expressão muito em voga, estamos carecas de saber que os donos carecem de maior ensino do que os cães, muito embora acusem os animais das desventuras que não souberam evitar, decorrentes do seu despreparo, do desuso dos comandos, de ordens e indicações contraditórias ou impróprias, de erros sistemáticos e daí por diante, que não escondem o desprezo pelos procedimentos e revelam desequilíbrios psíquicos, dificuldades cognitivas que os obrigam ao improviso e inevitavelmente ao desacerto. Como a exposição dos seus erros não lhes agrada, a culpa é imputada aos cães, também aos treinadores, ao cansaço, às agruras da vida, a dias particularmente difíceis e até a afecções súbitas que obstam à sua melhor concentração, todo um chorrilho de desculpas que não se esgota e tende a perpetuar-se (já houve quem acusasse os sapatos pelo seu desacerto e atribuísse a sua causa à presença inusitada de almas que já partiram). Por vezes, perante desculpas tão esfarrapadas, somos obrigados ao humor para evitar o desconserto e o despropósito da hilaridade, impedindo assim a exposição gratuita dos indivíduos a perca de disciplina e a quebra de propósitos. 
Enquanto estamos a ensinar um cão à trela, ainda que estejamos a ensinar também o dono, a ênfase pedagógica recai maioritariamente sobre o cão, visando a instalação dos comandos e o melhor apetrechamento dos animais, para que futuramente possam ser conduzidos em liberdade, sem atropelos e debaixo da mesma segurança, o que nos leva a concluir que quanto mais exigente e rico for o ensino à trela, maiores serão as certezas na condução em liberdade. E porque importa que o cão obedeça, na fase em que anda atrelado, estamos também a instituir a liderança pelo reforço dos vínculos afectivos binomiais. Ainda que o ensino à trela possa ser cansativo para os donos, especialmente para os menos jovens e para os pouco acostumados a mexer-se, a quem naturalmente falta desembaraço, ele irá exigir-lhes menos esforço técnico, porque a trela tende a colmatar desacertos e impede o cão de fugir, graças ao predomínio da coerção, o que fatalmente poderá induzir os donos ao engano, julgando-se capazes e considerando os cães mais do que prontos. 
Se na condução atrelada é exigido maior esforço físico aos condutores, o que a torna fácil para alguns, na condução em liberdade o esforço é mais técnico (cognitivo), o que a irá tornar inalcançável para muitos, mercê da atenção que exige, do uso de diferentes linguagens (gestual, verbal e corporal), da antecipação que evita a surpresa, do domínio dos comandos e da sua precisão, requisitos que não dispensam a sintonia entre a ordem e acção e que obrigam a diferentes posturas de acordo com o trabalho a realizar, muito embora o brado possa ser substituído pelo som dum dispositivo, desde que audível para o animal, ou parcialmente dispensado pela certeza da recompensa, se ela for quase imediata ou houver sido assimilada como rotina. 
Largar o ensino à trela e alcançar a condução em liberdade, obra maior dos condutores, apesar de alguns cães nisso ajudarem, e muito, lembra a transição do secundário para a universidade, o tirar das rodinhas de apoio numa bicicleta ou o primeiro vôo de um pássaro, porque é um salto qualitativo, que ao alcançar o objectivo do condicionamento, irá transportar os binómios para os seus benefícios e superior aplicação, dotando-os de maior autonomia até ao alcance da sua verdadeira vocação, o que levará a novas formas de entendimento e a uma cumplicidade nunca antes vista. Infelizmente, a maioria dos binómios não a alcançará por culpa dos condutores. As causas mais frequentes desse insucesso são: ausência de auto-confiança, despreparo dos condutores (confusão ou mau domínio dos códigos), excessiva carga nervosa, fraca assiduidade escolar, liderança imprópria (deficiente ou abusiva), pouca ambição e receio. 
Muitas destas impropriedades, que resultam de algum tipo de enfermidade anterior ao treino, raramente confessada, continuarão a obrigar um pequeno grupo de condutores caninos à toma sistemática de substâncias químicas, umas receitadas, outras tomadas sem conselho médico e algumas por força da dependência (anti-depressivos, ansiolíticos, estupefacientes, psicotrópicos e sedativos), que obstam assim à sua concentração e rendimento, havendo ainda outros que têm os cães como auxiliares pedagógicos e até terapêuticos, sabendo-o ou não, aos quais pouco se pede, muito se incentiva e tudo se faz pela sua felicidade, desde que não abusem dos animais para o seu equilíbrio, possível recuperação e bem-estar. 
Um centro de adestramento canino, quando bem entendido, mais do que uma simples escola para cães, é uma academia para os homens que se dedicam a ensiná-los, o que não é tarefa fácil diante dos objectivos a que se propõe, no que aos condutores diz respeito. São eles: a formação teórico-prática para a liderança, o incentivo à leitura, pesquisa e observação, a aprendizagem das diferentes linguagens que melhor servem a comunicação interespécies, a aquisição de posturas típicas do adestramento, a instalação de uma mímica própria prà função, o aproveitamento da relação óptima entre tratamento e treino, a obtenção de uma relação mais próxima com os animais que conduzem, o domínio dos códigos, o respeito pelas regras, a constância nos procedimentos, a constituição binominal com base na cumplicidade, o ensino das diferentes disciplinas cinotécnicas, a recapitulação doméstica dos exercícios escolares, o controlo e uso das emoções, a compreensão da biomecânica canina, a gestão do esforço animal, a procura e transmissão de estímulos, o respeito pelos momentos de supercompensação, o controlo dos instintos caninos e a potenciação dos seus impulsos herdados. O resto cabe aos cães! E eles serão tanto melhores quanto for a excelência dos seus mestres. Depois do que se disse, ainda haverá alguém que duvide ser a escola para os donos? Diante de tanta azáfama, tantas vezes inglória, lamentamos que os cães não aprendam sozinhos!

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