sábado, 16 de novembro de 2013

OS AFRICANOS E OS CÃES

É muito fácil assanhar os cães contra um grupo etário, uma minoria ética ou contra uma raça em particular, mercê da apresentação, do comportamento, do mimetismo e do odor que estabelecem a diferença individual. Nalguns grupos somáticos caninos essa detecção é automática e não carece de treino específico, podendo ser acompanhada de aviso ou ameaça e dar até lugar a ataques não ordenados, porque o nariz do cão é um excelente extractor de odores e os cães, enquanto predadores, vivem em constante observação, não vendo com bons olhos a presença de estranhos no seu território ou ao redor do seu grupo. 
Apesar da abolição da escravatura, do fim do apartheid e do colonialismo, o racismo não desapareceu, mesmo nas actuais sociedades multirraciais, cujo silêncio gera uma paz podre e não esconde a intolerância de parte a parte. Os indivíduos de raça africana têm todas as razões para se afastarem dos cães, porque ao longo de séculos foram caçados por eles e ainda continuam a sê-lo, quando ostracizados, remetidos a guetos e identificados como criminosos, por culpa própria ou como reflexo da exclusão que os vitima. Ainda que as companhias cinotécnicas dos exércitos ocidentais se dediquem a dar caça aos terroristas e aos extremistas islâmicos, as policiais caçam nas barracas e nos subúrbios, locais habitados por minorias, onde o crime se organiza e cresce a olhos vistos, o que não implica em dizer que, todos os que lá moram, sejam potenciais criminosos, diferenciação que sobrecarrega as polícias metropolitanas e as obriga à especialização e ao trabalho redobrado. 
Porque razão, tão poucos africanos têm cães? Porque alguns os tratam tão mal? O que leva a sua maioria a temê-los? Porque não aparecem nas escolas caninas? Porque optam alguns por ter cães perigosos? As respostas para estas perguntas obrigaram-nos à visitação de dois aglomerados problemáticos e a uma série de entrevistas de rua, num total de 235 indivíduos, uns ilegais, outros com autorização de residência e outros já nacionais, de ambos os sexos e de idades compreendidas entre os 12 e os 70 anos, tarefa árdua diante da suspeição generalizada. 
 
A razão pela qual não procuram a companhia dos cães prende-se, em primeiro lugar, com questões económicas e sociais (os cães são para os ricos), depois com o medo (histórico ou recente) e finalmente com a aversão. O mau tratamento que dão aos cães, e algum testemunhámo-lo (encarceramento impróprio, subnutrição e maus-tratos), deve-se, segundo eles, aos seus parcos recursos e à necessidade dos animais se espevitarem. Dos 15 cães visitados, apenas dois tinham as vacinas em dia e licença camarária (13.3%). O temor pelos cães, que acontece desde tenra idade, é sobejamente mais ambiental do que genético, chegando-lhes por conselho, advertência, inibição e trauma, antevendo-se daí uma razão cultural. A somar a isto, grande número dos entrevistados, teme mais os cães do que as shotgun, “porque das balas podem esconder-se, mas os cães vão dar com eles”. 
Os proprietários caninos entrevistados, na sua esmagadora maioria (12), não reconheceram qualquer vantagem ao adestramento, por ser caro e dispensável, uma vez que se consideram capazes de ensinar os cães à sua maneira. A opção pelos cães considerados perigosos, intimamente ligada ao tráfico e ao consumo de droga, também a alguns assaltos, é obra da juventude que procura também proventos na luta de cães, cada vez mais difícil devido à detenção dos cães e às rusgas policiais. Apenas 7.5% dos africanos e 18% dos mulatos, declararam gostar ou não dispensar a companhia dos cães, muito embora temam os alheios. Dos indivíduos entrevistados, os guineenses mostraram ser mais dedicados aos seus animais do que os angolanos. Segundo nos fizeram saber, os cabo-verdianos e outros mestiços, desde que tenham proventos para isso, acabam por concorrer às classes do adestramento. 
Talvez por aculturação, porque não o sabemos ao certo, os africanos residentes em bairros de maioria caucasiana, também por serem mais abastados, acabam por ter mais animais domésticos que os seus congéneres dos subúrbios, tratando-os impecavelmente. Tanto num lado como noutro, para além dos rafeiros e dos cães miniatura, os bracóides são os cães da sua eleição, mais os ingleses do que os alemães, sendo comum vê-los com Labradores, Goldens, Cockers e Beagles, contrariamente aos ciganos, quer eles sejam peninsulares ou romenos, que abusam dos pinschers como angariadores de moedas em cima das concertinas. E quando optam por cães maiores, os africanos sentem-se mais confortáveis com os molossos, sendo raro vê-los acompanhados de algum lupino, e quando isso sucede, ou o dono é mestiço, já nasceu em Portugal ou está ligado a qualquer força militar ou policial. É evidente que há excepções. 
O número de alunos africanos na Acendura Brava sempre foi diminuto (0.05%) e raramente alguém se lembra de ter tido um colega de classe africano ou seu descendente, porque apenas demos aulas a 8 indivíduos com essas características nos últimos 30 anos, sendo todos eles mestiços, 5 do sexo masculino e 3 do feminino, 7 nacionais e 1 brasileiro. Duas das senhoras eram aparentemente caucasianas (brancas de pele, loiras e de olhos azuis), descendentes de uma bisavó negra como os restantes. Todos conduziam cães de companhia e apenas um deles alcançou notoriedade no ensino, uma senhora, médica de profissão, que conduzia um boxer e que mais tarde se tornou criadora da raça, apesar de um cabo-verdiano, jogador profissional de futebol, muito prometer e não ter conseguido ir mais além (também o não foi na sua carreira futebolística). 
Contrariamente ao número de africanos nas nossas classes, ainda que sem sorte alguma, foram muitos os que nos procuraram para ajudar na caça aos “pretos”, aos “mininos”; aos “bumbos”; aos “nharros” e aos “kafires”, usando as sua próprias palavras, solicitando-nos o treino dos seus cães para esse fim, a pretexto de má vizinhança e necessidade imperiosa de defesa. Longe de cedermos a essa tentação, sem dúvida fratricida, sempre optámos por convidar esses justiceiros para o papel de cobaias, investidura suficiente para nos deixarem de importunar. O ensino dos cães para guarda não deve ser encarado de ânimo leve, porque o objectivo de uns tantos, por mais transparente ou justificável que nos pareça, pode esconder motivações doentias ou macabras, e disso já temos experiência. 
Para combater a xenofobia e o racismo, na ausência de africanos entre nós, durante dois anos e meio, passámos a dar aulas no exterior, deslocando a escola para os espaços mais frequentados pelas urbes, para que os cães destinados à guarda, se acostumassem a todo o tipo de gente e reconhecessem as intenções dos indivíduos para além da cor da sua pele, o que veio a verificar-se. Apostados na defesa do bom-nome dos cães junto das minorias raciais, convidámos adultos e crianças a participarem nos nossos trabalhos, dando-lhes a oportunidade de conduzirem alguns cães, ocasião memorável para muitos, perpetuada nas inúmeras fotos tiradas, como é o caso da seguinte. 
Apesar da abrangência do tema, não podíamos deixar para depois a análise das companhias cinotécnicas africanas, ainda que baseada em meia dúzia de instantes televisivos, quando chamadas a actuar. É evidente que não as podemos avaliar todas e com o rigor necessário, facto que obrigaria à nossa deslocação e posterior observação no terreno. Não obstante, porque temos imensos leitores angolanos, lembramo-nos de uma acção policial ocorrida em Luanda, para controlo e dispersão de uma multidão de jovens, reivindicando algo que já esquecemos, onde o estoiro dos cães foi visível e o seu préstimo quase nulo, sendo alguns “lidados” como se de garraios se tratassem. Não sabemos ou talvez saibamos, porque insistem as polícias africanas no recrutamento de cães de raças europeias, naturalmente condenados à fadiga e votados à falta de empenho por inadequação ao clima. Cães de pêlo duplo e maioritariamente negros, como é o caso do Pastor Alemão e do Rottweiler, não serão os mais indicados para trabalhar em África, porque ali se esfarrapam precocemente, perdendo a prontidão, a tenacidade e a resistência necessárias ao serviço. Não estariam melhor servidas com o Rhodesian Ridgeback ou com um cão similar, quando seleccionado para o efeito ou usado para a obtenção de uma nova raça? Será que ainda paira no ar o espectro dos famigerados cães brancos sul-africanos? 
Cinquenta e dois anos depois da exibição do filme “White Dog”, de Samuel Fuller, lamentavelmente, o mundo ainda assiste a cenas idênticas, ao adestramento de cães contra diferentes etnias, como se não houvesse o direito à diferença e os homens não fossem todos iguais, provenientes da mesma origem, carentes de iguais necessidades e portadores dos mesmos desejos. Com facilidade a cinotecnia se presta ao racismo, ainda que não o deva, embalada pelo processo eugénico que levou à selecção das diferentes raças caninas e pela tentação de ver o mundo do mesmo modo. Vale a pena ver ou rever o filme “Cão Branco”, baseado em factos reais e à disposição de qualquer um na internet. Diante desta inquietante obra, ninguém ficará insensível e também ninguém quererá ser vítima! 
Mais do que a aversão, a indiferença, o desprezo, a raiva e o ódio visceral, o medo tem sido o comburente de eleição para a inflamação do racismo actual, o que o identifica como reactivo ou defensivo diante da globalização e das profundas alterações vividas nas sociedades, porque o mundo transformou-se de um dia para o outro e apanhou a maioria das pessoas desprevenida. Face a esta tamanha mudança, que nos obriga a temer pelo futuro, porque nada será como dantes, alguns são levados, se não quase todos, a agarrar-se às suas origens, por necessidade de identificação e auto-defesa, porque se sentem desalojados ou expropriados, e obrigados a dividir com desconhecidos, para eles gente remota, de hábitos estranhos, concorrente ao seu emprego, invasora do seu cantinho e perturbadora do seu sossego. Parece que o domínio branco no Mundo está a entrar em colapso (há quem diga que isso começou no dia em que o mentor do III Reich se suicidou), porque a China parece ter acordado, a União Europeia sobrevive a duras penas, os Estados Unidos “andam às aranhas”, o Magrebe cresce na França e por todo lado emergem líderes não caucasianos, como se tudo fosse inevitável e uma questão de tempo. 
Ninguém sabe como será o mundo de amanhã, se entrará em guerra ou terá os dias contados, queremos acreditar que será mais fraterno e justo, haja guerra ou não, porque a humanidade tem evoluído nesse sentido, ainda que tarde e a más horas. Quem serão os caçados de amanhã: os africanos, os hispânicos, os muçulmanos ou os emigrantes ilegais? Provavelmente os algozes do presente, se ainda por cá andarem, se não tivermos aprendido a lição e os cães se prestarem a isso. 
Apesar de nunca o esperar, eu assisti ao ruir do colossal império britânico, à queda atabalhoada do português e à eleição de um negro para a presidência dos Estados Unidos. Quem imaginaria ver a Praça de Piccadilly Circus superpovoada de paquistaneses e o nosso Rossio repleto de africanos? Será que Nostradamus o previu? Breve, muito breve, os africanos chegarão também ao mundo do adestramento, adoptando uma arte que nunca lhes deu tréguas. Oxalá não caiam em vícios antigos e não se paguem da mesma moeda, porque os cães tanto podem caçar negros como brancos, é tudo uma questão de treino!

Sem comentários:

Enviar um comentário