sexta-feira, 8 de novembro de 2013

SUA EXCELÊNCIA O GUAIPECA

 Nas terras do “tché barbaridade, no longínquo Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, guaipeca é o nome que se aplica a um cão sem raça definida, magro e vadio, entendido por nós como rafeiro, um sonoro substantivo gaúcho que tem a sua piada pela entoação dada: alta, gutural, solta pelo canto da boca e a exalar raiva, como tantas outras palavras do léxico gaúcho, de vogais abertas pela influência do castelhano e doutras línguas há muito desusadas, substituídas, adulteradas ou aglutinadas, lembrando o ladino, tais como as línguas indígenas, basca e guanche, transmitidas pela tradição oral, que desapareceram com as gentes e que sobrevivem apenas nalguns vocábulos, comummente repetidos por plebe alheia aos homens das pampas, tal como se adopta o uso das bombachas, do facão ou do lenço vermelho. Valha-nos o cavalo crioulo, que por enquanto nada tem de hanoveriano ou maremmano, conservando incólumes as suas origens peninsulares, ainda que melhoradas pela generosidade daquelas terras, que o dotou de mais carne e nervo. Lamentavelmente encontra-se pouco divulgado, o que pode até não ser mau, porque poderia, sem maior dificuldade, ser usado como melhorador doutras raças e passar à história. 
Mas é do guaipeca que queremos falar, do comum rafeiro, que apesar de perseguido, maltratado e abatido ao longo dos séculos, aqui continua para alegria dos mais simples, para gáudio das crianças e pró bem-estar dos mais idosos, um companheiro humilde há muito merecedor de um monumento por toda a parte, homenagem que tarda diante do muito que nos tem dado e do holocausto que tem sofrido, apesar de meigo, pouco exigente, inofensivo e dedicado, um especialista em coisa nenhuma, a não ser em fazer-nos felizes, também ele um possível melhorador da actuais raças caninas, carenciadas de maior autonomia, multi-variedade, rusticidade, equilíbrio, juízo, saúde, resistência e longevidade. 
Se cada um dos nossos Concelhos, quase todos com canis terminais municipais (se não todos), os transformassem em parques temáticos ou quintas pedagógicas, usando os cães rafeiros e os tornados vadios como atracção, cobrando aos visitantes o suficiente para a manutenção, bem-estar e sustento dos animais, todos teriam a ganhar, mesmo que tal encargo fosse remetido à iniciativa privada, porque muitos cães seriam poupados, alguns apadrinhados e todos respeitados, em particular pelas crianças impedidas de os ter, que são cada vez mais. Que melhor campanha poderíamos fazer contra o abandono e os maus-tratos sobre os cães? Não teria isso impacto nas gerações futuras e levar a uma mudança radical de atitude? Não temos qualquer dúvida! E não a temos porque os cães, ao oferecerem parceria, constituem-se em terapia, labutam contra o ostracismo, ajudam no combate à solidão, equilibram-nos, retemperam-nos e fazem-nos sentir bem, funcionando inúmeras vezes como confidentes, companheiros de jornada e até como substitutos da família, e tudo isto a troco de quase nada! 
O rafeiro tem sido um autêntico “passe social” para os mais pobres ou com menos recursos, impossibilitados de ter um cão com pedigree, mais dispendioso, exigente e sensível, porque tem trazido o campo para a cidade, ligado os homens aos cães e recriado ambientes mais saudáveis em espaços exíguos, doutra forma mais estéreis, depressivos e sufocantes, particularmente para quem se sente só e não dispensa o contacto com os animais. Sim, o rafeiro continua a ser um dos melhores veículos para a saúde física e anímica das urbes, o melhor dos companheiros para as crianças (fartas de bonecos de peluche) e para aqueles que, depois de envelhecidos pelo trabalho, ainda mantêm viva a esperança e resistem em se ir embora. E se os amigos são para as ocasiões, nos momentos de crise económica, quem mais acompanhará as gentes: o exigente cão “puro” ou o rústico rafeiro? Provavelmente o que sobreviver de repastos com teores de proteína e gordura mais baixos: o implicado do costume, Sua Excelência o Rafeiro!

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