sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

NÓS POR CÁ: FLASHBACK MILENAR

 

Em matéria de religião os portugueses pertencem a uma árvore sincrética, sui generis e mui antiga dentro da Europa, incólume e enxertada nas três grandes religiões monoteístas - judaísmo, cristianismo e islamismo - mesmo que não se deem conta disso, podendo enveredar por qualquer uma delas, praticá-las ou desprezá-las na sua totalidade de um momento para o outro, conforme os ventos da história, o reconhecimento de favores ou a ausência de respostas, crendice e desilusão que a uns leva à superstição e a outros, poucos, a deixar-se fascinar pela igreja ortodoxa grega ou pelas religiões orientais por pretenso iluminismo. O português é decididamente um ser religioso, um fundidor de crenças e um perito em macedónias religiosas, onde bruxos e adivinhos vão beber, sustentam a sua existência, actividade e pretensos poderes. O sincretismo histórico português, que tão bem serviu à miscigenação dos portugueses com os povos que foram descobrindo, já era fecundo bem antes da nacionalidade e resolveu a contenda entre cristãos arianos e nicenos com uma comum política e casamentos. Torna-se evidente que a igreja de romana para tudo contribuiu e contribuiu de tal maneira que alguns ritos usados nas nossas procissões são de milenar tradição muçulmana. Na Idade Média, por ocasião da reconquista cristã, os vencedores tinham por hábito erigir igrejas no lugar das antigas mesquitas, o que muito facilitou a integração dos mouros que aqui ficaram cativos, obrigados a trabalhara terra e a pagar tributo ao rei cristão em substituição do mouro derrotado.

Árabes e mouros têm uma profunda veneração por São João Baptista, que para eles é uma figura extremamente estimada e homenageada, sendo considerado um profeta islâmico que viveu uma vida dedicada a Allah e que previu a vinda de Jesus, sendo para eles o único homem que não será jugado no dia do juízo final, pelo que o culto mouro a esta figura bíblica antecedeu o cristão, deslocando-se os mouros à noite para os rios a celebrá-lo, festança normalmente acabada em matança pelos cristãos, que valendo-se daquela ocasião, matavam quantos mouros podiam e violavam as suas mulheres. Com passar do tempo e por empenho dos monarcas, a matança deu lugar à confraternização, perpetuando mouros e cristãos a celebração de São João Baptista (“Yahya”, para os muçulmanos).

Apesar das muralhas levantadas principalmente em Lisboa, destinadas a separar cristãos e muçulmanos ao anoitecer, nem uns nem outros recearam muito os castigos impostos pela violação das leis, não faltando quem saltasse os muros da cidade para os campos da moirama e vice-versa, o que gradualmente levou a supressão dos muros. Apesar de se saber através de um estudo relativamente recente que apenas 10% dos homens portugueses têm origem norte-africana e 20% judia, a presença mourisca na alma intrínseca dos portugueses e nas suas idiossincrasias excedem em muito essa percentagem, o que de certo modo significa que culturalmente há um mouro dentro de cada um de nós, quer sejamos do norte ou do sul.

À beira de um rio, na última passagem de ano, tive um flashback milenar ao avistar o retorno de uma enorme chusma de “mouros”, vindos para celebrar a entrada do novo ano e fazendo daquele porto uma feira, acampando cada um a seu modo, com os seus e com aquilo que trazia, numa desorganização que lembrava uma extensa caravana berbere recém-chegada do deserto, com gente esparramada pela chão, de cobertor pela cabeça a comer e a beber numa algazarra pouco vista, com uns a lançar petardos e very lights antes da hora e outros com garrafas de espumante debaixo do braço, enquanto as crianças tilintavam de frio e os bebés choravam nos carrinhos a cada explosão. Apesar dos quilómetros que nos separam, lembrei-me imediatamente do Souk de Marraquexe onde tudo se compra e vende. Cansadas dos saltos altos e com o frio a entrar-lhes pelas pernas, as mais moças descalçavam-se e sentavam-se no chão, cobrindo as pernas com o que tivessem à mão, ao lado de gente bêbeda que já havia perdido a razão - nunca uma passagem de ano me pareceu tanto com uma noite de São João!

E quando a hora chegou, homens e mulheres gritaram a plenos pulmões, destacando-se as últimas, agora desinibidas, a entoar sargutas ansiosas. Quinze ou vinte minutos depois tudo terminou, a celebração e o meu flashback, enquanto se afastavam silenciosos corpos morenos, medianos de tamanho e encimados por cabeças meridionais, em tudo iguais às de outros do lado de lá do mar.

Contrariamente ao que sucede com outros povos, a religião dos portugueses não obedece a uma etnia específica, mas resulta das várias que estiveram na sua formação, podendo ainda vir a ser composta por outras crenças ou credos vindouros – o português vive em constante adaptação e adapta a religião ao seu modo de ser! Poderá vir a ser xintoísta, budista ou hindu? É bem possível, já que milenarmente combina o sagrado com o profano e parece seguir em frente! Se entendermos a religião como produto da cultura e advinda de um conjunto de crenças e práticas sociais, o êxito dos primeiros missionários católicos  no Oriente,  não pode ser desligado do legado cultural ibérico.

Sem comentários:

Enviar um comentário