Antes de falar sobre a
Maria, uma menina de 11 anos que recentemente conheci, vejo-me obrigado a falar
sobre o escritor português António ALVES
REDOL, homem que conheci pessoalmente mas à distância,
porque a PIDE1 espreitava e este vila-franquense,
apesar de respeitado, estava rotulado como comunista. Vi-o um par de vezes nos
passeios para onde me levavam aos fins-de-semana, quando fartos do bacalhau de
Bucelas e dos peixes de Cascais, íamos até Vila Franca de Xira comer as tão
afamadas eiroses2, das quais nunca consegui agradar-me e visitar
um parente que ali foi Comandante dos Bombeiros durante anos. Desde muito cedo,
talvez cedo demais e por iniciativa própria, comecei a ler alguns clássicos da
Literatura Portuguesa e um dia, não sei como me foi parar às mãos, descobri o
livro “CONSTATINO,
GUARDADOR DE VACAS E SONHOS” e fiquei fã de Alves Redol, vindo a
ler outras obras suas. Talvez por causa da minha tenra idade e mau juízo de
valores, apanhei asco aos naturais da Beira Baixa, que para mim, a partir de
determinada altura, nada mais eram do que gaibéus3
ou ratinhos, uns “feijões de duas caras” ou uns fura-greves.
Contudo, a vida
encarregou-se de me mostrar o contrário e hoje nutro um profundo respeito pela
gente da Beira Baixa, cuja presença nas nossas fileiras sempre se destacou (são
tantos os exemplos que seria enfadonho recordá-los todos). Vamos lá à história
da pequena Maria, também ela ainda descendente desta plebe. Vai fazer no
Domingo uma semana, ao importunar o seu cachorro Pastor Alemão de 8 meses,
quanto este se encontrava a comer, a menina recebeu uma dentada superficial no
peito e os seus pais, alarmados com o sucedido, levaram-na ao hospital, onde se
veio a constatar ser uma ferida sem gravidade e que tudo não passou de um
susto. O Max, assim se chama o cachorro, é um aluno recente das nossas
classes, um inibido declarado que a medo morde tudo o que dele se aproxima.
Depois do sucedido seria normal que a menina tivesse ficado traumatizada, mas não
foi esse o caso!
Apostada em ultrapassar a
situação, em compreender melhor o Max e ajudá-lo, a Maria pediu ao pai que a
deixasse acompanhá-lo nas idas do cão ao treino. Como a sua disposição não nos
suscitou qualquer dúvida, acabámos por passar-lhe o cão para a mão e promovê-la
automaticamente a condutora cinotécnica (dentro das maiores cautelas), ideia
que foi totalmente do seu agrado. Alertada para a possibilidade do cão se mandar
para cima de quem estiver mais perto, particularmente crianças, idosos, gente
com dificuldades locomotoras e minorias raciais, a miúda agarrou-se à trela,
estribou-se nos procedimentos, assimilou os códigos e avançou decidida por
entre as gentes, demonstrando uma segurança que até o próprio cão contagiou,
merecendo de quem por ali passou rasgados elogios.
Com o desenrolar do treino
fomo-nos apercebendo das qualidades presentes naquele corpo franzino e pedimos
à menina que passasse com o seu Pastor Alemão pelo meio de dois homens,
patrulha diariamente escalada para a apanha de pequenos lixos abandonados nas
calçadas. Confiante e com a moral em alta, a garota venceu o desafio com
a maior das facilidades, conforme atesta a foto seguinte.
Sempre em crescendo
operativo e cada vez mais confiantes no trabalho da Maria, pedimos-lhe que
passasse com o CPA por debaixo dos braços daqueles homens que carregavam as suas bengalas da apanha do lixo, motivo mais do que suficiente
para que o Max lhes apalpasse as calças. Qual quê? Mesmo com a pequena condutora
agachada, o cão não tugiu nem mugiu e nunca tirou os olhos da miúda.
No final e a título de
recompensa, porque não só os cães que precisam de ser recompensados, os homens
também, explicámos à Maria como pôr o Pastor Alemão a saltar um banco de
jardim, decisão que foi do agrado dos dois, já que nenhum deles se cansou e ambos
mostraram disposição para mais.
Por
mais amargos que sejam os anos e árduos que sejam os dias, vale a pena viver
mais um para encontrar uma garota assim: pequenina talvez, mas cheia da mais feroz
ambição! Obrigado Maria, eu acredito em ti.
(1)Polícia política do Salazarismo e
Marcelismo. (2)Enguias.
(3)Jornaleiro
da província portuguesa do Ribatejo ou da Beira Baixa que vai trabalhar para as
lezírias durante as mondas.
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