domingo, 28 de setembro de 2014

UNS ENSINAM TUDO, OUTROS QUASE NADA

Viajando incógnitos num périplo pelas escolas caninas nacionais, onde cresce o número de sequazes dos mestres desenrascados, pretensamente certificados e inovadores, como sempre aconteceu (pela ignorância que suporta a lei do bota abaixo, a esperteza saloia erige os “entendidos”), olhando para os históricos que estiveram na sua origem e lhes serviram de inspiração, notoriamente mais práticos do que eruditos, ainda que alguns deles se alvitrem agora em conferencistas, para ultraje da gramática, da retórica e do conhecimento científico, porque badalam o que rascunharam, não compreenderam e lhes soa bem ao ouvido, o que em tudo lembra as considerações de Espinosa acerca dos académicos coimbrões do seu tempo, pudemos dividi-los em dois grupos: uns que ensinam tudo o que sabem e outros que têm como sabedoria pouco ou nada ensinar, apesar de ambos acabarem depauperados, vituperados e isolados, uns pelo aumento da concorrência que os ultrapassará e os outros pela aversão que os votará ao abandono, fenómenos também reforçados pela marcha do tempo, que sempre opera a inevitável substituição das gerações. E se assim é e for para bem, que venha daí o progresso!
Exemplo do que acabámos de dizer tem sido o antagonismo prático entre dois adestradores civis, sobejamente conhecidos no nosso panorama, de origem comum e escola idêntica, concorrentes ao longo de décadas e outrora na berra, hoje à beira da substituição e menos solicitados, homens que ficarão para a história da cinotecnia nacional pelo que fizeram e pelo seu particular, enquanto pioneiros e mestres de referência, justificando-se avaliar o seu legado, reconhecer as suas virtudes e aprender com os seus erros. O primeiro deles, que trataremos aqui como “alfa”, um passional canino, notoriamente extrovertido e pouco precavido, cuja maior qualidade é tratar todos os cães como seus, dedicando-lhes o melhor de si e suscitando dos donos cumplicidade e empenho, não se inibe em ensinar tudo o que sabe, sempre acaba por se expor, sendo um homem “de tudo ou nada”, daqueles a quem se ama ou se odeia. Apoia abertamente qualquer causa e abraça qualquer um. A sua franqueza tem vindo a engordar a barriga de muitos, particularmente daqueles, que à sua sombra, alcançam algum gabarito e teimam em pôr “os corninhos ao sol”, desafiando-o e vindo depois a concorrer-lhe. Dominado pelo empirismo, que até hoje lhe tem bastado, peca por falta de erudição e inovação, tratando jocosamente os novos companheiros de profissão por “doutores e engenheiros caninos”.
O outro, tratado aqui por “beta”, é a sua antítese perfeita, mais introvertido e ambicioso, falsamente titubeante nos esclarecimentos, menos apostado no progresso dos cães, adepto do “dar tempo ao tempo”, perito no uso de regras para benefício próprio, reticente em ajudar, frívolo na escolha das suas vedetas (que só o serão se lhe derem interesse) e indiferente quanto baste ao desacerto dos seus pupilos. Guarda para si o que sabe, não se descontrola e garante a liderança, não se desnuda, é selectivo e cerca-se de quem se presta à sua ascensão. Hábil no “cala-te boca”, semeia dissensões para enfraquecer a concorrência e sai de mansinho. Atento ao que se passa além fronteiras, inova pelo plágio e busca os louros, ainda que nem sempre dê continuidade a essas modalidades e disciplinas, particularmente quando fáceis ou tornadas comuns. Falsamente humilde, espreita oportunidade e serve-se do adestramento como trampolim, usando-o como acréscimo para alcançar parcerias mais rentáveis, não se escusando a recrutar a outros para atingir os seus objectivos, mesmo aqueles por quem nutre alguma antipatia, intentando ser manager de tudo e de todos.
Graças à paixão duns e à ambição doutros, agora secundados por praticantes com idênticas características, a periclitante cinotecnia civil portuguesa instituiu-se, enquanto geração artificial e proveniente da enxertia estrangeira, muito embora subsista pelo improviso e careça do impulso alheio para a sua continuidade, porque somos naturalmente avessos à mudança e mais chegados à vaidade, cegueira que continua a obstar à investigação, ao conhecimento científico, ao progresso e à formação de uma verdadeira escola de cariz nacional. É chegada a hora, que já peca por algum atraso, dos nossos etólogos enriquecerem os práticos com o conhecimento erudito, de baixarem às escolas e de prevalecerem os seus currículos pelos resultados no terreno, transitando assim da teoria à prática e valendo a quem deles necessita, já que o adestramento é uma actividade objectiva e mensurável, que dispensa dogmas e sofismas. É triste relembrar uma frase já batida: “para fazer um clube bastam dois ingleses e para o desfazer dois portugueses bastam”. O Treino canino deverá congregar todos o que para ele concorrem e nunca constituir-se em tomo de discórdia, porque só assim a nossa cinotecnia se perpetuará e abandonará o seu carácter rudimentar, sectário, quase marginal, chauvinista e alquimista, pródigo em mitos e retrocessos.

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