Viajando incógnitos num périplo pelas escolas caninas
nacionais, onde cresce o número de sequazes dos mestres desenrascados, pretensamente
certificados e inovadores, como sempre aconteceu (pela ignorância que suporta a
lei do bota abaixo, a esperteza saloia erige os “entendidos”), olhando para os
históricos que estiveram na sua origem e lhes serviram de inspiração,
notoriamente mais práticos do que eruditos, ainda que alguns deles se alvitrem agora
em conferencistas, para ultraje da gramática, da retórica e do conhecimento
científico, porque badalam o que rascunharam, não compreenderam e lhes soa bem
ao ouvido, o que em tudo lembra as considerações de Espinosa acerca dos académicos
coimbrões do seu tempo, pudemos dividi-los em dois grupos: uns que ensinam tudo
o que sabem e outros que têm como sabedoria pouco ou nada ensinar, apesar de
ambos acabarem depauperados, vituperados e isolados, uns pelo aumento da
concorrência que os ultrapassará e os outros pela aversão que os votará ao
abandono, fenómenos também reforçados pela marcha do tempo, que sempre opera a
inevitável substituição das gerações. E se assim é e for para bem, que venha daí
o progresso!
Exemplo do que acabámos de dizer tem sido o antagonismo prático entre
dois adestradores civis, sobejamente conhecidos no nosso panorama, de origem
comum e escola idêntica, concorrentes ao longo de décadas e outrora na berra,
hoje à beira da substituição e menos solicitados, homens que ficarão para a
história da cinotecnia nacional pelo que fizeram e pelo seu particular,
enquanto pioneiros e mestres de referência, justificando-se avaliar o seu
legado, reconhecer as suas virtudes e aprender com os seus erros. O primeiro
deles, que trataremos aqui como “alfa”, um passional canino, notoriamente
extrovertido e pouco precavido, cuja maior qualidade é tratar todos os cães
como seus, dedicando-lhes o melhor de si e suscitando dos donos cumplicidade e
empenho, não se inibe em ensinar tudo o que sabe, sempre acaba por se expor, sendo
um homem “de tudo ou nada”, daqueles a quem se ama ou se odeia. Apoia
abertamente qualquer causa e abraça qualquer um. A sua franqueza tem vindo a engordar
a barriga de muitos, particularmente daqueles, que à sua sombra, alcançam algum
gabarito e teimam em pôr “os corninhos ao sol”, desafiando-o e vindo depois a
concorrer-lhe. Dominado pelo empirismo, que até hoje lhe tem bastado, peca por
falta de erudição e inovação, tratando jocosamente os novos companheiros de
profissão por “doutores e engenheiros caninos”.
O outro, tratado aqui por “beta”, é a sua antítese perfeita, mais
introvertido e ambicioso, falsamente titubeante nos esclarecimentos, menos
apostado no progresso dos cães, adepto do “dar tempo ao tempo”, perito no uso
de regras para benefício próprio, reticente em ajudar, frívolo na escolha das
suas vedetas (que só o serão se lhe derem interesse) e indiferente quanto baste
ao desacerto dos seus pupilos. Guarda para si o que sabe, não se descontrola e
garante a liderança, não se desnuda, é selectivo e cerca-se de quem se presta à
sua ascensão. Hábil no “cala-te boca”, semeia dissensões para enfraquecer a
concorrência e sai de mansinho. Atento ao que se passa além fronteiras, inova
pelo plágio e busca os louros, ainda que nem sempre dê continuidade a essas
modalidades e disciplinas, particularmente quando fáceis ou tornadas comuns.
Falsamente humilde, espreita oportunidade e serve-se do adestramento como
trampolim, usando-o como acréscimo para alcançar parcerias mais rentáveis, não
se escusando a recrutar a outros para atingir os seus objectivos, mesmo aqueles
por quem nutre alguma antipatia, intentando ser manager de tudo e de todos.
Graças à paixão duns e à ambição doutros, agora
secundados por praticantes com idênticas características, a periclitante
cinotecnia civil portuguesa instituiu-se, enquanto geração artificial e
proveniente da enxertia estrangeira, muito embora subsista pelo improviso e
careça do impulso alheio para a sua continuidade, porque somos naturalmente
avessos à mudança e mais chegados à vaidade, cegueira que continua a obstar à
investigação, ao conhecimento científico, ao progresso e à formação de uma
verdadeira escola de cariz nacional. É chegada a hora, que já peca por algum
atraso, dos nossos etólogos enriquecerem os práticos com o conhecimento
erudito, de baixarem às escolas e de prevalecerem os seus currículos pelos
resultados no terreno, transitando assim da teoria à prática e valendo a quem
deles necessita, já que o adestramento é uma actividade objectiva e mensurável,
que dispensa dogmas e sofismas. É triste relembrar uma frase já batida: “para
fazer um clube bastam dois ingleses e para o desfazer dois portugueses bastam”.
O Treino canino deverá congregar todos o que para ele concorrem e nunca
constituir-se em tomo de discórdia, porque só assim a nossa cinotecnia se
perpetuará e abandonará o seu carácter rudimentar, sectário, quase marginal, chauvinista
e alquimista, pródigo em mitos e retrocessos.
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