A última vez que ouvimos esta sentença, quase beijámos quem no-la disse,
porque apesar de ser corriqueira, sempre nos esquecemos de a comentar, não
porque seja erudita ou produto de um novo pensar, muito pelo contrário, já que é
paradoxal, perde-se pelos confins do tempo e parece-nos até anterior à escrita.
Quem a diz, fá-lo para justificar a má qualidade da dieta que diariamente
distribui ao seu cão, alguém que abocanha o que pode e não consegue dar ao
animal aquilo que deveria, condenando-o assim à mesma sorte, por ausência de
melhores proventos, até porque cão é cão e terá que comer o que lhe puserem na
frente, o que de especicismo não tem pouco e de razoável pouco ou nada tem,
conceito e prática errados mas aceites pelo consenso generalizado, para quem faz
todo o sentido.
Menos sentido faz e acontece com frequência, que indivíduos com magros
orçamentos familiares tenham mais do que um cão, independentemente do seu
tamanho ou voracidade, o que mais agravará a pobreza dos donos e a subnutrição
dos animais, porque o dinheiro é o mesmo e há mais bocas para alimentar. A
receita brasileira de “pôr mais água no feijão”, quando o número de convidados
aumenta, acaba por ser aqui a única solução. É estranho gostarmos daquilo que
nos condena, será essa a nossa verdadeira inclinação? E como se isto não
bastasse, alguns destes indivíduos acabarão por se dedicar à criação de cães,
actividade de lucros duvidosos e que irá influenciar negativamente na qualidade
dos cães produzidos em Portugal, não sendo de estranhar que os cachorros
vendidos, venham a desenvolver-se mais do que os sustentados pelos seus
criadores e entregues aos seus “cuidados”, verdade que se repete e que
geralmente leva à exclamação: “Está a ver? Afinal vendi-lhe um cão muito bom,
até é melhor do que os meus!” (melhor seria que nada dissessem!).
Daí a pouco, com o aumento da despesa com os cães, alguns casais verão a
sua economia drasticamente abalada, não terão férias, pé-de-meia e dinheiro
para coisa nenhuma, viverão para o dia-a-dia à espera do final do mês,
protelando para tempo incerto o nascimento dos seus filhos, que poderão vir ao
mundo ou não, mercê da estranha adopção que os tornou “pais dos cães”. Que bom
seria que os filhos dos mais ricos nos bastassem: a nós ao País e ao Mundo!
Esta forma de escravatura dissimulada é a uma grave patologia, uma
“caniculturite aguda” que nalguns casos, e cada vez são mais, não esconde o
medo da natalidade e que pode levar-nos à extinção, a um país sem habitantes
(fantasma) e à desertificação. A usurpação do lugar dos filhos pelos cães nos
lares, como é sabido, é uma tendência anterior à actual crise e que tem vindo a
aumentar com ela. Uma coisa é certa: mais depressa debelaremos a crise do que
as suas causas, pois nenhuma especulação dos mercados financeiros conseguirá
libertar-nos de vícios antigos.
Um deles é o esbanjamento que nos domina e o outro o mau hábito de
passarmos a “batata quente” de uns para os outros, o que nos torna
contraditórios, simultaneamente magnânimos e indiferentes. Como posso entregar
um cão a quem mal se sustenta, a quem precisa de amealhar e que tarda em
realizar-se? Sentir-me realizado quando lhe tiro o pão da boca? Mais valia
transformar os canis e os lares de adopção caninos em quintas pedagógicas,
transformando-os num bem colectivo, do que aumentar o número de proprietários caninos!
Todos os que adoptam cães têm condições para os manter? É evidente que não! Por
isso alguns animais irão ser mais uma vez abandonados ou retornarão às associações
donde saíram, quando não acabam nos canis terminais municipais, por via da
pobreza encoberta que resiste à exposição da vergonha. Vistas as coisas deste
prisma, parece que Federico Fellini continua vivo, o “filme” lhe pertence e o
pós-guerra está de volta. Que bom seria que tudo isto não passasse de pura
ficção!
Quem sustenta a canicultura é a classe média e será ela a estabelecer o
preço dos cachorros, mediante a maior ou menor procura. Nos tempos que correm a
procura baixou e baixou porque ela viu aumentada a sua carga tributária e
diminuídos os seus proventos. Diante desta conjectura, a adopção de cães veio
substituir a compra dos exemplares standartizados e assiste-se agora à troca dos
cães maiores por outros mais pequenos, alterações assim produzidas por razões
económicas. Se a classe média luta desesperadamente para evitar o défice, a
classe abaixo dela já mergulhou na penúria, pelo flagelo que atinge as duas,
reforçado pelo desemprego, pela baixa de salários, perca de regalias e menor
poder de compra. Como poderão indivíduos sujeitos a este calvário, alimentar
convenientemente os seus cães? Somente através de “rações de combate”, daquelas
que custam 1/3 das recomendáveis e que subtraem aos índices de proteína
e de gordura percentuais até aos 50%. Mesmo os mais abonados, e nisso reside o
aumento dos lucros das empresas que se dedicam à alimentação dos animais de
companhia, acabam por comprar rações de gama mais baixa ou por trocar de marca.
Os retalhistas, querendo manter-se à tona, reduzem os seus lucros e aplicam
descontos sobre a quantidade até aos 20%. Estas são as estratégias mais
visíveis, porque haverão outras que não conhecemos, não fosse o segredo a alma
do negócio, apesar de tão velhas quanto o mundo.
Por tudo isto se compreende, quais as razões que levam muitos a mal
alimentar os seus cães, os mesmos que sobrevivem com um prato de sopa, um galão
e um bolo, que fazem das salsichas o seu melhor repasto e que procuram “tascos”
com pratos a 3.80 €, onde vão ocasionalmente, em dias especiais e enquanto o
salário dura, porque até o McDonald está caro, apesar de agora também vender
bifanas (esses “Américas” não perdem pitada!). A nosso ver, antes de entregarem
os cães, visando o seu bem-estar e qualidade de vida, as associações que
albergam animais para posterior adopção, deveriam certificar-se em que mãos os
entregam, se os interessados têm meios para valer aos adoptados, muito embora
falte autoridade a algumas delas para isso, constantemente de “mão estendida à
caridade”, a administrar rações ofertadas e de baixa qualidade, quando não fora
de prazo. Valha-nos que os cães, contrariamente aos homens, melhor sobrevivem
debaixo da política de “amor e uma cabana”. Porque raio nos convencemos que os
cães vivem de restos, os lobos nunca o fizeram, serão todos os cães modernos
descendentes do chacal?
Ao abordar esta temática, mais ligada ao impulso do que à razão,
lembrámo-nos de Johann Gottfried Von Herder, filósofo e escritor alemão
setecentista, que a breve trecho disse: “ Quem vence um leão é um valente, quem
domina o mundo é um homem de valor, mas, mais valente e corajoso do que eles
todos, é aquele que sabe dominar-se a si mesmo”. Antes de adquirir um cão,
certifique-se que tem condições para o manter satisfatoriamente, que a sua
aquisição não vai agravar a economia do seu agregado familiar e sujeitá-lo a
comer “o pão que o diabo amassou”, porque é uma vida que lhe é confiada e todos
vivemos daquilo que comemos. Mais vale aguardar um pouco mais do que precipitar
a desgraça, pensar antes de agir.
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