sábado, 20 de setembro de 2014

O VELHO DO OLHAR EMPEDRENIDO

Vimo-lo casualmente ao olharmos pela janela do carro, imóvel, gasto e já curvado, de queixo levantado, no meio da mata e entre as penhas, de olhar fixo e demorado na serra, como se ali não estivesse ou dali nunca houvesse saído, enquanto a brisa nocturna chegava e não se avistava vivalma. Temendo o pior pelo anormal daquele avistamento, saímos da viatura e decidimos entabular conversa com ele, talvez precisasse de algo, fosse vítima de assalto, tivesse sido abandonado, estivesse doente ou perdido. Apesar dos estalar das folhas que denunciavam a nossa aproximação, ele manteve-se impenetrável como imbuído de determinada missão, indiferente à nossa presença, com os olhos postos na mesma direcção. Junto dele, vimos cair-lhe uma lágrima furtiva sobre a boca contraída, que ele tentou disfarçar pelo enrugar da face. Intrigados e perplexos, hesitámos em falar-lhe, temendo ser inoportunos e não sabendo o que dizer-lhe. Passados alguns segundos, inesperadamente, diz-nos: “Descansem que estou bem, venho visitar uma amiga, regressar ao passado e matar saudades, lembrar a alegria para que a tristeza não me abata!”.
E continuou: “ Fiz a mesma caminhada que fazia com ela a pé, cerca de uma légua, em passo apertado e pelo lado esquerdo da estrada, o mesmo percurso ao longo de 11 anos. Ela ia a meu lado sem puxar, alegre, atenta e invariavelmente a olhar para mim. Aqui costumava soltá-la, tirar-lhe a trela e mandá-la para diante. Na mata sentia-se como em casa, desaparecia por entre os arbustos e corria serra acima. Eu deixava de a ver, sabia por onde andava pelo abanar dos fetos, até que finalmente parava naquela penha mais alta, vitoriosa e desafiadora, ladrando para que a acompanhasse. Ainda parece que a vejo, focinho ao vento, orelhas erectas, de postura solene sobre o horizonte. Vou voltar para casa sozinho, mas enquanto aqui estou, sinto a sua presença e saio reconfortado. Amanhã cá estarei de novo! Venho aqui todos os dias à mesma hora, menos às Terças, porque saio da fisioterapia já cansado. Morreu a olhar para mim na mesa do veterinário, envenenada não se sabe por quem, de olhos vidrados, sem convulsões e em silêncio, provavelmente vítima de um vizinho mal intencionado. Como não a enterrei, continua viva para mim, a correr por esta encosta acima e aqui reencontro-me com ela”.
Aturdidos com a narrativa, perguntámos-lhe como se chamava a cadela. “ Ela chama-se Beth, porque ainda vive em mim!” – respondeu-nos compenetrado e imóvel, como quem não pode e não quer ser distraído. Momentaneamente, apeteceu-nos confortá-lo e abraçá-lo, manifestar a nossa solidariedade e aconselhá-lo a adquirir outro cão. Mas como não nos deu entrada para isso, sentindo-nos infiéis perante tamanha peregrinação, zarpámos dali com cordiais votos de saúde, jurando para nós mesmos que jamais retornaríamos àquele local na mesma hora. De volta a casa e aos treinos, sensibilizados por aquele encontro, alterámos o plano de aula e procedemos à recusa de engodos, motivando os donos pela desgraça daquele binómio, outrora real e agora fictício, para que não venham a sofrer o mesmo desgosto e idêntica alienação. A história é real e não acontece só aos outros, acontece com mais frequência a quem ignora o seu desfecho.

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