Vimo-lo casualmente ao olharmos pela janela do
carro, imóvel, gasto e já curvado, de queixo levantado, no meio da mata e entre
as penhas, de olhar fixo e demorado na serra, como se ali não estivesse ou dali
nunca houvesse saído, enquanto a brisa nocturna chegava e não se avistava
vivalma. Temendo o pior pelo anormal daquele avistamento, saímos da viatura e decidimos
entabular conversa com ele, talvez precisasse de algo, fosse vítima de assalto,
tivesse sido abandonado, estivesse doente ou perdido. Apesar dos estalar das
folhas que denunciavam a nossa aproximação, ele manteve-se impenetrável como
imbuído de determinada missão, indiferente à nossa presença, com os olhos postos
na mesma direcção. Junto dele, vimos cair-lhe uma lágrima furtiva sobre a boca
contraída, que ele tentou disfarçar pelo enrugar da face. Intrigados e
perplexos, hesitámos em falar-lhe, temendo ser inoportunos e não sabendo o que
dizer-lhe. Passados alguns segundos, inesperadamente, diz-nos: “Descansem que
estou bem, venho visitar uma amiga, regressar ao passado e matar saudades,
lembrar a alegria para que a tristeza não me abata!”.
E continuou: “ Fiz a mesma caminhada que fazia com
ela a pé, cerca de uma légua, em passo apertado e pelo lado esquerdo da estrada,
o mesmo percurso ao longo de 11 anos. Ela ia a meu lado sem puxar, alegre,
atenta e invariavelmente a olhar para mim. Aqui costumava soltá-la, tirar-lhe a
trela e mandá-la para diante. Na mata sentia-se como em casa, desaparecia por
entre os arbustos e corria serra acima. Eu deixava de a ver, sabia por onde
andava pelo abanar dos fetos, até que finalmente parava naquela penha mais
alta, vitoriosa e desafiadora, ladrando para que a acompanhasse. Ainda parece
que a vejo, focinho ao vento, orelhas erectas, de postura solene sobre o
horizonte. Vou voltar para casa sozinho, mas enquanto aqui estou, sinto a sua
presença e saio reconfortado. Amanhã cá estarei de novo! Venho aqui todos os
dias à mesma hora, menos às Terças, porque saio da fisioterapia já cansado.
Morreu a olhar para mim na mesa do veterinário, envenenada não se sabe por
quem, de olhos vidrados, sem convulsões e em silêncio, provavelmente vítima de
um vizinho mal intencionado. Como não a enterrei, continua viva para mim, a
correr por esta encosta acima e aqui reencontro-me com ela”.
Aturdidos com a narrativa, perguntámos-lhe como se
chamava a cadela. “ Ela chama-se Beth, porque ainda vive em mim!” –
respondeu-nos compenetrado e imóvel, como quem não pode e não quer ser
distraído. Momentaneamente, apeteceu-nos confortá-lo e abraçá-lo, manifestar a
nossa solidariedade e aconselhá-lo a adquirir outro cão. Mas como não nos deu
entrada para isso, sentindo-nos infiéis perante tamanha peregrinação, zarpámos
dali com cordiais votos de saúde, jurando para nós mesmos que jamais retornaríamos
àquele local na mesma hora. De volta a casa e aos treinos, sensibilizados por
aquele encontro, alterámos o plano de aula e procedemos à recusa de engodos,
motivando os donos pela desgraça daquele binómio, outrora real e agora
fictício, para que não venham a sofrer o mesmo desgosto e idêntica alienação. A
história é real e não acontece só aos outros, acontece com mais frequência a
quem ignora o seu desfecho.
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