sábado, 19 de julho de 2014

ENSINAR CÃES POR TERRAS DO FADO

Conhecemos um realizador de cinema que aqui sobrevive pela feitura de telenovelas, um homem visionário que veio de operador de câmara, temido pelas equipas técnicas, respeitado no meio e que se faz pagar. Por norma é chamado para começar e lançar todos os trabalhos e depois acaba substituído por outro mais barato, mais moldável, próprio para o “trabalho a metro” e mais ao gosto das depauperadas produtoras. Nas suas andanças pelo mundo trabalhou com gente de toda a parte, descobrindo que ninguém é melhor do que os outros e que todos têm virtudes e defeitos, uma identidade que reflecte o peso cultural de cada lugar. Lembrámo-nos dele porque identificava como ninguém as grandezas e misérias presentes nos portugueses com quem trabalhava, em tudo iguais às visíveis nos donos de cães que intentam treiná-los. Há mais de 10 anos que lhe perdemos o rasto, mas estamos-lhe gratos pelo muito que nos ensinou em tão pouco tempo, porque apresar de apaixonado pelo mundo da ficção, acabou por nos ajudar a melhor compreender as pessoas à nossa volta. Já tratámos deste assunto e vamos tratá-lo outra vez, já que os portugueses não param de nos surpreender.
Mais do que património da humanidade, ainda que muitos o neguem, mais por presunção e vã resistência do que por ausência de identificação, o Fado é uma constante na vida dos portugueses de Norte a Sul, que acaba por exteriorizar aquilo que pensam, sentem e não confessam, sentimentos como tristeza, saudade, amor, traição e esperança, que longe de afectarem somente os lusos mais antigos, acabam por influir directamente no modo de vida dos portugueses mais recentes, estabelecendo entre ambos uma ponte cultural que remonta a tempos vetustos. Só se sendo cego e surdo, deliberadamente ou por ignorância, é que não se consegue ver e ouvir a presença do fado noutros géneros musicais portugueses, raiz também presente no “Rock Português” e nos temas dos mais afamados cançonetistas de origem popular, trivial, zombeteira ou erudita deste século e do anterior. Onde fomos buscar este apego ao destino e à predestinação ninguém sabe, apesar de não nos faltarem razões históricas e laços culturais. Será que sempre fomos assim, herdámos isso de alguém ou fomos reforçados naquilo que sempre fomos? É possível que as hipóteses do presente sejam falhas e que futuramente alguém descubra qual a verdadeira razão, provavelmente associada ao melhor conhecimento do nosso ADN mitocondrial (já houve quem transitasse do Fado para o Jazz e se “sentisse em casa”). 
Fatalmente há sempre um modo português de fazer as coisas, presente em todas as actividades e com as mesmas características, algo quase a ser conseguido e que acaba fatidicamente improvisado, incompleto ou por retornar ao ponto de partida, quando tudo parecia ir de vento em popa, um revés tantas vezes justificado pelo incontornável destino que amiúde se repete ou como disse uma alma simples: “tudo o que detesto cai-me em mãos!”, o que de certa maneira justifica o nosso atraso relativo a alguns dos nossos parceiros europeus, mais coesos, pragmáticos e menos metafísicos, gente que olha por si, faz o futuro e não espera o “Quinto Império”, menos dada a fezadas e à procura de milagres. Como produto da prata da casa, a cinotecnia nacional enferma das mesmas desventuras e mal-aventuranças, porque a procura de novidades, forçada pela sobrevivência, tem levado muitos a uma macedónia de métodos que melhor serve a confusão e que tão depressa aparece como desaparece, erigindo uns tantos “gurus” sustentados pela ignorância, que com propriedade poderiam ser tratados como “encantadores de cães”, ainda que o sejam mais dos seus donos ou…donas, o que vem impedindo a formação de uma verdadeira escola nacional, com cariz próprio e com alguma erudição, tendência que nos tem afastado dos lugares cimeiros da cinotecnia europeia e global, onde nunca estivemos e poderíamos estar, apesar de termos sido os primeiros a usar intencionalmente matilhas heterogéneas na caça ao javali e ao veado.
A desunião e a falta de continuidade, quando associadas à maledicência e à “política do deita abaixo”, segundo a célebre máxima de “cada cabeça sua sentença”, características que diferem e aproximam alguns portugueses doutros povos, que contribuem para a desconfiança mútua e para o roer dos calcanhares alheios, ao chegarem à cinotecnia, acabam por dificultar a disciplina, a boa ordem dos trabalhos e o seu progresso, usurpando os seus lugares a balda, a galhofa e a ausência de objectivos, o que irá dificultar de sobremaneira o processo pedagógico canino e consequentemente o rendimento dos cães, ainda que os seus condutores se contentem com pouco e aceitem o logro como parte integrante da sua sorte, o que na hora da atribuição das culpas não poupará os animais, a despeito da sua qualidade, proveniência e desamparo.
A relação entre o adestrador e os adestrantes (condutores dos cães), merece ser avaliada pelos 5 vectores que tipificam o condutor canino português, são eles: a sua compreensão da autoridade, o seu tipo de responsabilidade, o entendimento que tem do trabalho, a natureza dos seus objectivos e o seu inevitável desfecho. Ainda que tema o castigo no seu sentido mais lato, o português comum não gosta da autoridade e têm-lhe uma natural aversão, porque é desconfiado (teme que lhe “passem a perna”), não a compreende como garante da ordem, tenta usurpá-la e detesta ser confrontado. Não a conseguindo evitar e culpabilizar outrem, quando em contravenção, tudo fará para se libertar do seu peso, para a banalizar ou destituir, podendo valer-se do suborno para suavizar as suas penas. Tido como de brandos costumes, é ele é um pseudo-resistente passivo que aguarda oportunidade, que guarda para si o que pensa e que acaba por surpreender. Nas escolas caninas melindra-se diante das correcções e justifica os seus desacertos como ninguém, atribuindo-os a toda a sorte de infortúnios, que vão desde o mal-estar passageiro até à influência nefasta dos outros cães. Por tudo isto, exigir-lhe responsabilidades no adestramento é o cabo dos trabalhos, porque diz-se a fazer o melhor que sabe e que “quem dá o que tem, a mais não é obrigado!” (frase comum para nos mandar bugiar e sacudir a água do capote). E quando nada diz… dificilmente o voltaremos a ver!
Mais do que a pensar na salvaguarda dos cães, a maioria dos condutores lusos vem para o treino para evitar maiores embaraços ou por descargo de consciência, por curiosidade, ser socialmente bem aceite e também por algum espírito aventureiro, o que não irá facilitar a sua adequação ao mundo do adestramento e a absorção dos seus procedimentos e rotinas, que os irão obrigar a mudanças graduais (mais psíquicas e cognitivas do que físicas) para a compreensão e alcance do condicionamento. Resistentes às mudanças, naturalmente avessos à pontualidade, carentes de encorajamento constante e dados a emoções extremadas, se não desistirem antes, tardarão em ver os frutos do seu trabalho. Mas é na indisciplina que reside a sua maior fragilidade, porque interrompem desnecessariamente os seus mestres e começam a falar antes de ouvirem as suas explicações, o que lhes dissiparia as dúvidas e que justifica a urgente necessidade de aprenderem a ouvir.
Por tudo isto, quem lhes ministra aulas é obrigado a enfatizar a recapitulação, até porque muitos tendo dúvidas, não as colocam e até são capazes de dizer que as não têm (talvez pelo medo da exposição), o que irá obrigar a um relacionamento mais empático, em separado e fora de horas (se for do seu interesse e o consentirem), procedimento também justificado perante aqueles que, tendo dificuldades de apreensão, tardam em encontrar a solução para os seus erros mais comuns, antes que se digam vitimados pelo disparate e fadados prá desgraça. Pouco chegado ao rigor, o condutor canino português, salvo raras e honrosas excepções, procura o facilitismo e despreza o trabalho oficinal, espera pela inspiração e abomina o suor, particularidades que o afastam das metas, sonegam-lhe os objectivos e cujo desfecho não deixará de ser fatídico – o desaproveitamento escolar, que sucede em grande número e um pouco por toda a parte. Dominado pelo improviso e entregue aos seus próprios juízos, também porque “a tropa manda desenrascar”, ao invés de procurar condições para ir adiante, acaba por se afundar nas que sempre teve e das quais nunca saiu, apesar do mundo ser feito de mudança – que triste fado!
Perante uma “tropa” destas, exige-se um adestrador o menos português possível (um estrangeiro seria melhor), alguém vindo de fora, o que de imediato lhe abonaria as credenciais, que seja bem disposto, resoluto, inquebrantável, paciente, erudito e teimoso quanto baste. Ironias à parte, abordámos este tema para ajudar aqueles que agora começam a adestrar homens e cães, para que saibam ao que vão e aquilo que os espera, para que melhor se preparem e alcancem maior sucesso, facilitando-lhes a azáfama pelo diagnóstico que aqui fizemos. 

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