Conhecemos
um realizador de cinema que aqui sobrevive pela feitura de telenovelas, um
homem visionário que veio de operador de câmara, temido pelas equipas técnicas,
respeitado no meio e que se faz pagar. Por norma é chamado para começar e
lançar todos os trabalhos e depois acaba substituído por outro mais barato, mais
moldável, próprio para o “trabalho a metro” e mais ao gosto das depauperadas
produtoras. Nas suas andanças pelo mundo trabalhou com gente de toda a parte,
descobrindo que ninguém é melhor do que os outros e que todos têm virtudes e
defeitos, uma identidade que reflecte o peso cultural de cada lugar.
Lembrámo-nos dele porque identificava como ninguém as grandezas e misérias
presentes nos portugueses com quem trabalhava, em tudo iguais às visíveis nos
donos de cães que intentam treiná-los. Há mais de 10 anos que lhe perdemos o
rasto, mas estamos-lhe gratos pelo muito que nos ensinou em tão pouco tempo,
porque apresar de apaixonado pelo mundo da ficção, acabou por nos ajudar a
melhor compreender as pessoas à nossa volta. Já tratámos deste assunto e vamos
tratá-lo outra vez, já que os portugueses não param de nos surpreender.
Mais do
que património da humanidade, ainda que muitos o neguem, mais por presunção e
vã resistência do que por ausência de identificação, o Fado é uma constante na
vida dos portugueses de Norte a Sul, que acaba por exteriorizar aquilo que
pensam, sentem e não confessam, sentimentos como tristeza, saudade, amor, traição
e esperança, que longe de afectarem somente os lusos mais antigos, acabam por
influir directamente no modo de vida dos portugueses mais recentes,
estabelecendo entre ambos uma ponte cultural que remonta a tempos vetustos. Só
se sendo cego e surdo, deliberadamente ou por ignorância, é que não se consegue
ver e ouvir a presença do fado noutros géneros musicais portugueses, raiz
também presente no “Rock Português” e nos temas dos mais afamados cançonetistas
de origem popular, trivial, zombeteira ou erudita deste século e do anterior. Onde
fomos buscar este apego ao destino e à predestinação ninguém sabe, apesar de
não nos faltarem razões históricas e laços culturais. Será que sempre fomos
assim, herdámos isso de alguém ou fomos reforçados naquilo que sempre fomos? É
possível que as hipóteses do presente sejam falhas e que futuramente alguém
descubra qual a verdadeira razão, provavelmente associada ao melhor
conhecimento do nosso ADN mitocondrial (já houve quem transitasse do Fado para
o Jazz e se “sentisse em casa”).
Fatalmente
há sempre um modo português de fazer as coisas, presente em todas as
actividades e com as mesmas características, algo quase a ser conseguido e que
acaba fatidicamente improvisado, incompleto ou por retornar ao ponto de partida,
quando tudo parecia ir de vento em popa, um revés tantas vezes justificado pelo
incontornável destino que amiúde se repete ou como disse uma alma simples:
“tudo o que detesto cai-me em mãos!”, o que de certa maneira justifica o nosso
atraso relativo a alguns dos nossos parceiros europeus, mais coesos,
pragmáticos e menos metafísicos, gente que olha por si, faz o futuro e não
espera o “Quinto Império”, menos dada a fezadas e à procura de milagres. Como
produto da prata da casa, a cinotecnia nacional enferma das mesmas desventuras
e mal-aventuranças, porque a procura de novidades, forçada pela sobrevivência,
tem levado muitos a uma macedónia de métodos que melhor serve a confusão e que
tão depressa aparece como desaparece, erigindo uns tantos “gurus” sustentados
pela ignorância, que com propriedade poderiam ser tratados como “encantadores
de cães”, ainda que o sejam mais dos seus donos ou…donas, o que vem impedindo a
formação de uma verdadeira escola nacional, com cariz próprio e com alguma
erudição, tendência que nos tem afastado dos lugares cimeiros da cinotecnia
europeia e global, onde nunca estivemos e poderíamos estar, apesar de termos
sido os primeiros a usar intencionalmente matilhas heterogéneas na caça ao
javali e ao veado.
A desunião e a falta de continuidade, quando
associadas à maledicência e à “política do deita abaixo”, segundo a célebre
máxima de “cada cabeça sua sentença”, características que diferem e aproximam
alguns portugueses doutros povos, que contribuem para a desconfiança mútua e
para o roer dos calcanhares alheios, ao chegarem à cinotecnia, acabam por
dificultar a disciplina, a boa ordem dos trabalhos e o seu progresso, usurpando
os seus lugares a balda, a galhofa e a ausência de objectivos, o que irá
dificultar de sobremaneira o processo pedagógico canino e consequentemente o
rendimento dos cães, ainda que os seus condutores se contentem com pouco e
aceitem o logro como parte integrante da sua sorte, o que na hora da atribuição
das culpas não poupará os animais, a despeito da sua qualidade, proveniência e
desamparo.
A relação
entre o adestrador e os adestrantes (condutores dos cães), merece ser avaliada
pelos 5 vectores que tipificam o condutor canino português, são eles: a sua
compreensão da autoridade, o seu tipo de responsabilidade, o entendimento que
tem do trabalho, a natureza dos seus objectivos e o seu inevitável desfecho.
Ainda que tema o castigo no seu sentido mais lato, o português comum não gosta
da autoridade e têm-lhe uma natural aversão, porque é desconfiado (teme que lhe
“passem a perna”), não a compreende como garante da ordem, tenta usurpá-la e
detesta ser confrontado. Não a conseguindo evitar e culpabilizar outrem, quando
em contravenção, tudo fará para se libertar do seu peso, para a banalizar ou
destituir, podendo valer-se do suborno para suavizar as suas penas. Tido como
de brandos costumes, é ele é um pseudo-resistente passivo que aguarda
oportunidade, que guarda para si o que pensa e que acaba por surpreender. Nas
escolas caninas melindra-se diante das correcções e justifica os seus
desacertos como ninguém, atribuindo-os a toda a sorte de infortúnios, que vão
desde o mal-estar passageiro até à influência nefasta dos outros cães. Por tudo
isto, exigir-lhe responsabilidades no adestramento é o cabo dos trabalhos,
porque diz-se a fazer o melhor que sabe e que “quem dá o que tem, a mais não é
obrigado!” (frase comum para nos mandar bugiar e sacudir a água do capote). E
quando nada diz… dificilmente o voltaremos a ver!
Mais do que a pensar na salvaguarda dos cães, a
maioria dos condutores lusos vem para o treino para evitar maiores embaraços ou
por descargo de consciência, por curiosidade, ser socialmente bem aceite e também
por algum espírito aventureiro, o que não irá facilitar a sua adequação ao
mundo do adestramento e a absorção dos seus procedimentos e rotinas, que os
irão obrigar a mudanças graduais (mais psíquicas e cognitivas do que físicas)
para a compreensão e alcance do condicionamento. Resistentes às mudanças, naturalmente
avessos à pontualidade, carentes de encorajamento constante e dados a emoções
extremadas, se não desistirem antes, tardarão em ver os frutos do seu trabalho.
Mas é na indisciplina que reside a sua maior fragilidade, porque interrompem
desnecessariamente os seus mestres e começam a falar antes de ouvirem as suas explicações,
o que lhes dissiparia as dúvidas e que justifica a urgente necessidade de
aprenderem a ouvir.
Por tudo
isto, quem lhes ministra aulas é obrigado a enfatizar a recapitulação, até porque
muitos tendo dúvidas, não as colocam e até são capazes de dizer que as não têm
(talvez pelo medo da exposição), o que irá obrigar a um relacionamento mais
empático, em separado e fora de horas (se for do seu interesse e o consentirem),
procedimento também justificado perante aqueles que, tendo dificuldades de
apreensão, tardam em encontrar a solução para os seus erros mais comuns, antes
que se digam vitimados pelo disparate e fadados prá desgraça. Pouco chegado ao
rigor, o condutor canino português, salvo raras e honrosas excepções, procura o
facilitismo e despreza o trabalho oficinal, espera pela inspiração e abomina o
suor, particularidades que o afastam das metas, sonegam-lhe os objectivos e
cujo desfecho não deixará de ser fatídico – o desaproveitamento escolar, que
sucede em grande número e um pouco por toda a parte. Dominado pelo improviso e
entregue aos seus próprios juízos, também porque “a tropa manda desenrascar”,
ao invés de procurar condições para ir adiante, acaba por se afundar nas que
sempre teve e das quais nunca saiu, apesar do mundo ser feito de mudança – que
triste fado!
Perante
uma “tropa” destas, exige-se um adestrador o menos português possível (um
estrangeiro seria melhor), alguém vindo de fora, o que de imediato lhe abonaria
as credenciais, que seja bem disposto, resoluto, inquebrantável, paciente,
erudito e teimoso quanto baste. Ironias à parte, abordámos este tema para ajudar
aqueles que agora começam a adestrar homens e cães, para que saibam ao que vão
e aquilo que os espera, para que melhor se preparem e alcancem maior sucesso,
facilitando-lhes a azáfama pelo diagnóstico que aqui fizemos.
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