Na hora de adquirir um cão, mais depressa se aquilata das possíveis
zoonoses do que das doenças que lhe podemos causar, porque primeiro pensamos no
que ele tem para nos dar e só depois naquilo que lhe devemos. Cresce o número
de pessoas noctívagas e cresce na mesma proporção do número de jovens que
temos, gente que teima em deitar-se e em levantar-se, que trabalha à revelia do
relógio natural e que faz da noite o seu período laboral por excelência,
detestando depois levantar-se sem sentir o sol a bater-lhe na cara, episódio
também decorrente da falta de pontualidade que entre nós sempre grassou. Alguns
destes noctívagos só conseguem raciocinar a partir das 11 horas da manhã,
porque até lá parecem não estar cá, como se fossem sonâmbulos obrigados a
pairar.
Quando esta urbe decide ter um cão, irá obrigar o animal aos mesmos
hábitos, apesar do bicho se reger pelo relógio biológico, alteração que não
será fácil, pacífica ou inconsequente, porque tamanha reviravolta, sendo
contra-natura, terá o seu preço, cujo montante o cão irá pagar! Donos
noctívagos e cães ansiosos sempre andaram de mãos dadas, ainda que os primeiros
não reconheçam de imediato a sua culpa e o reflexo das suas opções nos pobres
animais, havendo ainda alguns que, ignorando por completo o mal que causam, vão
queixar-se aos clínicos do seu comportamento, solicitando-lhes algo para os
acalmar, como se eles houvessem nascido depravados, anómalos por via genética,
vítimas de algum trauma desconhecido ou houvessem batido com a cabeça em
qualquer lado!
O facto do cão ter poucos instintos e
de não os seguir cegamente, sendo ao invés rico em personalidade, não implica
que consiga abandonar por completo a sua condição de animal e que compreenda em
absoluto o nosso mundo, vivendo como qualquer um de nós, apesar das diferenças
visíveis na sua espécie. Ainda que se adapte com facilidade às nossas rotinas e
modo de vida, ele encontra-se cativo às suas necessidades específicas e tenta
coaduná-las com aquilo que temos para lhe oferecer. Quando não o consegue, ele
vai continuar a tentar, a procurar modos para se manter um cão entre nós,
porque não pode abdicar do que é, não consegue ultrapassar as suas limitações e
vai fazê-lo ao longo de toda a sua existência. Quando o seu esforço se torna
inglório, por via dos transtornos presentes na sua experiência de vida, ligados
à insatisfação e ao desrespeito pela sua condição biológica, o stress levá-lo à
ansiedade, afecção que comprometerá o seu bem-estar, comportamento e posterior
aproveitamento.
As décadas que levamos de ensino levaram-nos a constatar que a maioria
dos cães ansiosos provinha de donos que se levantavam tarde e que faziam da
noite o seu período de maior actividade, apesar dos lobos, ancestrais dos cães,
caçarem durante a noite (entre o anoitecer e o amanhecer), característica que
transmitiram aos cães e que os tem vindo a creditar, desde a domesticação, como
guardiões, vigilantes e patrulheiros, já que ao lusco-fusco vêem melhor e os
seus sentidos são ainda mais abrangentes durante a noite, o que justifica de
sobremaneira a instrução nocturna canina, normalmente usada para o seu “despertar”,
avivamento e capacitação.
O atraso na saída matinal dos cães,
geralmente associado à irregularidade dos seus horários, tem sido responsável
por um conjunto de fenómenos psíquicos, cognitivos e físicos que a muitos tem
afectado, obrigando alguns animais a terapias cognitivas, comportamentais e
sociais, mercê da ansiedade que neles reina e que lhes foi transmitida pela
ausência de regra dos donos, indivíduos que a estabeleceram segundo a sua
conveniência, a partir de um regime excepcional e contra o seu bem-estar canino.
O ideal para os cães, aquilo que eles mais desejam e os faz sentir bem, é sair
um pouco antes do romper da aurora e não debaixo de calor, entre algazarra ou
perante demasiada azáfama. Quando um cão sujeito a este regime encontra alguém
que o leve à rua mais cedo, no período de alguns dias, bem depressa irá acordar
os seus donos a essa mesma hora, fenómeno estranho para eles mas que acontece
vezes sem conta.
Enquanto os donos dormem, com o dia a
avançar, a querer vencer o atraso e com a ansiedade à perna, qualquer cão
poderá vir a desenvolver todo um conjunto de taras, que poderão ir desde ladrar
incessante até à auto-mutilação, pelo correr atrás da cauda até a
comportamentos sexuais anómalos, manifestações que levarão muitos proprietários
caninos a treiná-los, como se a culpa fosse deles e a disciplina a mais
excelente das panaceias.
Tarde e a más horas vai o cão à rua com os donos ainda estremunhados e
como vai aflito para satisfazer as suas necessidades fisiológicas, porque puxa,
é mais cómodo e também por descargo de consciência, acabam por se valer duma
trela extensível, acessório dispensável caso fossem mais zelosos. Graças à
ansiedade, esse hábito e essa prática irão rebentar com a condução alinhada,
condenarão o animal à irritabilidade e promoverão a sua desatenção,
desconcentração, desobediência e o ensurdecimento para as ordens, podendo ainda
torná-lo ciumento, agressivo e anti-social, enquanto sintomas de revolta e
sinais de insatisfação. Os malandrecos que encerram os seus cães em boxes por
períodos superiores a 8 horas fazem-no consciente e deliberadamente para
atingirem os seus objectivos, certos que os cães sairão dali mais agressivos!
Para além dos aspectos psicológicos e cognitivos, a ansiedade “mexe”
ainda com os impulsos herdados caninos, nomeadamente com os relativos ao
alimento e ao movimento, o que influirá directamente no seu apetite e
morfologia, podendo desregular o primeiro e condicionar a segunda, por
obstrução a uma vida saudável. Debaixo de ansiedade, os cães ou comem demais e
tornam-se obesos ou deixam de comer, factores que influirão na sua qualidade de
vida e longevidade assim como no seu desenvolvimento físico e respectivas
performances. As implicações provocadas pela ansiedade podem ainda provocar
problemas gastrointestinais mais ou menos graves, taquicardias dispensáveis e
alterações na frequência respiratória, para além de um vasto conjunto de
doenças neurológicas ou psiquiátricas (ninguém melhor que o seu veterinário o
saberá esclarecer acerca disso).
Mal comparado, porque não nos apaixonamos pelo antropomorfismo, o cão
que tarda em ir à rua é como um bebé que permanece de fralda molhada, horas
infindas a chorar, enquanto os seus pais viram a cabeça para o outro lado,
indiferentes ao seu desconforto e mais interessados em dormir, ainda que depois
lhe ponham a pomada para as irritações cutâneas. Para que o treino canino surta
efeito é necessário que os donos respeitem os cães, a sua identidade e
necessidades biológicas, para que se torne para eles menos artificial e de
fácil absorção. Existe uma relação óptima entre tratamento e treino e sabemos
que o stress obsta à capacidade de aprendizagem. Levante-se da cama e liberte o
seu cão da ansiedade, satisfaça as suas necessidades e verá que ele só terá
olhos para si!
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