segunda-feira, 28 de julho de 2014

DONOS NOCTÍVAGOS E CÃES ANSIOSOS

Na hora de adquirir um cão, mais depressa se aquilata das possíveis zoonoses do que das doenças que lhe podemos causar, porque primeiro pensamos no que ele tem para nos dar e só depois naquilo que lhe devemos. Cresce o número de pessoas noctívagas e cresce na mesma proporção do número de jovens que temos, gente que teima em deitar-se e em levantar-se, que trabalha à revelia do relógio natural e que faz da noite o seu período laboral por excelência, detestando depois levantar-se sem sentir o sol a bater-lhe na cara, episódio também decorrente da falta de pontualidade que entre nós sempre grassou. Alguns destes noctívagos só conseguem raciocinar a partir das 11 horas da manhã, porque até lá parecem não estar cá, como se fossem sonâmbulos obrigados a pairar.
Quando esta urbe decide ter um cão, irá obrigar o animal aos mesmos hábitos, apesar do bicho se reger pelo relógio biológico, alteração que não será fácil, pacífica ou inconsequente, porque tamanha reviravolta, sendo contra-natura, terá o seu preço, cujo montante o cão irá pagar! Donos noctívagos e cães ansiosos sempre andaram de mãos dadas, ainda que os primeiros não reconheçam de imediato a sua culpa e o reflexo das suas opções nos pobres animais, havendo ainda alguns que, ignorando por completo o mal que causam, vão queixar-se aos clínicos do seu comportamento, solicitando-lhes algo para os acalmar, como se eles houvessem nascido depravados, anómalos por via genética, vítimas de algum trauma desconhecido ou houvessem batido com a cabeça em qualquer lado!
O facto do cão ter poucos instintos e de não os seguir cegamente, sendo ao invés rico em personalidade, não implica que consiga abandonar por completo a sua condição de animal e que compreenda em absoluto o nosso mundo, vivendo como qualquer um de nós, apesar das diferenças visíveis na sua espécie. Ainda que se adapte com facilidade às nossas rotinas e modo de vida, ele encontra-se cativo às suas necessidades específicas e tenta coaduná-las com aquilo que temos para lhe oferecer. Quando não o consegue, ele vai continuar a tentar, a procurar modos para se manter um cão entre nós, porque não pode abdicar do que é, não consegue ultrapassar as suas limitações e vai fazê-lo ao longo de toda a sua existência. Quando o seu esforço se torna inglório, por via dos transtornos presentes na sua experiência de vida, ligados à insatisfação e ao desrespeito pela sua condição biológica, o stress levá-lo à ansiedade, afecção que comprometerá o seu bem-estar, comportamento e posterior aproveitamento.
As décadas que levamos de ensino levaram-nos a constatar que a maioria dos cães ansiosos provinha de donos que se levantavam tarde e que faziam da noite o seu período de maior actividade, apesar dos lobos, ancestrais dos cães, caçarem durante a noite (entre o anoitecer e o amanhecer), característica que transmitiram aos cães e que os tem vindo a creditar, desde a domesticação, como guardiões, vigilantes e patrulheiros, já que ao lusco-fusco vêem melhor e os seus sentidos são ainda mais abrangentes durante a noite, o que justifica de sobremaneira a instrução nocturna canina, normalmente usada para o seu “despertar”, avivamento e capacitação.
O atraso na saída matinal dos cães, geralmente associado à irregularidade dos seus horários, tem sido responsável por um conjunto de fenómenos psíquicos, cognitivos e físicos que a muitos tem afectado, obrigando alguns animais a terapias cognitivas, comportamentais e sociais, mercê da ansiedade que neles reina e que lhes foi transmitida pela ausência de regra dos donos, indivíduos que a estabeleceram segundo a sua conveniência, a partir de um regime excepcional e contra o seu bem-estar canino. O ideal para os cães, aquilo que eles mais desejam e os faz sentir bem, é sair um pouco antes do romper da aurora e não debaixo de calor, entre algazarra ou perante demasiada azáfama. Quando um cão sujeito a este regime encontra alguém que o leve à rua mais cedo, no período de alguns dias, bem depressa irá acordar os seus donos a essa mesma hora, fenómeno estranho para eles mas que acontece vezes sem conta.
Enquanto os donos dormem, com o dia a avançar, a querer vencer o atraso e com a ansiedade à perna, qualquer cão poderá vir a desenvolver todo um conjunto de taras, que poderão ir desde ladrar incessante até à auto-mutilação, pelo correr atrás da cauda até a comportamentos sexuais anómalos, manifestações que levarão muitos proprietários caninos a treiná-los, como se a culpa fosse deles e a disciplina a mais excelente das panaceias.
Tarde e a más horas vai o cão à rua com os donos ainda estremunhados e como vai aflito para satisfazer as suas necessidades fisiológicas, porque puxa, é mais cómodo e também por descargo de consciência, acabam por se valer duma trela extensível, acessório dispensável caso fossem mais zelosos. Graças à ansiedade, esse hábito e essa prática irão rebentar com a condução alinhada, condenarão o animal à irritabilidade e promoverão a sua desatenção, desconcentração, desobediência e o ensurdecimento para as ordens, podendo ainda torná-lo ciumento, agressivo e anti-social, enquanto sintomas de revolta e sinais de insatisfação. Os malandrecos que encerram os seus cães em boxes por períodos superiores a 8 horas fazem-no consciente e deliberadamente para atingirem os seus objectivos, certos que os cães sairão dali mais agressivos!
Para além dos aspectos psicológicos e cognitivos, a ansiedade “mexe” ainda com os impulsos herdados caninos, nomeadamente com os relativos ao alimento e ao movimento, o que influirá directamente no seu apetite e morfologia, podendo desregular o primeiro e condicionar a segunda, por obstrução a uma vida saudável. Debaixo de ansiedade, os cães ou comem demais e tornam-se obesos ou deixam de comer, factores que influirão na sua qualidade de vida e longevidade assim como no seu desenvolvimento físico e respectivas performances. As implicações provocadas pela ansiedade podem ainda provocar problemas gastrointestinais mais ou menos graves, taquicardias dispensáveis e alterações na frequência respiratória, para além de um vasto conjunto de doenças neurológicas ou psiquiátricas (ninguém melhor que o seu veterinário o saberá esclarecer acerca disso).
Mal comparado, porque não nos apaixonamos pelo antropomorfismo, o cão que tarda em ir à rua é como um bebé que permanece de fralda molhada, horas infindas a chorar, enquanto os seus pais viram a cabeça para o outro lado, indiferentes ao seu desconforto e mais interessados em dormir, ainda que depois lhe ponham a pomada para as irritações cutâneas. Para que o treino canino surta efeito é necessário que os donos respeitem os cães, a sua identidade e necessidades biológicas, para que se torne para eles menos artificial e de fácil absorção. Existe uma relação óptima entre tratamento e treino e sabemos que o stress obsta à capacidade de aprendizagem. Levante-se da cama e liberte o seu cão da ansiedade, satisfaça as suas necessidades e verá que ele só terá olhos para si! 

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