Como o mundo que rodeia os cães está
repleto de mentiras, falsas verdades e subjectividade, dedicamos a presente
edição do Blog à denúncia de algumas delas, que apesar de socialmente bem aceites,
são verdadeiros atentados contra o lobo familiar. Uma, que poucos contestam,
muitos louvam e outros põem em prática, é a de relegar para uma quinta um
cachorro ou um cão (geralmente de médio ou grande porte), para que venha a
guardá-la. Diz-se que ali, por terem mais espaço para correr, os cães andarão
mais à vontade, farão mais exercício e serão mais felizes, patranhas que não
correspondem à realidade e que importa desmistificar, geralmente perpetradas
por gente que nem um cão sabe escolher e que ainda por cima não tem tempo para
ele. Para melhor se compreender a falsidade destes pressupostos, iremos
analisá-los dos pontos vista psicológico, cognitivo social e físico, já que
habitats destes produzem profundas alterações quer na morfologia quer no comportamento
dos cães.
Do ponto de vista psicológico, se o cachorro ali passar a maior parte do
tempo sozinho e entregue a si próprio, só sendo visitado esporadicamente por
quem tiver a incumbência de o alimentar, o animal tenderá a assilvestrar-se e a
não constituir vínculos afectivos mais fortes com os seus donos e restantes
humanos, o que o tornará furtivo diante da sua presença e o vulnerabilizará nas
situações em que irá necessitar de apoio, por ausência de mestres e
precariedade de instintos, porque jamais conseguirá retornar ao lobo seu
ancestral. Na divisão a grosso modo entre dominantes e submissos, os primeiros
poderão tornar-se perigosos e os segundos nuns fantasmas, escondendo-se ambos
perante a intrusão no seu território, muito embora não se afastem muito do
local onde comem, especialmente quando a comida escasseia ou chega tarde e a
más horas. Os dominantes bem depressa defenderão o seu penso e poderão atacar
quem dele se aproximar.
Os submissos só comerão depois da
ausência do “tratador”, podendo esperar pela noite para se alimentarem. Os mais
valentes assinalarão a sua presença pelo ladrar ou pelo rosnar e os mais
submissos esconder-se-ão como se ali não estivessem, os mais dominantes poderão
carregar os visitantes à saída e os outros dificilmente se aproximarão deles.
Em síntese, o mais excelente dos caracteres caninos poderá ser subvertido pela
necessidade de carga instintiva que a quinta exige, devolvendo aos animais algumas
características atávicas, pela ausência de liderança que induz à suspeição, há
muito vencidas e que obstam à parceria com o homem, promovendo assim um retrocesso
no entendimento mutuo que terá como consequência a ausência do préstimo canino.
Se do ponto de vista psicológico a quinta pode condenar a parceria
canina e enraizar a suspeição, a desconfiança, o medo e os ataques de surtida
nos cães, do ponto de vista cognitivo, como não poderia deixar de ser, iguais
ou maiores danos lhes causará, mercê da experiência repetitiva e pobre que o
local oferece e o isolamento fundamenta, reforçados ainda pelos achaques
psicológicos atrás discriminados, enquanto entraves maiores para o salutar
desenvolvimento do seu impulso ao conhecimento. O isolado cão de quinta irá
resistir a tudo aquilo que estiver para além do suprimento das suas
necessidades básicas, ao abandono do seu território, a diferentes tipos de
liderança e insurgir-se-á contra o modo mais dissimulado de condicionamento, porque
experimentou a liberdade, tomou as rédeas do seu destino e não verá com bons
olhos o desconhecido e aquilo que nunca experimentou, o que dificultará de
sobremaneira a sua adaptação, aprendizado e desejável capacitação. Não foi pelo
confinamento que os homens encetaram a domesticação dos lobos?
Condenado ao isolamento, dominado pela desconfiança e sujeito a uma
experiência repetitiva e pobre, o cão da quinta tornar-se-á anti-social ou
socialmente apático, porque a pseudo-autonomia o isentou da compreensão da
hierarquia e da disciplina de grupo. Acostumado a agir por conta própria,
mormente pelos instintos, ele irá resistir a qualquer tipo de autoridade dentro
e fora do seu reduto, resistindo tanto ao norteamento como ao travamento.
Quando obrigado a sair do seu território, por motivos imperativos, opor-se-á ao
seu abandono e tremerá diante de toda a novidade circunstancial ou territorial,
por insegurança e despreparo, podendo agredir quem com ele instar. Resistirá ao
toque e tornar-se-á impacientemente diante observação, criando imediatamente
barreiras à sociabilização, fenómenos que absorverá logo após a sua maturidade
sexual. Nestas condições, os cães notoriamente submissos entrarão em estado
letárgico e espreitarão oportunidade para se escaparem.
Se do ponto de vista social a quinta é um verdadeiro atentado para os
cães, o que dizer do ponto de vista físico, já que apenas se irão mexer por
imperativos ligados à sua sobrevivência e comodidade, desistindo
progressivamente dos desafios que foram aceitando, à medida que se tornaram
conhecidos e sem interesse. Com isso desprezarão o andamento natural intermédio
– a marcha (andamento musculador por excelência), transitando do passo para o
galope e estoirando-se rapidamente, o que acarretará em alterações morfológicas
que originarão a supressão da massa muscular e incapacidades físicas ligadas à
ausência de convexidade, também elas responsáveis por uma menor aptidão, por
ritmos vitais mais elevados e consequentemente pelo seu envelhecimento precoce
(encurtamento da sua esperança de vida). Que grande mentira é dizer que os cães
de quinta fazem ali mais exercício! O facto de terem mais espaço para andar não
significa que batam ou percorram amiúde o seu perímetro, já que por norma
sucede o contrário.
E ainda nem falámos da higiene, factor muitas vezes responsável pelo
envio de cães para quintas, já que muitos donos dispensam limpá-los e
escová-los, esperando que a mãe natureza o faça, porque não querem ou não têm
tempo para o fazer. A felicidade do cão na quinta é uma fábula com um final
amargo, uma história sem moral e um verdadeiro inferno para os animais.
Dependendo da sua extensão, na quinta estaria melhor uma cabra, uma vaca, um
burro ou um cavalo, desde que o pasto não faltasse e tivessem onde se abrigar.
Porque persistem alguns homens em “cowdogs” e em “weekend dogs”, só para os
terem e depois os perderem? Melhor seria que se contentassem com um peixinho
vermelho!