quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Nobre das caçadas

Há um fidalgo em cada um de nós, um squire que habita na nossa cabeça e que por vezes nos convence, levando-nos à confusão entre aquilo que somos e o que gostaríamos de ser, pela força do sonho que nos suporta a realidade. Essa mania da grandeza transforma uns em comilões, outros em déspotas, uns tantos em filantropos, alguns em pedantes e todos perdem a noção da realidade pelo fruto da ilusão. Quando a burla não causa vítimas, a loucura morre na fonte, e segundo o extracto social de cada um aplicam-se termos como: excêntrico ou alienado. Lutaremos até morrer contra a criança que há em nós, porque apesar dos dissabores, mantém-nos vivos e conserva-nos o alento, mesmo que a desusemos ou lhe façamos orelhas moucas.
Na canicultura sempre seremos surpreendidos com indivíduos assim, uns tantos magnânimos que, distantes das suas obrigações, são proprietários de grande número de cães, sem condições para os sustentar e ignorando o seu bem-estar, mantendo os animais à molhada como reclusos em pátio prisional, dispensados dos veterinários, arredados da educação, sujeitos à precariedade das dietas, cativos à mixórdia, isentos de convívio e entregues a si próprios. O fenómeno é mais visível entre os pobres, porque a avareza dos ricos não embarca em cantilenas, muito embora possam tratar os seus cães de igual modo, como tantas vezes temos visto.
No campo é comum ver-se fileiras intermináveis de podengos acorrentados, em coelheiras exíguas e circundadas de ossos e dejectos, animais mutilados e com feridas por sarar, empoleirados nos abrigos e atazanados pelas moscas que lhe comem as orelhas. Os seus proprietários, os ditos nobres das caçadas, acham tudo muito natural, justificando a miséria como preparo essencial para o ofício cinegético. Na urbe subsistem ainda dois tipos de alienados de igual pancada: o filantropo e o pseudo criador. O primeiro dedica-se à captura de todos os animais abandonados, enjaulando-os às dezenas em garagens ou roulottes, alimentando-os de sobras, dispensando-os dos cuidados básicos e solicitando a caridade alheia, tal qual monge medieval de sininho a tinir com promessa de indulgências. O segundo, que se diz criador, faz do seu quintal uma maternidade, criando cães à laia de unidade industrial, dando aos animais condições idênticas às encontradas entre os operários na actual China. Nos dois casos, porque a privação da liberdade individual é um facto, a sociabilização acontece à dentada e os animais assilvestram-se, resultando daí feridos, moribundos e mortos: cães em campos de concentração! Porque andam sempre magros e têm o semblante triste? Será que a ingratidão impede a sua alegria? Sobre quem assentará a loucura?

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