Ao longo da minha
existência assisti e nalguns casos participei, no treino de cães de guarda em
vários continentes. Vi grandes figurantes, comediantes e actores mas somente um
punhado de bons cães que, com o decorrer do tempo e por circunstâncias várias,
são cada vez mais raros, apesar de crescer o número daqueles com especificações
guardiãs registadas nos seus pedigrees, talvez porque mais se valorize o
ataque, o desporto e o simulacro em detrimento da defesa, da acção e da
realidade, o que bem vistas coisas até é desejável, considerando o bem-estar e
salvaguarda de pessoas e cães. Porém, esta política lembra o que se diz sobre o
uso da pistola de alarme, de quem dizem assustar dois: a pessoa que a dispara e
quem é surpreendido por ela, podendo o seu portador receber chumbo como
resposta.
Como qualquer pugilista ou
outro tipo de lutador humano, até porque irá entrar num combate desigual, o cão
de guarda precisará de aprender a defender-se e a suportar os golpes dos seus
opositores, geralmente maiores, melhor armados, mais ardilosos e bem para além
das suas escolhas naturais. Os cães, ao contrário de alguns homens com achaques
individuais por vezes advindos de fragilidades sociais, não se prestam a sacos
de pancada, ao suicídio para se livrarem da dor, optando a maioria por fugir e
um pequeno grupo a lutar desesperadamente pela sua sobrevivência, nobreza rara
que a genética oferece, o treino aproveita e que não tem livrado da morte
aqueles que não arredaram pé, valentia que tem possibilitado a defesa dos donos
e até poupado as suas vidas. Como um soldado ou um polícia, que de imediato não
aquilatam que têm a vida presa por um fio, o cão de guarda pode morrer no
exercício das suas funções, pelo que brincar aos cães de guarda pode ser e na
maioria dos casos é, uma leviandade que se repercutirá em vítimas (os cães).
Tudo no ensino canino
resulta da investidura que é dada aos animais e em muito poucos se poderá
transformar a ficção em realidade como nos cães, pormenor inalcançável sem o
seu particular social, gratidão e credulidade. Mediante a experiência feliz, a
esmagadora maioria deles virá a rondar, a denunciar, a defender, a desarmar e a
atacar intrusos ou invasores, nem que seja por uma só vez. Nada no adestramento
acontece por acaso e nenhum objectivo dispensa as metas que o sustentam,
sucedendo exactamente o mesmo na disciplina de guarda, quando procuramos que os
cães surpreendam e não venham a ser surpreendidos, porque só a surpresa lhes
garantirá a vitória. Por causa disso muito se investe na sua preparação, na
carga, intensidade e novidade dos exercícios. A necessidade da surpresa canina
tem tornado obsoletas determinadas raças até aqui usadas para guarda,
privilegiando-se, outras mais leves, mais rápidas e menos previsíveis, na
transição da presença ostensiva para a captura automática, sobrando disso
algumas dificuldades no travamento e na cessação das acções, já que esses lupinos
comportam-se e evoluem como autênticos “sighthounds”.
Trabalhar cães para guarda,
como outrora não se fez e é hoje prática corrente, exclusivamente através de
indução e de uma pretensa carga genética, só porque os cães são de uma determinada
raça, é condenar ao logro o serviço desses indivíduos e quiçá contribuir para a
sua precoce eliminação, uma vez que se revelarão vulneráveis e impróprios para
a função, ainda que adquiram uma apresentação similar à dos indicados, o que
mais os condenará. Neste País de toureiros e touradas, agora a merecerem alguma
contestação, a garraiada desceu aos centros de treinos caninos, trocando-se as
vacas por cães e os forcados por cobaias. O recrutamento de cães para o ofício
guardião tem vindo a subverter regras e critérios clássicos há muito
comprovados, ao dar a primazia ao impulso ao alimento em detrimento dos impulso
à luta e ao poder, aliciamento que induz à dependência e condiciona ou obsta ao
bom desempenho, não sendo por isso de estranhar que os ferozes cães do passado
sejam agora rendidos pelos esfomeados do presente, anãozinhos rezingões e
refilões que muito bem ficariam ao lado da “Snow White” (Branca de Neve).
E porque o cão de guarda
trabalha invariavelmente isolado e em substituição do policiamento dos donos,
convém que seja adestrado no confronto activo e não passivo, que se acostume
gradualmente aos contra-ataques, que deverão aumentar de intensidade, ser de
diferentes tipos e com novidade de armas, para que a sua resistência aumente, a
experiência o capacite e se torne hábil no domínio dos diversos inimigos que
terá pela frente. Sim, é a resistência à dor que estabelece a diferença
gradativa entre os guardiões! Deixaria de ser se todos os ataques caninos
acontecessem de surpresa sobre incautos invasores. A tarefa de guardar e
policiar só pode ser entregue aos cães dominantes, não aos que se submetem pela
dor. Não estamos com isto a fazer a fazer a apologia dos cães de guarda ou de
qualquer besta-fera, porque o assunto é demasiado sério, o feitiço pode
virar-se contra o feiticeiro e da contenda sempre alguém sai maltratado. O que
não queremos e optámos por denunciar é que a máxima “mas vale sê-lo do que
parecê-lo” não pode ser aplicada aos cães de guarda, sob o risco de virem a ser
eliminados. Sempre será melhor brincar ao paintball do que aos cães de guarda,
considerando a salvaguarda de homens e cães. Caso o apelo predador domine sobre
si, fique-se pela guarda desportiva e delicie-se com o “faz de conta”, porque
nela raramente alguém se aleija e ainda pode ver premiada a sua incontida
paixão.
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