domingo, 31 de maio de 2015

SERÁ A RESISTÊNCIA À DOR A FAZER A DIFERENÇA!

Ao longo da minha existência assisti e nalguns casos participei, no treino de cães de guarda em vários continentes. Vi grandes figurantes, comediantes e actores mas somente um punhado de bons cães que, com o decorrer do tempo e por circunstâncias várias, são cada vez mais raros, apesar de crescer o número daqueles com especificações guardiãs registadas nos seus pedigrees, talvez porque mais se valorize o ataque, o desporto e o simulacro em detrimento da defesa, da acção e da realidade, o que bem vistas coisas até é desejável, considerando o bem-estar e salvaguarda de pessoas e cães. Porém, esta política lembra o que se diz sobre o uso da pistola de alarme, de quem dizem assustar dois: a pessoa que a dispara e quem é surpreendido por ela, podendo o seu portador receber chumbo como resposta.
Como qualquer pugilista ou outro tipo de lutador humano, até porque irá entrar num combate desigual, o cão de guarda precisará de aprender a defender-se e a suportar os golpes dos seus opositores, geralmente maiores, melhor armados, mais ardilosos e bem para além das suas escolhas naturais. Os cães, ao contrário de alguns homens com achaques individuais por vezes advindos de fragilidades sociais, não se prestam a sacos de pancada, ao suicídio para se livrarem da dor, optando a maioria por fugir e um pequeno grupo a lutar desesperadamente pela sua sobrevivência, nobreza rara que a genética oferece, o treino aproveita e que não tem livrado da morte aqueles que não arredaram pé, valentia que tem possibilitado a defesa dos donos e até poupado as suas vidas. Como um soldado ou um polícia, que de imediato não aquilatam que têm a vida presa por um fio, o cão de guarda pode morrer no exercício das suas funções, pelo que brincar aos cães de guarda pode ser e na maioria dos casos é, uma leviandade que se repercutirá em vítimas (os cães).
Tudo no ensino canino resulta da investidura que é dada aos animais e em muito poucos se poderá transformar a ficção em realidade como nos cães, pormenor inalcançável sem o seu particular social, gratidão e credulidade. Mediante a experiência feliz, a esmagadora maioria deles virá a rondar, a denunciar, a defender, a desarmar e a atacar intrusos ou invasores, nem que seja por uma só vez. Nada no adestramento acontece por acaso e nenhum objectivo dispensa as metas que o sustentam, sucedendo exactamente o mesmo na disciplina de guarda, quando procuramos que os cães surpreendam e não venham a ser surpreendidos, porque só a surpresa lhes garantirá a vitória. Por causa disso muito se investe na sua preparação, na carga, intensidade e novidade dos exercícios. A necessidade da surpresa canina tem tornado obsoletas determinadas raças até aqui usadas para guarda, privilegiando-se, outras mais leves, mais rápidas e menos previsíveis, na transição da presença ostensiva para a captura automática, sobrando disso algumas dificuldades no travamento e na cessação das acções, já que esses lupinos comportam-se e evoluem como autênticos “sighthounds”.
Trabalhar cães para guarda, como outrora não se fez e é hoje prática corrente, exclusivamente através de indução e de uma pretensa carga genética, só porque os cães são de uma determinada raça, é condenar ao logro o serviço desses indivíduos e quiçá contribuir para a sua precoce eliminação, uma vez que se revelarão vulneráveis e impróprios para a função, ainda que adquiram uma apresentação similar à dos indicados, o que mais os condenará. Neste País de toureiros e touradas, agora a merecerem alguma contestação, a garraiada desceu aos centros de treinos caninos, trocando-se as vacas por cães e os forcados por cobaias. O recrutamento de cães para o ofício guardião tem vindo a subverter regras e critérios clássicos há muito comprovados, ao dar a primazia ao impulso ao alimento em detrimento dos impulso à luta e ao poder, aliciamento que induz à dependência e condiciona ou obsta ao bom desempenho, não sendo por isso de estranhar que os ferozes cães do passado sejam agora rendidos pelos esfomeados do presente, anãozinhos rezingões e refilões que muito bem ficariam ao lado da “Snow White” (Branca de Neve).
 A actual opção pelos submissos ou pelo seu aproveitamento, indivíduos rotulados de excelentes e prole dos mais afamados ascendentes, segundo nos querem fazer crer, tem-se revelado um desastre na prática, porque gozam de menor autonomia, obrigam a maior apoio e quando mal sucedidos, tendem a enveredar pelo trauma, invalidando assim o trabalho de que foram objecto, porque acusam em demasia o castigo (a dor) e batem em retirada quando verdadeiramente contra-atacados. O genuíno cão de guarda deverá ser encontrado entre os dominantes, indivíduos com fortes impulsos à luta e ao poder, a quem a dor torna mais bravos e resolutos, funcionando como um detonador para as suas acções, porque nasceram para lutar, não se intimidam com o tamanho dos seus opositores, procuram as suas fragilidades, não se deixam chantagear, não aceitam gratuitamente o domínio alheio, não viram a cara à luta, dificilmente se acobardam, abominam a rendição e morrem a lutar, muito embora exijam líderes de igual ou superior têmpera, porque precisam de ser contrariados em abono do seu controlo, versatilidade e aprimoramento.
E porque o cão de guarda trabalha invariavelmente isolado e em substituição do policiamento dos donos, convém que seja adestrado no confronto activo e não passivo, que se acostume gradualmente aos contra-ataques, que deverão aumentar de intensidade, ser de diferentes tipos e com novidade de armas, para que a sua resistência aumente, a experiência o capacite e se torne hábil no domínio dos diversos inimigos que terá pela frente. Sim, é a resistência à dor que estabelece a diferença gradativa entre os guardiões! Deixaria de ser se todos os ataques caninos acontecessem de surpresa sobre incautos invasores. A tarefa de guardar e policiar só pode ser entregue aos cães dominantes, não aos que se submetem pela dor. Não estamos com isto a fazer a fazer a apologia dos cães de guarda ou de qualquer besta-fera, porque o assunto é demasiado sério, o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro e da contenda sempre alguém sai maltratado. O que não queremos e optámos por denunciar é que a máxima “mas vale sê-lo do que parecê-lo” não pode ser aplicada aos cães de guarda, sob o risco de virem a ser eliminados. Sempre será melhor brincar ao paintball do que aos cães de guarda, considerando a salvaguarda de homens e cães. Caso o apelo predador domine sobre si, fique-se pela guarda desportiva e delicie-se com o “faz de conta”, porque nela raramente alguém se aleija e ainda pode ver premiada a sua incontida paixão.

Sem comentários:

Enviar um comentário