Já vimos comprar bons
cachorros que se encontravam alojados em grades, a par com pombos, coelhos e
galinhas; já adoptámos cães que se revelaram surpreendentes; já comprámos
alguns baratos que não venderíamos por nenhum preço e já vimos alguns péssimos
a gerarem filhos excelentes. Porém, estamos a falar de excepções, duma lotaria
que apenas permeia os sortudos, da rara sorte que por vezes bafeja os
principiantes, quando se procuram cães de trabalho ou com um fim específico.
Por via da contenção económica a que nos vimos forçados e que cada vez mais
diferenciará os países da Comunidade Europeia entre si (porque uns pagam juros
e outros recebem-nos), o panorama da canicultura portuguesa mudou
drasticamente, porque a classe média está depauperada (depenada) e não lhe sobra
dinheiro para extravagâncias. O filão dos cães importados, que tanto dinheiro
deu a ganhar, secou; os grandes canicultores reduziram os efectivos e despesas;
o preço dos cães baixou para valores impensáveis; as rações mais baratas viram
aumentada a sua procura; os veterinários passaram a ser evitados e a presença
de binómios nas escolas dificilmente ultrapassa o 1º mês, mesmo com a redução
do valor das mensalidades que hoje se pratica. E se a nossa canicultura ainda
não foi a pique, é porque as paixões são difíceis de controlar, sempre saltam à
flor da pele e fomos nós que criámos o ditado: “quem não tem cão, caça com
gato”. Fomos nós ou seriam os ingleses?
Nunca foi tão fácil comprar um cão bom por pouco dinheiro e não é
difícil adquirir um ruim pelo mesmo preço (ambos podem ser comprados a
prestações), porque há muita gente a desfazer-se de cães e parece que a
campanha “não compre, adopte um cão” está finalmente a surtir efeito, apesar da
opção se afigurar mais forçada do que livre. Nunca o preço mandou mais do que a
qualidade como agora, andando de boca em boca a relação preço-qualidade,
política tantas vezes desprezada nos auspiciosos tempos das vacas gordas. Longe
vai o tempo das visitas aos canicultores, que recebiam sobranceiros os seus
clientes com um semblante ao mesmo tempo asceta e erudito, emanando
conhecimento e não escondendo a riqueza. Agora pouco se ouve falar deles,
alguns parecem ter desaparecido e a OLX usurpou o seu lugar, porque os anúncios
são gratuitos, a oferta é grande e o preço aparece escarrapachado, o que
facilita a compra de um cão sem sair de casa ou a saída pela certa. Graças aos
bons ofícios da Internet, a maioria dos cães que nos chegam foi adquirida
através da OLX, sendo a sua qualidade bem diversa, sobrando bons cães em más
mãos e ruins a quem desejava mais, como sempre aconteceu. Por norma, estes cães
têm pior apresentação que os do passado recente, sobressai a ausência de
cuidado e o pouco investimento a que se viram votados, porque a palavra despesa
é hoje proscrita, podendo ainda acontecer a venda de “gato por lebre”.
Sempre aconteceu e hoje
prolifera, a prática dos cães em 2ª mão, lembrando um sector do comércio
automóvel, agora muito em voga e não tão lucrativo como antes, já que os
clientes ou não pagam as mensalidades ou acabam por estampar os carros antes da
sua satisfação, abandonando-os, tornando-se incontactáveis ou desaparecendo de
circulação, dizendo-se muito ocupados, desempregados e desculpando-se até onde
a imaginação lhes permitir. Considera-se cão em 2ª mão (alguns já vão na 3ª ou
4ª), aquele que foi comprado por alguém e que acaba vendido a uma segunda
pessoa, por desencanto ou dificuldades várias do seu anterior proprietário.
Quanto mais tarde estes cães forem adquiridos, mais mazelas carregarão da casa
que os desprezou a troco de quase nada, apresentando muitos deles sinais de
desnutrição, forte carga instintiva e também algumas taras de difícil solução,
reflexos do seu viver social até então, pautado por experiências negativas que
“teimarão” em não esquecer, para além de outras maleitas resultantes do
excessivo confinamento, do stress, da ausência de acompanhamento
médico-veterinário e da falta de higiene.
Estas novidades relativas
à aquisição de cães têm enfraquecido ainda mais a já pobre canicultura portuguesa,
que nunca atingiu um lugar de destaque entre as suas congéneres europeias,
servindo-lhes ao longo de décadas para o escoamento de exemplares de 2ª linha.
Contudo, houve um punhado de homens que inverteu essa tendência, importando
animais de primeira grandeza e de quem hoje não se houve falar. Com o Estado em
austeridade, as forças policiais também andam mal aviadas de cães, apresentando
alguns que nem lembram ao Príncipe das Trevas. Nas classes de trabalho e nas
Forças da Ordem não nos faltam Malinois, cada um diferente do outro, estamos
bem aviados de Border Collies, não nos faltam Weimaraners e o Buldogue Francês
parece ser autóctone. Os Rottweilers levaram sumiço, há um Jack Russel a cada
esquina, o Bull Terrier virou mascote, as raças portuguesas parecem ter passado
à clandestinidade e os Pastores Alemães nunca foram tão maus como agora:
pequenos, feios, carentes de envergadura, desaprumados e de costelas à vista, o
que a ninguém espanta atendendo ao descalabro económico que nos atingiu e do
qual tardamos em recuperar. Mas se mal vão os cães, os portugueses não vão
melhor, excepção feita aos jovens licenciados, a quem são ainda apresentadas
três saídas válidas: por mar, por terra e pelo ar!
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