Quem
desejar abrir uma escola canina e pensar que irá alcançar o paraíso,
desiluda-se, porque irá ter pela frente um sem número de problemas, não somente
os colocados pelos cães, que esses sempre serão de pouca monta, mas os
apresentados pelos donos, urbe com dificuldades em se compreender a si própria,
tendencialmente deslocada e entregue a sonhos incontidos, mercê de sentimentos
e apelos que se perdem pelos confins do tempo. Lidar com gente que sonha
acordada não é fácil e importa compreendê-la para “embarcarmos no mesmo navio”,
para chegarmos ao mesmo destino à mesma hora, sãos, salvos e radiantes. Porque
serão os donos dos cães assim? Há décadas que esta dúvida nos assola. Parece
que finalmente encontrámos a resposta ou simplesmente uma das possíveis.
O homem actual desespera diante do sedentarismo, garantidamente
não nasceu para ficar parado, enjaulado no mesmo perímetro, rotulado e entregue
às rotinas de sempre, que não lhe trazem novidade e que o põem doente. Está
farto de ser massa e reclama a sua individualidade. Fustigado pelo desânimo e
levado ao mutismo, anseia por outros espaços, sonha com a evasão e procura o
lugar só para si, longe do que o atormenta e próprio para a sua realização,
porque se sente preso e quer sair. Como a infelicidade tomou conta dele, resiste
e refugia-se noutras actividades, não raramente opostas àquelas que é levado a
fazer, numa dimensão para além daquela que lhe coube. Aqueles que não sentem o
desejo de sair e que viajam para dentro, são geralmente mais aborrecidos,
quizilentos e picuinhas, são donos zelosos do seu castelo, toleram mal a
intromissão e fazem das suas varandas estufas ou florestas, podendo ainda
adorná-las com um ou mais animais domésticos, o mundo acaba quando fecham a
porta de casa e o sonho completa-se na solidão dos seus pensamentos. Outros há
que sacralizam os seus pertences, fazem das casas museus e estabelecem regras
próprias para o uso do seu pecúlio, instando para que permaneça intocável e
reluzente.
Os mais
saudáveis procurarão pôr-se em sintonia com a natureza e com os ponteiros do
relógio biológico, peregrinarão, acamparão nas falésias, escalarão montanhas,
voarão por cima das nossas cabeças, correrão léguas infindas, varrerão o
asfalto, montarão bicicletas, cavalgarão pelas charnecas, desbravarão matas, vencerão
as ondas, velejarão pelos mares, vencerão desertos e partirão à descoberta, de
mochila às costas e rumo à aventura, porque sentem que o sedentarismo os mata e
que algo lhes falta. Os mais abastados contruirão casas em sítios paradisíacos,
morarão à parte e adquirirão grandes extensões de terreno. Os mais entrados procurarão
o sol doutras paragens, empreenderão cruzeiros, irão às termas ou
deleitar-se-ão em raros prazeres e novas iguarias. E com isto, o que estarão a
recriar? Certamente o nomadismo milenar, as expedições doutrora, o prazer
perdido dos tempos idos, envolto em mistério e anterior às modernas
civilizações. Este retorno ao passado é também visível no interior do País,
onde muitos estrangeiros, cansados das maleitas do urbanismo, acabam por povoar
as aldeias abandonadas e habitar velhas casas de granito com telhados de xisto,
dedicando-se com afinco à pecuária e à agricultura.
Se o
sedentarismo mata o homem, a solidão estende-lhe a “extrema unção”. A junção de
ambos é uma carga que ninguém deseja, porque lembra uma prisão e zombie ninguém quer ser. Desde há muito
que os animais vêm sendo utilizados para colmatar carências afectivas nos
humanos, ajudando no seu equilíbrio e integração social, quebrando-lhes a
solidão e dispensando-lhes o ânimo necessário para a sua sobrevivência, enquanto
terapeutas de eleição prontos a coabitar connosco. Entre eles, os cães são os
que merecem maior destaque, porque o seu recrutamento para esse fim tem excedido
amplamente o de outros, graças à sua versatilidade, interacção e cumplicidade.
A somar a isto, porque o cão é um animal excursionista, a sua posse combate o
sedentarismo, induz a novas rotinas e sempre traz alguma novidade. Como
consequência, alguns donos, mercê da felicidade de os terem ao lado, que os
leva à gratidão, vêem os seus cães como filhos, deuses, reis, heróis,
conselheiros e confidentes, depositando neles um todo de expectativas, baseado
numa relação de paridade extraordinária, muitas vezes para além daquilo que os
animais são ou têm para oferecer, o que de sobremaneira poderá dificultar o seu
ensino, já que a relação entre o dono e o seu cão, por ser de natureza afectiva,
é por demais intíma, tirada a partir de regras extraordinárias ou da sua
ausência, mais baseada em sentimentos incofessos do que em razões objectivas.
Uma coisa é certa: os donos dos cães são gente boa e disso não temos qualquer
dúvida!
Se nos
cães somos obrigados a considerar o seu imprinting,
também não podemos desconsiderar o imprinting
dos donos alcançado pelos animais, já que alguns proprietários caninos, ao
identicarem-se primeiro com eles, alcançaram depois melhor relacionamento com
os seus semelhantes, em especial com outros iguais e inebriados de idêntica
paixão. O homem robustece-se na companhia do cão, ganha alento e auto-estima,
porque sabe que não está só e que dificilmente será abandonado. Com o cão ao lado
sente-se pastor, caçador, resgatador e polícia, porque o animal ao aceitar a
investidura, sem grande dificuldade, completará o quadro, massificando desse
modo os sonhos de quem o acompanha. Assim, quando um binómio sai à rua, ele
empreende uma viagem bem maior do que aquela que os seus passos alcançam. O
homem procura no cão a felicidade há muito perdida e o retorno às coisas
simples, a companhia que lhe falta e a aventura que não tem, um companheiro que
o oiça, complemente e aceite a sua individualidade. Que melhor amigo
encontraria para se evadir e enveredar pelos trilhos míticos de outrora e que
em simultâneo lhe traga paz, serenidade, tranquilidade e bem-estar? Há quem
diga que o cavalo oferece o mesmo, muito embora seja difícil alojá-lo à porta
do nosso quarto ou tê-lo aos nossos pés na cozinha.
Bem-aventurados
sejam aqui na Terra, quiçá no Céu, aqueles que criam, adestram e desenvolvem
actividades com cães, que têm como ofício fazer os outros felizes, que abdicam
do seu tempo para que outros o tenham em abundância. Bem-aventurados sejam
também os que se dedicam à terapia canina e que aprimoram cães para o auxílio e
o resgate daqueles que mais precisam, porque são mensageiros da esperança e
servem os demais. Talvez morram ignotos, mas partem na certeza do dever
cumprido.
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