sexta-feira, 26 de abril de 2013

COMPANHEIRO DE SESTAS E GUARDA NOCTURNO

Ao nascer da aurora, um pouco antes das sete horas, com a terra a cheirar a fresco e com a névoa passageira a pairar sobre a planície, o gado mertolengo e o limousin saiem para o campo, o silêncio é quebrado pelo som distante dos chocalhos e pelo chilrear dos pássaros, não há vento e a rôla faz-se ouvir, breve passará um corvo e os gafanhotos começarão a saltitar sobre o restolho, as flores rasteiras abrem-se e o calor impiedoso aproxima-se. O dia rompe em força, o sol aperta, a luz quase cega e os olhos perdem-se pelo horizonte infindo. O maioral  e o seu companheiro não se vêem nem ouvem, vão ocultos no meio das reses, na mesma toada lenta marcada pelo romper dos cascos. Não há pressa, o dia é longo e ambos sabem disso - estamos no Alentejo!
Depois duma manhã a rapar, o gado sossega e separa-se, deita-se sobre a planície e espera pela hora  da fresca, ruminando o que achou e retemperando as forças, de cabeça para norte e com a cauda a enxotar as moscas. Longe vai o tempo em que o maioral comia ali no campo e se apresentava de capote, safões, pelico, tarro e alforges, em que fazia a sesta debaixo da mesma árvore e adormecia com o cão ao lado. Agora vem de mochila às costas, de jeans, t shirt  e sapatos de ténis, carrega uma garrafa de Coca-Cola junto com alguma iguaria e vem munido de um MP4 com auriculares. Irá almoçar a casa e voltará um pouco antes da hora do sossego terminar, porque algures tem escondida a sua Moto 4. O cão, que já não sobrevive das sobras e come ração barata, irá permanecer ao lado do gado, imperceptível e silencioso, como se fizesse parte da paisagem e houvesse nascido bezerro - eis o Rafeiro Alentejano na sua magnitude, digno, único e intemporal.
Um par de horas antes do anoitecer, o gado volta para o monte em passo mais apressado, com os vitelos aos pinotes até à cerca, o cão segue-os de perto e nada incomodado. De vez em quando olha para o maioral e segue o seu caminho, em passo de andadura com a cabeça nivelada pelo dorso. Chegados a casa, afasta-se da manada, bebe e vai comer. Permanecerá toda a noite alerta entre o cercado e as casas, agora mais activo e pronto para intervir. Tendo por companheiros a Lua, os morcegos, as corujas e os mochos, ficará também atento à capoeira, não vá aparecer por lá um “saca-rabos”. Inquieta-se com a passagem dos javalis e só avança se eles se aproximarem. Mesmo não havendo novidade, rondará amiúde o perímetro e se por acaso ouvir algum mugir, num ápice saltará pró meio do gado. Ao despontar de um novo dia, vemo-lo deitado à porta dos donos, calmo e pachorrento, a abanar a cauda pausadamente sem levantar o pescoço, dando a idéia que passou toda a noite assim.
Tornado grande pelas circunstâncias e sereno pela conveniência, o Rafeiro Alentejano é uma das imagens de marca do Alentejo, um molosso pastoril, próprio para a transumância, que bem cedo foi recrutado para as montarias e que relembra os tempos idos do Portugal meridional oitocentista, monárquico e burguês, ensoleirado, mítico e profundamente rural. Hoje já chegou à margem norte do Tejo e alcançou outros rios para além dele, pulou fronteiras e tornou-se embaixador das gentes que ainda conservam o cantar moçárabe, um legado que enriquece o património de todos nós. Mais rústico e menos versátil que o Serra d’Aires, contudo extremamente fiável e amigo do seu dono, tem alcançado lugar junto dos picadeiros que populam por cá, reforçando com a sua presença o carácter marialvista de alguns deles. Pouco visto nas grandes cidades por razões óbvias, é possível ainda vê-lo nas tapadas, reservas naturais e parques temáticos mais ao Sul, porque é um clássico e a moda não o ofusca.
Apesar de ser duas vezes mais lento do que os cães agora destinados ao agility, de ter uma mordedura menos potente que o Rottweiler, de produzir ataques maioritariamente defensivos e de ser mais activo durante a noite, este cão de gado pode ser um excelente companheiro para o “dog trekking” e prestar-se ao resgate em campo aberto e em altitude, porque é mais resistente e menos exigente, o que o dota de maior autonomia em situações particularmente difíceis, nomedamente em tarefas nocturnas e em temperaturas até aos -10º centígrados. Pode servir como cão carregador mas não de tiro, porque transita naturalmente do passo de andadura para o galope. Faz o reconhecimento “ao nariz” e é difícil de ludibriar, associa-se facilmente com crianças e idosos e toma como seus os hábitos que observa. Oxalá assim continue e permaneça incólume para as futuras gerações.

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