Não é nosso objectivo falar de João Silva Tavares,
um poeta alentejano de Estremoz, a quem se atribui a letra do fado “O Fado de
Cada Um”, por mais importante e rica que tenha sido a sua obra ou legado. E
também seria gratuito falar do Maestro Frederico de Freitas, autor da música, cuja
contribuição para o teatro de revista é sobejamente conhecida e reconhecida. A
estrofe desse fado, um dos êxitos de Amália Rodrigues, que escolhemos para o
título desta rubrica, também não pretende reforçar o carácter fatídico dos
portugueses em geral e em particular os do Sul, porque também a entendemos pelo
aforismo: “quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Tampouco nos
interessa a doutrina calvinista da predestinação, com a qual não concordamos. O
que queremos denunciar e pôr em reflexão é a contribuição humana para o
disparate canino, a sorte de alguns cães que vão parar a mãos erradas, cujo
número é grande e não cessa de aumentar. Como as violações sobre os direitos
dos animais são inúmeras, sempre que pudermos, denunciaremos aqui as mais
comuns, aquelas que atormentam os cães e que por serem pouco perceptíveis,
encobrem a responsabilidade dos seus proprietários, gente que mais tarde se
dirá malfadada, diante do carrego daquilo que fez ou deixou por fazer, ainda
que eventualmente possa ter sido mal aconselhada.
Um proprietário de uma mercearia, situada num dos
subúrbios de Lisboa, num local pouco recomendado pela assiduídade dos assaltos,
temendo o pior, decidiu adquirir um cão que mordesse que nem um danado. Depois
de buscar conselho, optou por adquirir um Cão de Fila de S. Miguel, não sem
antes se deslocar aos Açores e atestar da sua valentia, seguindo a advertência
de que os melhores cães estavam nas mãos dos fazendeiros e não nos criadores de
beleza. E por lá andou a saltar hortênsias e muros de pedra durante dois meses,
inúmeras vezes esfarrapado e a fugir dos dentes que o perseguiam. Por fim
decidiu-se pelos progenitores e ficou a aguadar o cachorro no Continente,
acabando por recebê-lo alguns meses mais tarde. O bicho ganhou o nome de Bravo e
até aos seis meses de idade mostrava-se manso, apesar de grande e robusto.
Temendo o logro, o seu proprietário ligou para o criador a queixar-se do
comportamento do animal, merecendo deste o seguinte comentário: “Ele está é a
dormir, para o próximo mês vou ao Continente, irei a sua casa e acertaremos as
agulhas do animal. Isto se você me der guarida”. Garantida essa condição, o
açoreano não tardou e começou a “despertar” o cão, dando-lhe três doses diárias
de pancadaria com o que tivesse à mão. Quando o cão começou a desfazer paletes
à dentada, deu o serviço por concluído e voltou para os Açores.
Vivendo
acorrentado e sendo vítima da terapia acima descrita, o cão tornou-se
incontrolável, não aceitando a autoridade de ninguém e muito menos do seu
próprio dono, que entrava em bicos de pés para lhe dar de comer e saía com os
calcanhares a bater-lhe no traseiro. Consciente do problema, decidiu procurar
ajuda, acabando por nos contactar. Começou por nos contar o histórico do cão e
concluiu com a seguinte sentença: “eu queria um cão mau, mas não tão ruim, que
mordesse nos outros e não a mim!” No início do treino não teve essa sorte,
porque qualquer comando que solicitasse era rejeitado à dentada, já que o
animal se atrasava intencionalmente para cair sobre o dono. Valeu-nos a
valentia do homem, que apesar de cortado, não desistia às primeiras
(dificilmente alguém aguentaria tanto). Perante o desinteresse pelo alimento,
pelos convites à brincadeira e pelo insucesso do açaime, que ele tentava tirar
até ao desmaio, optámos por treinar o cão dentro de uma piscina, pois adorava
água, com o dono ao lado a conduzi-lo pela trela, protegendo assim o homem e
invalidando os ataques do animal, familiarizando-o com as ordens e o seu
emissor. Ainda bem que nos encontrávamos no Verão! Passados poucos dias, já o
cão aceitava a trela e o seu condutor, desfilando ambos alinhados e garbosos. O
Bravo veio a tornar-se num ícone da nossa escola, porque apesar de nascer
malfadado, conseguimos dar-lhe outro fado, o que se deve em grande parte ao
dono, porque se fosse outro, apesar da sua culpa e da inocência do animal, de
imediato o eliminaria. Outros cães não tiveram a mesma sorte e acabaram por
pagar pelos actos dos seus donos. Será que não continuam?
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