Esta é
uma histórica verídica sobre reeducação canina, aconteceu na década de noventa
e teve como objecto uma podenga nacional gigante, chamada Ferreira, com dois
anos de idade e oriunda de um canil que albergava uma matilha, evidenciando o
animal o peso social de tal instalação. Se nos é permitido o desabafo, nesse
tempo e não foi há tanto tempo assim, ainda se viam nas nossas matas
alguns Carvalhos-Cerquinhos (Quercus Faginea),
resquícios da mata atlântica original que produziam bolota e também bugalhos,
resultando os últimos do depósito dos ovos dum insecto nos seus ramos, que
dentro deles se desenvolvia até à fase adulta. Se naquele tempo eram poucos,
hoje quase desapareceram e há muito que servem de camada para as raízes dos
eucaliptos ou apodrecem por debaixo das auto-estradas, apesar de mais
resistentes ao fogo e de serem muitas e valiosas as suas aplicações. Ignoramos
se esta espécie se encontra protegida. Oxalá que sim! Mais aliviados, passemos
á história da Ferreira.
A cadela chegou-nos como recém-saída de uma câmara
de tortura, abatida, desconfiada e famélica, tremia diante de tudo e de todos,
comia às escondidas e se pudesse, a qualquer hora, se enfiaria num buraco para
não ser vista. Como o seu problema era de origem social, muito embora reforçado
por uma propensão genética, arranjámos-lhe um canil onde se sentisse à vontade,
perto dos outros cães mas longe da sua interferência. Dispendíamos a maior
parte dos dias com ela e entregávamos-lhe terrenos onde se sentisse rainha e
senhora. Pouco a pouco, fomos inserindo nos seus locais de evasão alguns
cachorros. No princípio não fomos bem sucedidos, porque ela afastava-se e
perante a insistência dos cachorros mordía-lhes. Um mês depois já andava no
meio deles sem problemas e capitaneava-lhes as acções. Quando a começámos a
atrelar (ela nunca tinha sido atrelada), dependendo do ambiente ao seu redor,
jogava-se no chão ou saía à desfilada e depois de sossegada preferia andar
atrás de nós do que ao nosso lado. Com paciência, insistência e muito reforço
positivo, depois de algumas semanas, que nos pareceram infindas, lá conseguimos
que nos acompanhasse alinhada dentro do perímetro escolar.
Como o objectivo da sua proprietária era levá-la às
exposições de beleza, fomos obrigados a passear com ela no exterior e fizemo-lo
de modo progressivo, primeiro na mata e sem pessoas, depois nos passeios de uma
localidade pouco movimentada e finalmente dentro do recinto de uma feira
semanal. Apesar de termos alcançado o nosso duplo objectivo: a reabilitação
social da cadela e a sua plena sociabilização, ainda não esquecemos as
dificuldades e tropelias que com ela dividimos, pelo caricato e estranheza das
situações vividas. Quando começámos a sair com ela para o campo, o simples
estalar de um galho assustava-a de sobremaneira, o mergulho das rãs no rio
faziam-lhe estancar o passo e tentar libertar-se da trela, reagindo do mesmo
modo perante o levantar das aves, diante de espantalhos, plásticos a voar e o
quando caminhávamos sobre superfícies irregulares. Resolvemos essas
dificuldades iniciais com saídas matinais, com a colocação de um chocalho na
coleira e muita cantoria. Logo pela manhã, rodeados de carvalhos-cerquinhos,
saíamos para o campo a cantar “Ò Ferreira, Ferreirinha” acompanhados ao
chocalho. A estrofe seguinte seria mais ou menos assim: “não nos dês cabo da
pinha!” O que é certo é que a
estragégia resultou e o recurso ao chocalho veio ainda a beneficiar outros
cães. A Ferreira foi entregue à dona pronta, mas as suas alterações foram de
pouca duração, porque a sua proprietária voltou a instalá-la no mesmo sítio e
no seio da mesma matilha que a havia ostracizado. Independemente do nosso
esforço, pergunta-se: não mereceria a cadela melhor futuro? Depois de rainha
não voltou a ser gata borralheira? Depois admiram-se dos cães que fogem de
casa!
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