sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ò FERREIRA, FERREIRINHA (MATA ADENTRO, RIO ACIMA)

Esta é uma histórica verídica sobre reeducação canina, aconteceu na década de noventa e teve como objecto uma podenga nacional gigante, chamada Ferreira, com dois anos de idade e oriunda de um canil que albergava uma matilha, evidenciando o animal o peso social de tal instalação. Se nos é permitido o desabafo, nesse tempo e não foi há tanto tempo assim, ainda se viam nas nossas matas alguns  Carvalhos-Cerquinhos (Quercus Faginea), resquícios da mata atlântica original que produziam bolota e também bugalhos, resultando os últimos do depósito dos ovos dum insecto nos seus ramos, que dentro deles se desenvolvia até à fase adulta. Se naquele tempo eram poucos, hoje quase desapareceram e há muito que servem de camada para as raízes dos eucaliptos ou apodrecem por debaixo das auto-estradas, apesar de mais resistentes ao fogo e de serem muitas e valiosas as suas aplicações. Ignoramos se esta espécie se encontra protegida. Oxalá que sim! Mais aliviados, passemos á história da Ferreira.
A cadela chegou-nos como recém-saída de uma câmara de tortura, abatida, desconfiada e famélica, tremia diante de tudo e de todos, comia às escondidas e se pudesse, a qualquer hora, se enfiaria num buraco para não ser vista. Como o seu problema era de origem social, muito embora reforçado por uma propensão genética, arranjámos-lhe um canil onde se sentisse à vontade, perto dos outros cães mas longe da sua interferência. Dispendíamos a maior parte dos dias com ela e entregávamos-lhe terrenos onde se sentisse rainha e senhora. Pouco a pouco, fomos inserindo nos seus locais de evasão alguns cachorros. No princípio não fomos bem sucedidos, porque ela afastava-se e perante a insistência dos cachorros mordía-lhes. Um mês depois já andava no meio deles sem problemas e capitaneava-lhes as acções. Quando a começámos a atrelar (ela nunca tinha sido atrelada), dependendo do ambiente ao seu redor, jogava-se no chão ou saía à desfilada e depois de sossegada preferia andar atrás de nós do que ao nosso lado. Com paciência, insistência e muito reforço positivo, depois de algumas semanas, que nos pareceram infindas, lá conseguimos que nos acompanhasse alinhada dentro do perímetro escolar.
Como o objectivo da sua proprietária era levá-la às exposições de beleza, fomos obrigados a passear com ela no exterior e fizemo-lo de modo progressivo, primeiro na mata e sem pessoas, depois nos passeios de uma localidade pouco movimentada e finalmente dentro do recinto de uma feira semanal. Apesar de termos alcançado o nosso duplo objectivo: a reabilitação social da cadela e a sua plena sociabilização, ainda não esquecemos as dificuldades e tropelias que com ela dividimos, pelo caricato e estranheza das situações vividas. Quando começámos a sair com ela para o campo, o simples estalar de um galho assustava-a de sobremaneira, o mergulho das rãs no rio faziam-lhe estancar o passo e tentar libertar-se da trela, reagindo do mesmo modo perante o levantar das aves, diante de espantalhos, plásticos a voar e o quando caminhávamos sobre superfícies irregulares. Resolvemos essas dificuldades iniciais com saídas matinais, com a colocação de um chocalho na coleira e muita cantoria. Logo pela manhã, rodeados de carvalhos-cerquinhos, saíamos para o campo a cantar “Ò Ferreira, Ferreirinha” acompanhados ao chocalho. A estrofe seguinte seria mais ou menos assim: “não nos dês cabo da pinha!” O que é certo é que a estragégia resultou e o recurso ao chocalho veio ainda a beneficiar outros cães. A Ferreira foi entregue à dona pronta, mas as suas alterações foram de pouca duração, porque a sua proprietária voltou a instalá-la no mesmo sítio e no seio da mesma matilha que a havia ostracizado. Independemente do nosso esforço, pergunta-se: não mereceria a cadela melhor futuro? Depois de rainha não voltou a ser gata borralheira? Depois admiram-se dos cães que fogem de casa!

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