sexta-feira, 26 de abril de 2013

GRAVATA E TOQUE DE CALCANHAR: A SUBVERSÃO DA TÉCNICA

Certamente o homem leu alguns clássicos, teve algum contacto com o legado da escola alsaciana ou aprendeu com alguém que sabia muito (mais do que ele), embora seja um autodidacta, tenha evoluído a rumo próprio, conheça os remendos da arte (truques), seja tremendamende perspicaz, possua uma rara visão empresarial, comunique bem, saiba cativar e tire partido tanto das experiências positivas como das negativas para produzir alteração nos cães. É inegável que muitos já lhe passaram pelas mãos, nomeadamente os de companhia, com os quais se sente perfeitamente à vontade e familiarizado com os seus problemas e respostas. E dizemos isto em função do que nos chega pela televisão, ainda que com algum atraso, uma vez que faz bem a diagnose dos problemas, subverte a técnica para a sua resolução, é engenhoso, produz resultados quase instantâneos, dificilmente culpabiliza os donos, não olha a meios e não se sente muito à vontade com cães mais rijos. Ainda que os donos não saibam e os telespectadores também não, as soluções encontradas são remendos e por isso mesmo temporárias, funcionam debaixo da acuidade que lhe legitima autoridade e acabarão por desaparer quando ele virar costas, porque mais lhe importa o vedetismo do que a formação dos donos, responsáveis por mais de 90% dos desaguisados registados ao longo dos episódios. Estamos a falar do Sr. Cesar Millan e dos seus reality shows.
Esta é a terceira vez, e esperamos que seja a última, em que falamos deste “encantador de cães”, que nos é totalmente indeferente e que nada nos trouxe de novo. Ao que parece, porque não assistimos aos seus programas, ele teria aconselhado, diante dos cães que rebocam os donos e que se “penduram à esquerda”, o uso do toque de calcanhar em simultâneo com um puxão vertical da trela para a assimilação do comando de “junto”. Quer o homem se tenha feito compreender ou não, e ter ou não sido o mentor da ideia, a verdade é que a moda pegou e por todo o lado se vislumbra essa “terapia”, havendo alguns hábeis nas gravatas e outros primorosos nos toques de calcanhar. Como o treino é diário e intensivo, caso o Cristiano Ronaldo se viesse a cruzar com eles, certamente se sentiria embaraçado perante tamanha mestria.
Antes de se tratar dos sintomas importa desnudar o problema e as suas causas, geralmente ligadas à experiência directa dos cães, ao dualismo das vontades, à precariedade da condução e à revolta animal, que uma vez identificadas e posteriormente eliminadas, melhor resolverão o problema por ausência de fundamento. È importante não esquecer, como nota prévia, que o reboque dos donos é a primeira das razões que engorda o adestramento, uma dificuldade para ele bem-vinda por ser de simples resolução, apesar de por aí se “fazer render o peixe”! As dificuldades na condução dos cães à trela encontram razões no atrelar tardio, no uso indiscrimado dos peitorais, na ausência da trela no trato doméstico, na brevidade dos passeios, no desaproveitamento do sentimento gregário canino (o que aponta para uma má instalação doméstica), no desprezo pela liderança e no despreparo dos donos (físico, cognitivo e psicológico). Ainda sobram outras razões, mas estas são as mais frequentes para a eclosão do problema.

Agora vamos pregar para o cachorro que há-de vir, porque importa informar, já que os erros cometidos terão que ser remediados. Os cachorros deverão ser atrelados aos dois meses de idade, dois ou três dias depois de se terem acostumado à coleira. O uso dos peitorais não facilita a condução dos cães, antes a dificulta, porque foram concebidos para a tracção e para o reboque. Há casos, devido à fragilidade dos animais, em que o uso do peitoral é mais do que obrigatório. Estamos a falar dos cães toy ou miniatura que por norma não têm força para rebocar os donos e que desistem facilmente quando contrariados. Os cães devem aprender andar à trela em casa e depois na rua, pois há que aproveitar aquela fase em que andam à nossa volta e quase nos fazem tropeçar. Os cachorros acostumados a acorrer a todos, mais cedo ou mais tarde, tendem a evoluir a rumo próprio, a adquirir manhas e a mandar bugiar quem os tenta nortear. Cada cão deve ter só um líder que deve ser aquele que dele cuida, para se tirar proveito da relação óptima entre tratamento e treino. Daqui se compreende que não foi arbitrária a escolha do termo “tratador” para designar os cinotécnicos militares de hierarquia mais baixa, enquanto grosso das companhias ou grupos cinotécnicos. Atribuímos aos nossos alunos a designação de “condutores”  porque são civis, desnecessitam de qualquer promoção, não incorrem em despromoção e são donos dos seus próprios cães, o que não implica que na sua essência deixem de ser também tratadores, porque têm os animais ao seu encargo e para isso não se valem do trabalho de outrém.
A brevidade dos passeios diários mais induz à revolta canina do que à sua adaptação, porque não produz a habituação necessária, atenta contra o desenvolvimento salutar dos cães, provoca-lhes desequilíbrios, aumenta-lhes o stresse e promove a ruptura das vontades, porque um quer sair e outro só pensa em voltar para casa (o dono), tornando-se dessa forma oponentes um do outro, o que levará à resistência contra a trela. Grande número de cães, senão a sua maior parte, rebocará os donos por esta razão. Apesar dos animais serem os menos culpados, por força das dificuldades encontradas, os donos acabarão por levá-los cada vez menos à rua ou optarão por soltá-los onde não houver perigo, o que nem sempre acontece. Se a isto se juntar o despreparado que desconsidera a liderança, os cães farão dos seus donos trenós, rebocando-os para onde lhes aprouver, a “toque de caixa”, sistematicamente e para sempre.
Explicadas as razões do desacerto passemos ao conserto. A maneira mais inócua e simples para resolver o problema, muito em voga nos dias que correm, passa por cativar o cachorro a um brinquedo da sua preferência e a partir dele ganhar a condução alinhada pelo dono (“junto”). O brinquedo, geralmente uma bola (há quem use um churro para outras finalidades), vai na mão esquerda do condutor e é jogado de quando em vez para o cão o ir buscar, no intuito de lhe manter o interesse e servir de motivação. Este trabalho é primeiro desenvolvido com o cachorro em liberdade e depois passará, gradualmente, a ser executado com o animal atrelado. As figuras de imobilização seguintes ao “Junto” (Alto, Senta, Deita e Quieto), serão alcançadas também a partir da posição do brinquedo, que será reforçada com os comandos verbais a instalar. Há ainda quem substitua o brinquedo pela comida para o mesmo propósito, treinando com um saco de guloseimas preso à cintura. Estes métodos, tão velhos quanto o Mundo, quando usados na sua forma pura, sem recorrência a qualquer tipo de inibição, o que nem sempre é fácil, são de puro e simples reforço positivo, baseados somente em experiências positivas que evitam o contrariar dos cães, o dualismo das vontades e o estoiro dos donos, tornando o adestramento extensível a todas as pessoas independentemente da sua idade, robustez física  e habilidade técnica, tendo ainda como vantagens a celeridade no treino, o desempenho canino alegre e fortalecimento dos vínculos afectivos binomiais. Contudo, um dos métodos pressupõe um forte impulso ao movimento e o outro um bom impulso ao alimento. O que fazer com os cães que não têm nem um nem outro? Emagrecemos os primeiros e daremos fome aos segundos? Há por aí quem o faça despudoradamente, fique impune e se sinta erudito.
As desvantagens destes métodos, que na verdade são um só, ainda que com uma apresentação diferente, são o aumento da gula e da territorialidade que podem obstar a sociabilização canina inter pares, já que alguns cães irão lutar pela posse do brinquedo e outros pela comida que lhes surja pela frente, mesmo que não seja a sua. A somar a isto, o travamento e a cessação das acções, ao serem obtidas por condições extraordinárias, demorarão a acontecer, os alinhamentos binomais serão circunstânciais e a inibição inexistente. Como o método cativa os cães ao andamento dos seus donos, muitos deles não muscularão o necessário, em especial os trotadores rectangulares e os mais angulados, cujo andamento prioritário é a marcha e jamais o passo de andadura. Mas as maiores desvantagens, advindas da facilidade do método, recairão sobre os donos e acabarão por afectar também os cães, já que o exercício da liderança foi precário (porque aos donos pouco ou nada foi exigido), não evoluíram tecnicamente, não desenvolveram a capacidade atlética necessária para acompanhar os cães e acabaram por limitar a autonomia canina. Apesar deste método ter vindo a alcançar excelentes resultados nos cães de companhia e de agility, tem-se revelado insuficiente, quando usado em exclusivo, nos cães destinados à disciplina de guarda e nos entregues a outras especialidades, a despeito do seu carácter ser civil, policial ou militar. Desconsideramos aqueles que usam “gentle leaders”, “halti headcollars”, “lupi e halti harness” para a solução do problema, porque não tratamos o adestramento como doma e entendemos que a técnica não deverá ser subvertida pela potenciação da força.
Da velha escola alsaciana veio-nos a condução de mão direita, hoje entendida como “condução por desequilíbrio”, uma vez que o movimento da perna esquerda dos condutores obrigava os cães à convergência, funcionando como alavanca, o que os impedia de se “pendurarem à esquerda” e de rebocar quem os conduzia. O facto da trela se encontrar na mão direita facilitava o trabalho, já que a maioria das pessoas é destra. Ainda hoje essa técnica é utilizada, particularmente diante de cães mais persistentes e voluntariosos, apesar de produzir resultados a partir da coação e exigir constância nas acções, o que nos parece despropositado diante da relação de cumplicidade que procuramos entre cães e homens. Pelas mesmas razões substituimos os enforcadores por semi-estranguladores. E dizemos isto diante da opção que nos leva a acompanhar os ciclos infantis dos cachorros, verdadeiro antídoto contra o abuso das experiências negativas, muitas vezes responsáveis pelo “estoiro”, subaproveitamento e desinteresse de alguns cães. Esta solução só deverá ser endereçada para os mais rijos, para os que foram objecto de selecção prévia e que se destinam ao ofício guardião, exigindo por isso mesmo uma liderança inequívoca e incontestável, jamais para os mimados ou ávidos de excursão.
Com a generalização do uso da mão esquerda na condução, fortemente ligada às necessidades das novas modalidades desportivas caninas, a exigir duas mãos direccionais, o reboque dos donos aumentou quase na proporção do uso dos peitorais, pelo desuso da condução por desequilíbrio e pelo desconhecimento de outras técnicas. A condução de cães pela mão esquerda obriga à rotação sistemática do pulso, num movimento ascendente e para dentro, do dedo polegar para o mindinho afim de efectuar a reunião, normalmente quando a perna direita avança, exigindo em simultâneo um andamento que garanta a marcha dos cães, porque uma vez embalados dificilmente tomarão outras direcções. A opção pelo 3º andamento natural no treino irá evitar o fardo da inibição, carga que facilmente descambaria nos dois andamentos caninos anteriores (passo e passo de andadura). No entanto, não é errado procurar o “junto” com o cão a passo, especialmente diante daqueles mais persistentes no erro e a necessitar de correcção urgente. O uso do toque de desequíbrio efectuado pelo calcanhar direito do condutor sobre a garupa do animal, é uma medida extrema (violenta) associada à passagem da trela da mão esquerda para a direita (condução por desequilíbrio), que pode ser substituída pela já citada correcção a passo. O movimento da mão deve ser para a direita e não para cima, porque não pretendemos amendrontar os cães ou estancar-lhes a marcha. O recurso à mutação do lado de condução e à inversão de marcha (“Troca” e “Roda”), contribuem significativamente para a eliminação do problema, advindo do  atrelamento tardio que gera desencanto pela trela.
Talvez o homem da TV saiba disto tudo e intencionalmente o omita, porque “em terra de cegos quem tem olho é rei” e porque lhe importa conservar o estatuto de “encantador”, nem que para isso tenha que se valer de umas quantas patadas e ponha uns tantos a fazer o mesmo, a despeito da técnica, dos princípios elementares do adestramento e do bem-estar animal.

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