sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O que falta aos cães nacionais

Há quem não precise das comemorações do Centenário da Republica para ser patriota e a evocação da efeméride poderá levar a alguns a sê-lo. Nós sempre nos sentimos em dívida perante a Pátria e segundo o nosso pouco préstimo temos procurado a sua exaltação. Durante uma década e meia dedicámo-nos à criação e adestramento de várias raças caninas nacionais (Cão de Água Português, Cão de Castro Laboreiro, Fila de S. Miguel, Perdigueiro Português, Podengo Gigante, Rafeiro Alentejano, Serra d’Aires e Serra da Estrela) no intuito de enaltecer e divulgar a canicultura nacional, enquanto legado e produto da nossa Terra. A tarefa revelou-se árdua e penosa, porque na maioria delas a parceria revelou-se deficitária o que obstou à complementaridade procurada. A excepção aconteceu entre os Filas de S. Miguel, raça que denotou extraordinária propensão pràs disciplinas de Obediência, Pistagem e Guarda, acompanhadas de indíces atléticos bem acima da média. Hoje, por decreto, certamente proveniente de cabeças mais ilustres do que as nossas, o Fila de S. Miguel está mais pequeno e vê comprometido o seu rendimento dentro dos cães ditos de utilidade. Passados quinze anos sobre essa nossa opção, revelamos aqui as dificuldades encontradas e lançamos algumas sugestões, tendo como parâmetros os cães estrangeiros mais conhecidos, de créditos firmados e por nós comprovados. Falamos disso porque não queremos que os nossos cães passem a obsoletos, vejam diminuído o seu número e acabem no esquecimento, arredados do povo que os viu nascer e preteridos por outros, tendência que não cessa de aumentar e que desejamos ver contrariada.

Tratemos primeiro do Podengo, cão do tipo primitivo que é ícone do CPC. É notória a diferença existente entre a variedade pequena e as outras (média e grande), considerando o comportamento, o viver social e o tipo de parceria que oferecem. As variedades maiores são mais independentes, instintivas e silvestres, menos prestativas e resistentes ao condicionamento., respondem bem ao condicionamento atrelado e dificilmente atingem a autonomia condicionada (condução em liberdade), ocasião que usam para a fuga, quando os percursos sugeridos ultrapassam a vertente cinegética ou dispensam o contributo da “presa”. Estes cães são maioritariamente evasivos e em muitos aspectos lembram o chacal. A sua capacidade de aprendizagem é baixa, mesmo que se opere o desenvolvimento do seu impulso ao conhecimento, precocemente, pela experiência variada e rica. O carácter intocável ou hermético do Podengo obriga-o à transposição dos obstáculos “`a desfilada”, o que pode colocar em risco a sua integridade. É extraordinariamente resistente e a sua mímica sempre espelhará algum desconforto relativo à disciplina de obediência. Exceptuando-se os casos inerentes à instalação de matilhas, onde guerreiam entre si pela posse da comida ou pela presa, os podengos não apresentam maiores problemas na área da sociabilização, porque não provocam e apenas reagem quando acossados. No entanto, quando soltos entre os demais e diante da presença de outros grupos somáticos, porque correm desalmadamente, podem constituir-se em presas e provocar com isso alguns desaguisados. A sua prestação guardiã é essencialmente vocacionada para o alarme e dificilmente daí evoluirá para outras especialidades, porque é um cão defensivo, de ataques de surtida e com fraca potência de mordedura, que mais facilmente perseguirá outro cão do que enfrentará um intruso. Na caça obedece a leis próprias e a tendências automáticas, já que prefere caçar longe do dono e perseguir presas distantes, factor que tem levado à sua mestiçagem. Num país que se diz na crista da investigação científica, seria bom que um pouco dessa erudição pingasse também sobre a canicultura, dotando o Podengo de maior versatilidade e libertando-o dos entraves milenares, pelo contributo de outros pressupostos selectivos que complementariam a selecção estética existente, nomeadamente na procura de melhor impulso ao conhecimento. Os actuais criadores, que não são muitos, não devem comportar-se como guardas de um tesouro, porque ninguém leva nada para a cova e todos os animais que não se adaptam acabam por desaparecer. A selecção do Podengo, para além da preservação das suas características morfológicas, deverá também recair sobre a análise dos impulsos herdados presentes nos indivíduos destinados à reprodução, o que tornará o Podengo melhor cão de companhia, melhor caçador e concorrente a outros serviços (novas utilidades).

Para não tornar este texto muito extenso e enfadonho, analisaremos em conjunto e por comparação os casos do Castro Laboreiro, Serra da Estrela e Rafeiro Alentejano (Rafeiro do Alentejo). Dos três, o que melhor parceria nos ofereceu foi o Rafeiro do Alentejo, muito embora mandrião, pouco dado a explosões e nada vocacionado para serviços diurnos. A predominância da cor branca, enquanto maioritária, tendo vindo a subverter algumas dessas características, tornando este cão mais activo e solícito durante o dia. A sua docilidade, o seu cuidado com os mais fracos e a protecção que lhes dedica, poderá transformá-lo num terapeuta por excelência, desde que os seus criadores optem por capacitá-lo e ousem sair dos seus muros ou cercados. Este mastim não tem a capacidade de aprendizagem do Cão da Serra d’Aires, mas responde bem aos estímulos pela sua dependência social, sendo o peso ambiental capaz de consertar ou desenvolver o seu potencial genético. Abraça com facilidade a obediência, é resistente à ginástica, demora a farejar, é rápido nas perseguições e capturas (transita directamente do passo para o galope), é franco nos ataques e não se intimida nos contra-ataques. Quando tratamos do Cão da Serra da Estrela (“de Estrela” para os mais eruditos), somos obrigados a considerar as suas duas variedades: a de pêlo curto e a de pêlo comprido, porque subsistem diferenças comportamentais que influem no rendimento destes cães. Os de pêlo curto são mais activos, melhores parceiros, mais disponíveis e bons atletas, engordam menos e conseguem atingir 35 comandos básicos. Os de pêlo comprido intimidam mais, têm melhor presença ostensiva, são também desconfiados e com o passar do tempo tendem à desobediência, insurgindo-se contra as ordens na procura de rumo próprio. Os ataques dos Serras da Estrela não são francos e podem ser letais, porque atacam preferencialmente pela retaguarda e de modo imprevisível, havendo alguns que atacam ao pescoço, quando convidados para acções desse tipo, não gostam de ser contrariados e tendem a atrasar-se no “junto”, ocasião que podem usar para carregar sobre os seus condutores. O Cão da Serra da Estrela é um típico “let him go”, um companheiro com vontade própria que detesta intromissões. Se vier a acontecer a proliferação dos exemplares de pêlo curto, o que seria de todo desejável, o futuro do Serra da Estrela só terá a ganhar com isso, porque essa variedade é mais versátil, melhor aceita a liderança e mantém os indíces atléticos por mais tempo. O cão de eleição do falecido Padre Aníbal Rodrigues, o Cão de Castro Laboreiro, um lupóide amastinado, junta características de ambos os grupos somáticos, para o melhor e para o pior, sendo grande a diversidade individual de comportamentos. A raça vale como cão de guarda, mais pela tenacidade do que pela força de mordedura. Contudo a sua velocidade funcional é baixa, porque normalmente envereda pelo galope cadenciado. O cão de Castro Laboreiro é um excelente atleta, não se nega aos desafios e necessita de mão forte, alcança maior aproveitamento nos automatismos de imobilização do que nos direccionais, ostenta uma marcha desengonçada (rebolada) e pode apresentar algumas dificuldades na sociabilização entre iguais. Se acontecer o acompanhamento dos seus ciclos infantis, para robustecimento da sua experiência directa e maior capacitação, o Castro Laboreiro chegará à excelência visível nos mais afamados lupinos ou lupóides. Apesar de se notarem algumas melhorias, a raça necessita de melhorar a cumplicidade, porque naturalmente surpreende pela carga instintiva. Aproveitando a deixa, já o dissemos e não nos cansamos de repetir: evite cruzar lupinos com molossos, porque esses híbridos podem tornar-se incontroláveis e muito perigosos (ex: CPA + Serra da Estrela).

Em termos prático-laborais, a maior diferença entre o Serra d’Aires e o Cão de Água Português reside na capacidade de aprendizagem, porque o primeiro é um super dotado quando comparado com o segundo. O cão da Serra de Aires pode executar na perfeição toda e qualquer disciplina convencional da cinotecnia, porque é muito curioso, prestável, disponível e veloz, pese no entanto alguma fragilidade a nível do dorso e a fraca potência de mordedura, que pode ser potenciada de modo convencional. Quando convenientemente adestrado, independentemente do seu sexo, pode transformar-se num bom terapeuta, já que como cão de companhia necessita apenas de alguma regra, porque é endiabrado e passa o tempo a observar. É o cão indicado para os jovens e para o desporto canino, pois adora correr e aprende a superar obstáculos com facilidade. Na obediência pode atingir a mestria e possui características inatas para o salvamento. Morfologicamente falando, só precisa de melhorar a sua ossatura e pormenor articular, porque geralmente não aguenta os impactos que causa, queixando-se de sobremaneira. O Cão de Água Português é menos dotado física e cognitivamente, mas menos queixoso e mais sossegado. É um cão familiar por excelência e um terapeuta pouco visto e pouco utilizado, entregue a grupo de apaixonados que pouco tem feito pela sua divulgação (valeu-lhes o Presidente Barack H. Obama). Este cão é um auxiliar por excelência, um cão de paz que abomina a guerra e que aceita a liderança sem maiores delongas, vive para a companhia e dispensa os artificialismos dispensados pelo treino. Afável de trato, dificilmente morderá a alguém, adora transportar objectos e nunca perde o rasto do dono. Ao Cão de Água Português só falta divulgação, ele tem lá tudo e fará muita gente feliz (menos aqueles que vivem para a escaramuça e não dispensam inimigos). O Perdigueiro Português, mestre no passo de andadura, é um caçador inato que se tem vindo a transformar em cão de companhia. Jamais poderá ser considerado um cão de ensino convencional, porque os seus interesses são outros e a caça é a sua especialidade. Trabalhar para além disso obrigará ao trabalho precoce e uma instalação doméstica irrepreensível. Contudo, a excelência no contributo ambiental não evitará a abordagem aos obstáculos pelo faro e não o fará prescindir dele. Pode e tem sido pouco utilizado como cão de pistagem e salvamento, algo estranho que desconsidera a sua excelência, velocidade e prontidão, mas certamente ligado ao pouco empenho dos seus criadores e ao desprezo dos profissionais dedicados a esses serviços. O recurso ao reforço positivo operou e tem operado múltiplas capacidades até aqui desconhecidas ou ditas pouco comuns na raça.

Falta aos criadores dos cães nacionais maior saber e empenho, ousadia para ir adiante e usar os meios próprios para isso, já que a maioria dos seus cães acaba arredada do treino e dos seus benefícios, desprezando assim um dos maiores veículos para o reconhecimento e divulgação do seu trabalho. Valerá a pena esperar pela eleição de um novo presidente dos Estados Unidos e aguardar que escolha um cão doutra raça portuguesa? E já agora, porque não esperar por D. Sebastião (monarca que ao que tudo indica era apreciador de galgos)?

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