quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Caderno de ensino: XXXV. O transporte

Como preâmbulo à temática, para melhor entendermos o nosso trabalho, importa desnudar o cão, os seus objectivos e processos utilizados. Os cães nascem para sobreviver, a sobrevivência é o seu objectivo principal e a procura do alimento é a sua tarefa prioritária. Por causa disto, com a domesticação, o homem, ao tornar-se no dono da comida, transformou-se no patrão do cão. Daqui se antevê, que a amizade canina não é desinteressada, porque se encontra alicerçada nesta relação de dependência. Que outra razão haverá, para o apego automático dos cães vadios àqueles que os socorrem? Porque não consentimos que outros alimentem os nossos cães? O que torna a recusa de engodos imperiosa, para além da sobrevivência canina? Onde estiver a comida, aí estará a afeição do cão, e graças à recompensa permanecerá ao nosso lado pronto para nos agradar. Existe uma relação entre a predação canina e as disciplinas cinotécnicas, um aproveitamento objectivo dos cinco momentos que constituem o seu modo de caçar, a saber: a procura, a detecção, a perseguição, a captura e o transporte. Os criadores das actuais raças caninas potenciaram algumas destas acções em prejuízo de outras, criando desse modo incapacidades e desequilíbrios. Cabe ao adestramento reequilibrar, caso o consiga, os cães que lhe são entregues, devolvendo-lhes o seu modo original de actuação. Para cada momento se criou um cão, para cada raça uma atribuição e nisto o cão ficou mais pobre. Com a contribuição da evolução das espécies, o homem conseguiu, nestes últimos 130 anos, transformar um lobo num passarinho de 4 patas (cães-toy). À excepção dos retrievers e de alguns bracóides, a maioria dos cães perdeu a capacidade de transportar, necessitando do amparo que só a gula pode oferecer. Não será o cão moderno um bucho anafado de biscoitos? Do instinto de caça só sobrou a recompensa e a presa adquiriu outras formas. Agora a história deverá ser contada ao contrário, do fim para o princípio, tirando-se partido experiência directa, da memória afectiva e do reforço positivo. Só a recompensa pode valer ao transporte.

Entendemos por transporte a recolha e entrega de um ou mais objectos, por parte do cão, debaixo de ordem e com destino definido, visando acções binomiais prà prestação de socorro. Este trabalho resulta do aproveitamento dos instintos de caça e presa, e procura transformar a predação em acções de salvamento e resgate. Existe uma clara distinção entre cães transportadores e carregadores, os primeiros transportam os utensílios na boca, os outros carregam-nos mediante atavios próprios par o efeito. Apesar da diferença operativa, as duas especialidades são parte integrante do mesmo objectivo: o salvamento. Mas se ambas contribuem para o mesmo fim, também a sua finalidade pode ser alterada, estender-se a usos distantes do seu propósito original.

Qual a importância do transporte? Não existe cão de trabalho sem transporte, porque o fim útil do treino é a divisão de tarefas – a complementaridade. Não espelhará o transporte a cumplicidade exigível a um binómio? Um carpinteiro ensinará o seu cão a buscar as ferramentas, um pastor, a tocar as suas vacas ou ovelhas, o cão doméstico entregará os chinelos ao dono, carregará o seu jornal e transportará o saco do lixo para o contentor. Quando começa o seu treino? O transporte começa no consentimento do espólio canino, transita para o churro e culmina nos brinquedos, sendo próprio do ciclo infantil que decorre dos 45 aos 120 dias. A acção começa por ser doméstica, potencia-se na escola e desfruta-se no lar. Os seus benefícios podem ser restritos ou abrangentes, dependendo do uso que lhe queiramos dar. Quando deixaremos de exigir essa tarefa a um cão? Quando tal lhe for penoso e ponha em risco o seu bem-estar físico e psicológico. Normalmente os cães são dispensados da tarefa quando atingem os 8 anos de idade. Os mais fracos deverão terminá-la atempadamente. De qualquer modo, quando os cães chegam aos 6 anos, diminuímos a frequência e o peso da carga, particularmente entre aqueles, com uma esperança média de vida de 10 anos. Como treinaremos? O transporte acontece da perseguição para os objectos estáticos, das formas anatómicas para as mais complexas, das pegas mais macias para as mais duras, dos objectos equilibrados para os desequilibrados, dos mais leves para os mais pesados com diferentes diâmetros.

Qual a força de transporte de um cão médio? Um cão médio aumenta a sua força de transporte dos 2 para os 36 meses quarenta vezes, não devendo abocanhar e transportar objectos com peso superior a 30% do seu peso corporal. Quanto deverão pesar os objectos destinados aos cachorros? Dos 45 aos 120 dias – 2% do seu peso corporal (300gr), dos120 aos 180 dias – 3% do seu peso corporal (600gr), dos 180 aos 240 dias – 5% do seu peso corporal (1 kg). Os valores dos pesos consideraram o crescimento médio de um exemplar CPA. Contudo, o percentual indicado é válido para todos os cachorros. E os destinados aos cães adultos? Depois da maturidade sexual, os cães jovens serão convidados para um esforço maior. Dos 8 meses aos 12 meses – até 10% do seu peso corporal (3Kg), dos 12 aos 18 meses – até 15% do seu peso corporal (5.25 kg), dos 18 aos 24 meses – até 25% do seu peso corporal (9.5 kg), dos 24 aos 36 meses – até 30% do seu peso corporal (12 kg). Os valores referenciados em Kgs consideraram um cão de 40 Kgs de peso. No entanto, o percentual indicado é válido para todos os cães. Não poderão carregar mais peso? Não devem, devido ao esforço articular, às mudanças de velocidade e ao aumento da frequência dos seus ritmos vitais. É importante não esquecer, que a prestação de socorro não acontece somente em pisos planos, pode passar pelo subir de uma rampa ou escada, pelo saltar de uma vala ou barreira. O peso a transportar deverá considerar as dificuldades próprias de cada percurso, tendo em conta a salvaguarda do animal, e só depois, a sua capacidade de resolução. Rotineiramente, o trabalho laboratorial é desenvolvido sobre os obstáculos do perímetro exterior da pista. Os cães mais robustos, com pesos superiores a 35 Kgs, conseguem arrastar cargas até 70% do seu peso corporal. Os grandes molossos e os portadores de mandíbulas fortes, podem tornar-se bons transportadores? Podem e geralmente fazem-no sem grandes dificuldades. Eles não são transportadores inatos, mas genuínos cães de captura. Há que ensiná-los de imediato a não retraçar os objectos, coisa que naturalmente fazem para enterrar os dentes no intuito de os estilhaçar. Apesar de conseguirem levantar mais peso que os demais, cansam-se mais rápido e interrompem as acções. Na prática, não devem transportar objectos com mais de 15% do seu peso corporal.

Que cães não deverão ser convidados para o transporte? Os cães estruturalmente côncavos, os portadores de assimetrias articulares, os de ritmos vitais elevados, os fustigados pela epilepsia e pela displasia, os convalescentes e idosos. Também os obesos e os pernaltos. Como proceder com um cão que nunca transportou? Como se tivesse 45 dias de idade, desenvolvendo a cumplicidade e suscitando o interesse, recompensando sempre que necessário e premiando todo e qualquer progresso. Os brinquedos não são do cão, são do dono e devem suscitar a cobiça do animal. Eles não devem ser entregues ao cão, mas anunciar a chegada do seu líder, ter o seu odor e ser objecto da sua estima. Devem constituir-se em fruto proibido e apetecível, algo que divide com o dono. Existe algum tipo de cão mais vocacionado para o transporte? Todos os cães podem ser transportadores e devem fazê-lo de acordo com o seu peso, tipo de mordedura e morfologia. O cão típico de transporte oscila entre os 27 e os 40 Kgs de peso, é normalmente rectangular, com pouco elevado de cabeça, de dorso paralelo ao solo e de média angulação. Apresenta eixos locomotores paralelos e geralmente tem pé de lebre. O seu focinho é forte e de extensão igual à do crânio. Os cães que tendencialmente incorrem no efeito campainha, com a cabeça nivelada pela linha do dorso, apresentam uma predisposição natural para este trabalho. O cão destinado ao transporte necessita de ter o peito forte e desenvolvido, um perímetro torácico acima dos 85 cm e ser convergente de mãos.

Depois de alcançado o transporte, qual é a meta seguinte? Abocanhar e transportar objectos estáticos distantes, debaixo de ordem expressa, segundo indicação do dono, a quem prontamente os entregará. A capacidade de diferenciar os objectos, fica a dever-se mais ao dono do que ao impulso ao conhecimento canino, por força da sua paciência, insistência e generosidade na recompensa. Como sabemos que a selecção canina raramente atenta para a importância do impulso ao conhecimento, ignorando-o muitas vezes, caberá aos proprietários dos cachorros operar o seu desenvolvimento, acção possível pela experiência variada e rica, no acompanhamento objectivo dos seus ciclos infantis. O cão deverá conhecer os objectos pelo nome. Como operaremos essa “ experiência variada e rica”? Se um cão é rico em espólio a tarefa encontra-se facilitada, basta sugerir a sua identificação. Quando tal não acontece, o espólio deverá ser enriquecido por brinquedos apelativos, de diferentes formas, texturas e pegas, com sons diferenciados e distintas progressões. Felizmente existe no mercado um grande número de brinquedos pedagógicos. Se o desprezo pela identificação se verificar, a recompensa tende a vencê-lo. Mas se a dificuldade de mantiver, urge relacionar cada objecto com uma acção do agrado do cão. Os cães não agarram a trela quando desejam ir à rua? Como se classificam os transportadores? Os cães são classificados pela capacidade de diferenciar os objectos que transportam. A classificação encontra-se assim distribuída: até 3 objectos o rendimento do cão é considerado medíocre, de 4 a 5 médio, de 6 a 7 médio alto, de 8 a 10 superior. Para além disso, o cão é considerado extraordinário e o dono não deixará de o ser. Há notícia de cães que conseguiram identificar várias dezenas de objectos ou diferenciar igual número de ovelhas. Existem algumas provas para transportadores? Actualmente não existem provas específicas de transporte. Apesar disso, ele está presente em diversas provas de obediência e pistagem, ainda que de modo suave. Exemplo disso é o transporte do haltere no Schutzhund e a procura do brinquedo nalgumas provas de obediência básica. Tal qual a técnica de condução, o transporte não é uma disciplina mas sim um complemento curricular, uma ferramenta indispensável aos cães de resgate e salvamento (no nosso modesto entender).

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