A afirmação acima faz
parte de um léxico interminável proveniente da insanidade dos donos somada à
manha dos cães, conclusões alheias à verdade e hoje cada vez mais aceites segundo
a trilogia homem, cão e antropomorfismo, como se os cães não pudessem ser
regrados e os donos se vissem obrigados a aceitar as suas regras (deles). Para
além do ridículo, que nalguns casos chega a rasar a obscenidade, afirmações
deste género não conseguem esconder duas coisas: o despreparo da liderança humana e o desrespeito pela
condição canina.
Numa aldeia que nos é
grata e que não esquecemos, dizia-se no pique do inverno: quando a neve cai ao
povoado, sofre mais quem anda descalço, aforismo que nos transporta para o
mundo dos afectos de grande número de proprietários caninos, condicionado
vivamente pelas circunstâncias sociais a que se encontram sujeitos, umas
advindas da sua individualidade e outras que lhe vão sendo impostas, que somadas,
levam-nos à procura dos cães como panaceia para o seu equilíbrio emocional,
numa sociedade cada vez mais indiferente e perante um fim gradualmente mais
incerto.
Todos sabemos que o grosso
dos cães habita debaixo do tecto da classe média, porque os pobres não têm como
os sustentar e os mais ricos têm outras prioridades e não estão para se
incomodar, o que não é de todo mau, uma vez que sem eles não haveria emprego nem
trabalho. Também sabemos, porque já é coisa antiga, que quem paga a maior fatia
das crises económicas é a classe média, enquanto sustentáculo de qualquer
nação, classe que hoje vai perdendo membros para o limiar da pobreza, que
sobrevive às custas do trabalho precário, que tem famílias a prazo, que tem dificuldade
em criar os filhos e que é também e por consequência, assombrada por uma crise
de identidade e valores.
Face ao panorama, esta
gente agarra-se aos cães como náufrago chegado à praia, “vendo” neles a sua
tábua de salvação, aquilo que o mundo em vão tenta negar-lhe e que por
substituição alcança (o homem actual está doente e o aumento do número de cães
de terapia comprova-o). Assim sendo, cada cão é para esta urbe o filho que
nunca teve, o amigo que gostava de ter, um companheiro sempre presente (por
vezes o único), o confidente que não dispensam e também o requisito mais
importante para o seu bem-estar, afirmação e realização individual.
À falta de melhor e vulneráveis
pela avidez, estes indivíduos atribuem aos seus cães estatutos e prerrogativas
que lhes são alheios, evitando-lhes qualquer reparo, permitindo-lhes toda a
sorte de disparates, saciando e potenciando as suas manhas, fundamentando-lhes
fobias e não lhes diferenciando o carácter da personalidade, o que do ponto de
vista pedagógico é um disparate com o descalabro à vista, considerando o
bem-estar, sociabilização e salvaguarda dos animais, que comportando-se como
meninos rabinos, acabam por espelhar as taras presentes nos seus donos pela
intimidade e cumplicidade experimentadas.
O carácter social dos
cães, cujo escalonamento não dispensa a hierarquia e por conseguinte a
liderança, obriga os donos a regrá-los, a apetrechá-los e a adaptá-los para a
convivência doméstica e inserção na sociedade, onde o perigo ronda, não faltam outros
cães, diferentes animais e gente que não quer ser importunada e que detesta vê-los
por perto. O “feitio” dos cães pode ser suavizado e por vezes totalmente
alterado, dependendo isso do perfil psicológico de cada cão, as “fobias” dos
cães podem e devem ser vencidas e nenhum deles necessita que lhe levem a comida
à boca.
Depois de tantos anos a
educar cães, não estranhamos ter despendido mais tempo a educar os donos,
servindo-nos dos cães para esse efeito, auxílio que sempre se revelou eficaz,
ainda que a tarefa nunca tenha sido fácil e isenta de reveses. Haverá algo de
estranho nisto? Não, porque educar cães é ensinar os donos a fazê-lo!
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