terça-feira, 1 de abril de 2014

PAU PARA TODA A COLHER

Portugal encontra-se nos três primeiros lugares na prevalência de doenças mentais a nível mundial, sendo o país que mais consome anti-depressivos na UE. À primeira vista dir-se-ia que tal se deve à grave crise que atravessamos, o que de todo não é verdade, ainda que a austeridade forçada possa vir a aumentar o número de casos. Mais do que a razão económica, pesa o montante de idosos que temos, muitos deles a braços com a distimia, mercê de causas genéticas ou sociais ou da sua combinação. A política de reformas antecipadas também não tem ajudado e a falta de parâmetros familiares muito menos. No adestramento cresce o número de indivíduos ansiosos, depressivos, esquizofrénicos, bipolares e obsessivos compulsivos, alguns com ataques de pânico e outros a braços com a paramnésia, patologias que não respeitam sexo, idade, condição social ou estado civil. E, como se costuma dizer, quando a mente não está bem o corpo é que paga, sobrando daí obesidade, bulimia, ausência de vigor, fadiga, apatia e todo um conjunto de incapacidades que obstam ao prazer de ensinar um cão, o que obrigará a um maior cuidado com os indivíduos para a formação colectiva das classes, porquanto se encontram doentes e importa recuperá-los.
Hoje como nunca, pedagogos, sociólogos, psicólogos e psiquiatras aconselham a cinoterapia para o equilíbrio emocional e social de jovens, adultos e idosos, levando-os à aquisição de um cão ou a tomar contacto com um ou mais em sessões com esse propósito, o que irá obrigar à coabitação de diferentes metas e objectivos binomiais dentro das mesmas classes, considerando quer o proveito quer o rendimento dos cães, o que não sendo uma tarefa fácil é inescusável, diante dos propósitos das diferentes lideranças, já que a sua separação menos serviria aos indivíduos carenciados da cinoterapia, pela ausência do exemplo que incentiva e serve de estímulo. Pondo de parte os “condutores-pacientes” e olhando com mais cuidado para os comuns, sem grande dificuldade, ainda que com menor intensidade, deparamos com as mesmas necessidades, muitas vezes inconfessas mas nem por isso menos visíveis. Para além desta “automedicação”, que neste caso é saudável e não acarreta graves contra-indicações, somos também obrigados a considerar os propósitos de alguns pais, que vendo os seus filhos na puberdade e temendo pelo adiantamento da sua maturidade sexual em relação à emocional, optam por regrá-los e integrá-los nas classes de adestramento. Tudo isto somado, chega-se à conclusão que o treino canino cada vez mais se afasta do seu fim útil (o adestramento dos cães) e melhor serve a recuperação e o bem-estar dos donos, sobrepondo-se a terapia ao trabalho objectivo.
Não podemos dizer que se trata de uma novidade, porque sempre assim aconteceu, muito embora o seu peso tenha sido substancialmente menor nas décadas anteriores. O que terá contribuído para a mudança, para a transformação do trabalho em terapia no adestramento? Que diferença prestativa haverá, se a há, entre os jovens nascidos nas décadas de 60 e 70 e os das décadas seguintes? Como é óbvio não se pode dissociar desta análise as profundas alterações políticas e sociais produzidas pela “Revolução dos Cravos”, que ao instalar a democracia revolucionou o modo de estar da maioria dos portugueses, revogando conceitos e instalando novos ideais. Os jovens nascidos nas décadas de 60 e 70, foram ainda criados e ensinados debaixo do estigma do “Deus, Pátria e Autoridade”, valores transmitidos pelos seus pais, advindos de uma sociedade maioritariamente rural, pretensamente beata e ordeira, que divinizava o trabalho, abstinha-se de opinião e que induzia os indivíduos à perca dos seus direitos individuais em função do esforço colectivo. Já os nascidos depois delas, poupados que foram aos esforços de outrora, tornados citadinos pela migração do interior para o litoral, foram criados e educados de modo diferente, debaixo de abastança, melhor protegidos, com outros direitos, mais regalias e outras oportunidades, ao abrigo do direito à diferença e mais ciosos de si próprios, o que levou alguns ao abandono de Deus, à desconsideração da Pátria, ao desrespeito pela autoridade, a uma emancipação tardia e em certos casos ao desprezo pelo trabalho.
Entre outras mudanças, esta divergência ou antagonismo de parâmetros, que alguns tratam como “ausência”, levaram-nos a alterar os planos de aula. As aulas para os alunos da década de 90 eram essencialmente práticas e as das décadas posteriores obrigaram a um reforço teórico, porque estes indivíduos haviam perdido o contacto mais próximo com os animais, tinham menor disponibilidade física e exigiam maiores explicações, o que apesar de trabalhoso não deixou de ser positivo diante dos resultados obtidos e nem escondeu a chegada avassaladora de condutores femininos. O incremento à prática da cinoterapia deve tanto à fortuna quanto à miséria, porque acontece nas sociedades mais ricas, onde o reconfortante contacto com a natureza e com os animais é cada vez mais difícil. As camadas mais jovens da nossa sociedade, enclausuradas nas cidades, acabam por reflectir as mazelas do seu viver social, fortemente impessoal, drasticamente isolado, inibidor dos seus afectos e fomentador de um sem número de taras, impropriedades que acabarão também por se revelar no adestramento e que convém suavizar, porque doutro modo o treino canino mais agravará à sua alienação. Há que ter esse cuidado!
O aumento inesperado da cinoterapia entre nós tem resultado de condicionantes políticas e sociais que atentam contra a família, cada vez mais acossada, fragilizada, desmembrada e adulterada, quase incapaz de dialogar, funcionar e de valer aos seus, enquanto suporte nuclear da sociedade. Ainda que subsistam desequilíbrios de origem genética ou traumática, é da instabilidade familiar que provém o seu maior número. À falta de melhor, valha-nos o cão, que desconhecendo ser terapeuta, “é pau para toda a colher”!

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