Portugal
encontra-se nos três primeiros lugares na prevalência de doenças mentais a
nível mundial, sendo o país que mais consome anti-depressivos na UE. À primeira
vista dir-se-ia que tal se deve à grave crise que atravessamos, o que de todo
não é verdade, ainda que a austeridade forçada possa vir a aumentar o número de
casos. Mais do que a razão económica, pesa o montante de idosos que temos,
muitos deles a braços com a distimia, mercê de causas genéticas ou sociais ou
da sua combinação. A política de reformas antecipadas também não tem ajudado e
a falta de parâmetros familiares muito menos. No adestramento cresce o número
de indivíduos ansiosos, depressivos, esquizofrénicos, bipolares e obsessivos
compulsivos, alguns com ataques de pânico e outros a braços com a paramnésia,
patologias que não respeitam sexo, idade, condição social ou estado civil. E,
como se costuma dizer, quando a mente não está bem o corpo é que paga, sobrando
daí obesidade, bulimia, ausência de vigor, fadiga, apatia e todo um conjunto de
incapacidades que obstam ao prazer de ensinar um cão, o que obrigará a um maior
cuidado com os indivíduos para a formação colectiva das classes, porquanto se
encontram doentes e importa recuperá-los.
Hoje como nunca, pedagogos, sociólogos, psicólogos
e psiquiatras aconselham a cinoterapia para o equilíbrio emocional e social de
jovens, adultos e idosos, levando-os à aquisição de um cão ou a tomar contacto
com um ou mais em sessões com esse propósito, o que irá obrigar à coabitação de
diferentes metas e objectivos binomiais dentro das mesmas classes, considerando
quer o proveito quer o rendimento dos cães, o que não sendo uma tarefa fácil é
inescusável, diante dos propósitos das diferentes lideranças, já que a sua
separação menos serviria aos indivíduos carenciados da cinoterapia, pela
ausência do exemplo que incentiva e serve de estímulo. Pondo de parte os
“condutores-pacientes” e olhando com mais cuidado para os comuns, sem grande
dificuldade, ainda que com menor intensidade, deparamos com as mesmas
necessidades, muitas vezes inconfessas mas nem por isso menos visíveis. Para
além desta “automedicação”, que neste caso é saudável e não acarreta graves
contra-indicações, somos também obrigados a considerar os propósitos de alguns
pais, que vendo os seus filhos na puberdade e temendo pelo adiantamento da sua
maturidade sexual em relação à emocional, optam por regrá-los e integrá-los nas
classes de adestramento. Tudo isto somado, chega-se à conclusão que o treino
canino cada vez mais se afasta do seu fim útil (o adestramento dos cães) e
melhor serve a recuperação e o bem-estar dos donos, sobrepondo-se a terapia ao
trabalho objectivo.
Não
podemos dizer que se trata de uma novidade, porque sempre assim aconteceu,
muito embora o seu peso tenha sido substancialmente menor nas décadas
anteriores. O que terá contribuído para a mudança, para a transformação do
trabalho em terapia no adestramento? Que diferença prestativa haverá, se a há,
entre os jovens nascidos nas décadas de 60 e 70 e os das décadas seguintes?
Como é óbvio não se pode dissociar desta análise as profundas alterações
políticas e sociais produzidas pela “Revolução dos Cravos”, que ao instalar a
democracia revolucionou o modo de estar da maioria dos portugueses, revogando
conceitos e instalando novos ideais. Os jovens nascidos nas décadas de 60 e 70,
foram ainda criados e ensinados debaixo do estigma do “Deus, Pátria e
Autoridade”, valores transmitidos pelos seus pais, advindos de uma sociedade
maioritariamente rural, pretensamente beata e ordeira, que divinizava o
trabalho, abstinha-se de opinião e que induzia os indivíduos à perca dos seus
direitos individuais em função do esforço colectivo. Já os nascidos depois
delas, poupados que foram aos esforços de outrora, tornados citadinos pela
migração do interior para o litoral, foram criados e educados de modo
diferente, debaixo de abastança, melhor protegidos, com outros direitos, mais
regalias e outras oportunidades, ao abrigo do direito à diferença e mais ciosos
de si próprios, o que levou alguns ao abandono de Deus, à desconsideração da
Pátria, ao desrespeito pela autoridade, a uma emancipação tardia e em certos
casos ao desprezo pelo trabalho.
Entre
outras mudanças, esta divergência ou antagonismo de parâmetros, que alguns
tratam como “ausência”, levaram-nos a alterar os planos de aula. As aulas para
os alunos da década de 90 eram essencialmente práticas e as das décadas
posteriores obrigaram a um reforço teórico, porque estes indivíduos haviam
perdido o contacto mais próximo com os animais, tinham menor disponibilidade
física e exigiam maiores explicações, o que apesar de trabalhoso não deixou de
ser positivo diante dos resultados obtidos e nem escondeu a chegada
avassaladora de condutores femininos. O incremento à prática da cinoterapia
deve tanto à fortuna quanto à miséria, porque acontece nas sociedades mais
ricas, onde o reconfortante contacto com a natureza e com os animais é cada vez
mais difícil. As camadas mais jovens da nossa sociedade, enclausuradas nas
cidades, acabam por reflectir as mazelas do seu viver social, fortemente
impessoal, drasticamente isolado, inibidor dos seus afectos e fomentador de um
sem número de taras, impropriedades que acabarão também por se revelar no adestramento
e que convém suavizar, porque doutro modo o treino canino mais agravará à sua
alienação. Há que ter esse cuidado!
O aumento
inesperado da cinoterapia entre nós tem resultado de condicionantes políticas e
sociais que atentam contra a família, cada vez mais acossada, fragilizada,
desmembrada e adulterada, quase incapaz de dialogar, funcionar e de valer aos
seus, enquanto suporte nuclear da sociedade. Ainda que subsistam desequilíbrios
de origem genética ou traumática, é da instabilidade familiar que provém o seu
maior número. À falta de melhor, valha-nos o cão, que desconhecendo ser
terapeuta, “é pau para toda a colher”!
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