quarta-feira, 23 de abril de 2014

O DOX, A LINGUAGEM GESTUAL E NÓS

O Dox von Coburg Land (1946-1965), um CPA de origem alemã que foi adestrado como cão-polícia em Turim (Itália), é um ícone e a maior referência entre os Pastores Alemães, apesar da sua história ser desconhecida por muitos dos actuais apaixonados e criadores da raça, não obstante ter sido eleito 13 vezes como melhor cão policial do mundo, resolvido 171 processos penais, capturado e denunciado 153 bandidos, ladrões e assassinos, encontrado 136 pessoas idosas e crianças, operado 46 salvamentos, ter sido ferido 7 vezes e ter ganho 11 medalhas de ouro e 27 de prata, números confirmados oficialmente e depois lavrados na sua estátua para a posteridade. Pelo que foi e pelo que fez, vale a pena relembrá-lo, decorridos quase 50 após a sua morte e diante do fraco préstimo da maioria dos pastores actuais, cuja selecção, ao descurar o impulso ao conhecimento, traiu os propósitos da raça, comprometeu a sua capacidade de aprendizagem e tornou dispensável o seu uso.
Não se pode falar do Dox sem se mencionar a figura do seu treinador, porque se o cão foi excelente, a sua utilidade ficou a dever-se ao aproveitamento e aperfeiçoamento das suas qualidades pelo seu líder, também ele excelente e primeiro responsável pelo destaque binomial, o então Sargento Giovanni Maimone, que terminaria a sua carreira militar no posto de Brigadeiro. De outra forma como poderia “il Gigante” (nome pelo qual o Dox era conhecido pelos mafiosos e demais criminosos), desarmar armas, desmontá-las, remover carregadores e destruir cartuchos, para além de conseguir manter sozinho 12 homens perigosos dentro de um quarto, enquanto o seu companheiro solicitava reforços? É importante referir que naquele tempo não havia a divisão hoje existente entre cães de beleza e trabalho, sendo todos julgados em função dele, contrariamente ao que agora se vê, onde se impingem cães de beleza pró trabalho e se abastardam outros para esse fim. Por onde andarão os descendentes directos das linhas de Deininghauser e de Coburgo, em que mãos estarão e o que fizeram deles? Afortunadamente nós tivemos alguns!
Foi o conhecimento da história do Dox que nos levou a adoptar também a linguagem gestual no nosso método de ensino, o que veio a acontecer nos finais da década de 80 e que se mantém até aos dias de hoje, muito antes do estudo e contributo dos peritos em comunicação não verbal ter chegado até nós, dos quais destacamos o Prof. Albert Mehrabian, um iraniano radicado nos Estados Unidos e hoje professor emérito na Faculdade da Califórnia, que através da célebre equação com o seu nome, concluiu que numa conversa frente a frente, apenas 7% do impacto da mensagem se deve às palavras, 38% às matizes empregues, ao tom de voz e a outros sons e que 55% resultam apenas de gestos e posturas. Acontece que o Dox foi também ensinado assim, mediante a linguagem gestual, porque o seu dono comprou-o e levou-o sem autorização para o quartel da polícia, escondendo-o dentro do seu quarto, passando o cão a maior parte do dia sozinho e comunicando com ele através de gestos, para não serem denunciados. À noite saíam, mas nunca para dentro do campo de treino. Depois de descobertos, Maimone recebeu autorização para ficar com o Dox e pode treiná-lo como cão-polícia, entrando ambos para o serviço e destacando-se como o seu melhor binómio, apesar de penalizado nas provas por falta de “ Hörlaut” (comando verbal). E isto aconteceu 24 anos antes da primeira publicação de Mehrabian! Também recebemos uma dica nas nossas andanças pelas línguas clássicas, ao depararmos com Flávio Josefo (מתתיהו בן יוסף), um judeu historiador e latinista da antiguidade (Sec.I), que a certo ponto escreveu: “ quando os animais deixaram de falar, foi o gesto que permitiu aos homens falar com eles”.
O uso que temos feito da linguagem gestual no adestramento não nos tem isentado do recurso à linguagem verbal, uma vez que as usamos em simultâneo para a celeridade das acções e figuras, já que o mundo do cão é feito de sons e odores. Para além dos aspectos ligados à prontidão das ordens, usamos a linguagem gestual para evitar a tensão de quem ordena e o stress de quem obedece, quando é necessário reforçar a liderança para que o movimento humano atinja a resposta animal pela sincronia entre o gesto e a acção (cumplicidade), transformando a disciplina corporal na arte de ensinar cães, já que qualquer olhar, postura ou tom de voz, alcança mais do que o mais elaborado dos discursos. E porque estamos a falar de capacitação dos condutores, importa que melhorem a fala e que adquiram gestos que não interfiram no normal desenvolvimento pedagógico dos seus cães, condições quase omitidas nos actuais métodos de ensino, prontos a culpabilizar os cães e a descuidar a formação dos seus mestres, em particular quando os resultados ficam aquém das expectativas, como se os animais fossem uns pobres coitados e os donos houvessem sido bafejados pelo infortúnio. Pergunta-se agora: porque é que no passado recente todos os cães aprendiam, hoje o insucesso escolar canino é tão alto e sujeito a delongas?
Tratar da comunicação interespécies, que é disso que também trata o adestramento, é estender aos cães uma linguagem que lhes seja automaticamente perceptível e essa terá que ser a emocional, comunicação que se espraia na mímica, nos gestos e num conjunto de rituais, o que implica em dizer que um treinador de cães, mediante a sua postura corporal, vai adquirindo posturas e mímicas próximas à dos animais que ensina, adquirindo comportamentos que desnudam a sua actividade laboral. Uma vez desenvolvida esta habilidade, ele irá conseguir libertar sentimentos perceptíveis e apreensíveis junto dos animais que educa, acontecendo exactamente o mesmo com os etólogos que intentam comunicar com os lobos, o que não implica no abandono peremptório da linguagem verbal, já que ela é um precioso subsídio educacional quando usada correctamente, desejando-se inclusive que todos os condutores sejam portadores de uma voz poderosa, clara e modelada. Mas como nem todos conseguem alcançá-la, por entraves genéticos, ambientais ou traumáticos, é comum que se deixem vencer pela tensão corporal, advinda do esforço que leva a uma postura contraída e que não esconde as dificuldades da sua inaptidão. Nestas situações, a linguagem gestual tende a consertar aquilo que a voz destrói, surgindo o gesto como complemento da ordem, colocando-a perceptível e de fácil assimilação para os cães.
Através da mímica conseguimos recriar nalguns cães a naturalidade, a calma e o bem-estar que a selecção rácica lhes roubou, incapacidades que hoje muitos lamentam (criadores e proprietários), já que com o gesto estamos a reinventar o rito da comunicação interespécies. Nos cães agressivos a linguagem gestual opera a confusão que leva ao travamento, com o travamento vem a curiosidade e com ela opera-se o desenvolvimento do impulso ao conhecimento. Nos cães medrosos o recurso à mímica gera um sentimento de cumplicidade que carrega alento e os liberta do stress, fazendo-lhes despertar o gosto por aprender.
Ao longo de décadas ensinámos um número considerável de cães surdos, maioritariamente Dálmatas e Dogues Argentinos e nenhum deles ficou por ensinar, muito embora a tarefa não se tenha revelado fácil. Tal só foi possível graças à linguagem gestual. De que outra maneira lhes poderíamos valer nas curtas e médias distâncias? Esganando-os com as correntes dos enforcadores ou transformando-os em comilões inveterados? Importa alertar os condutores caninos para a condução à trela, que deve ser suave e atenta, pois há uma diferença significativa entre a mão que se estende em ajuda e aquela que estrangula, uma vez que não irão laçar lagartixas ou esganar jacarés. Não é fácil ensinar linguagem gestual, já que a sua aquisição não é automática, particularmente quando a maioria das pessoas perdeu há muito a capacidade de comunicar com os animais.
Mas se existe alguma transcendência operativa no adestramento, capaz de melhor aproveitar todo manancial que os cães têm para oferecer, ela resultará certamente da adaptação individual dos condutores, que desafiados para a prática da linguagem gestual, conseguirão melhor comunicar com os seus animais. È importante relembrar que as chaves da conquista amorosa residem nos gestos e nas atitudes, sendo exemplo disso o ritual de acasalamento entre os cães, havendo cadelas que detestam de imediato os cães que lhe são apresentados e cães que se desinteressam das cadelas que lhe são oferecidas para copular, o que vem dar razão a Josefo, Maimone e Mehrabian, e a nós também! Dificilmente sem a linguagem gestual será possível encetar manobras de surpresa bem sucedidas, quando a nossa vida e a do nosso companheiro possam estar em risco.
Foram muitos os binómios que entre nós se destacaram no exercício da linguagem gestual, por isso só manifestaremos alguns, pedindo desde já desculpas àqueles que não mencionámos: A.Crava/Sam, Beatriz/Warrior, G.Gamboa/Cherockee, Isabel/Orca, J.Gabriel/Master, Joana/Flikke, Jorge/Brownie, Maria D./Afonso, Mónica Madeira/Tarzan, Paulo/Alfa, Rui/Red e Sofia F./Zazou. Estes binómios como tantos outros provaram que é possível ensinar um cão em silêncio e desenvolver-lhe aptidões, assim como já havia acontecido entre o Brigadeiro Maimone e o Dox. Muitos deles realizaram façanhas que dificilmente veremos repetidas, factos que nos levam para diante e que dificilmente esqueceremos, agradecendo-lhes desde já a jornada que trilharam connosco. Regressando ao Dox, queremos divulgar uma foto de dum exercício deveras difícil que se tornou fácil para ele e que publicamos a seguir, para matar saudades e para homenagear este excelente cão.
Quantos Dox’s ainda veremos? Dificilmente voltaremos a ver mais algum, como não veremos outros iguais aos nossos: “ Afonso”, “Bibos”, “Brutus”, “Faruk”, “Francês”, “Juby”, “Ken”, “Roger” e “Warrior”, amigos fiéis que suavizaram as nossas vidas e que nos dedicaram as suas, companheiros incondicionais que nos fizeram crescer e de quem sentimos falta. Que pena não se poder ter um cão para toda a vida!

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