Os cães dos pastores não se limitam
a sair à rua com os donos ou a ir ao treino 3 vezes por semana, porque passam
todos os dias com eles, de manhã à noite, sábados e domingos inclusive, e nisso
são uns privilegiados quando comparados com os cães urbanos, que apesar de
dividirem o mesmo espaço com donos, raramente os vêem e passam os dias
entregues a si próprios, porque os seus líderes saem à pressa, precisam de
trabalhar e chegam a casa já estafados, necessitando por isso de dormir e
descansar, azáfama que os afasta e retarda a cumplicidade entre eles, condenando
os animais ao subaproveitamento pelo peso das rotinas e ausência de novos
desafios. E como se isto não bastasse, chegadas as férias, a separação ainda é
maior, porque alguns cães são recambiados para hotéis feitos “à sua medida”,
longe dos donos e entregues a gente que desconhecem, que raramente vêem ou que
vêem quando não deveriam, substitutos contratados de quem poderão agradar-se ou
não.
Todos sabemos que muitos cães
sobrevivem nas cidades debaixo de restrição, tanto em casa como na rua, num
regime de imposição que desconsidera o seu viver social e necessidade afectiva,
o que por norma contribui para a alteração do seu comportamento e para a
aquisição de um sem número de taras, motivadas pelo isolamento, insatisfação, inactividade,
ansiedade e stress, implicando também estes numa série de problemas físicos que
atentam contra o seu bem-estar e que induzirão ao encurtamento dos seus dias.
Com isto, os cães cada vez mais se afastam dos donos, tornam-se para eles
desconhecidos e transformam-se num fardo: “lá tenho eu que levar, mais uma vez,
este marreta à rua, já me cansa andar a reboque!”. Casa roubada, trancas na
porta, quando não dados ou abandonados, alguns destes cães virão pró treino,
rotulados de bestas, feras ou de anjos demoníacos, quando na verdade são apenas
reflexo das acções e inacções dos seus donos, motivadas pelo desprezo,
despreparo, ignorância e indisponibilidade que neles grassam, o que nos leva
perguntar: para que quererá tal gente cães?
Os três motivos que mais
alunos trazem às escolas caninas são: o andar à trela sem puxar, o deixar de
fazer as necessidades em casa e a formação de cães de guarda, geralmente
reclamados por donos que não saem à rua com os seus cães, que não os põem a
fazer as necessidades depois de comer e que pouco contacto têm com eles,
desconhecendo que os cães necessitam da excursão diária, que são naturalmente asseados
e que revertem em protecção o carinho que recebem, defendendo o seu grupo
porque se identificam com ele e se sentem bem integrados.
Contrariamente aos cães dos
pastores, que dividem o tempo útil com eles, os cães citadinos irão obrigar os
seus donos à repartição dos seus tempos de lazer e descanso, até porque outros
não lhe sobram e por sinal são mais curtos, o que irá implicar numa coabitação
mais próxima, porque doutro modo dificilmente se reforçará a liderança, se
atingirá a cumplicidade, a autonomia dos animais, a divisão de tarefas e a
complementaridade canina. Nenhum cão nasceu para estar só, nem mesmo no tempo
em que foi lobo! E se algum ficou só, é porque os outros o obrigaram a isso,
sendo escorraçado contra vontade e por meios violentos, a mesma violência que
hoje vimos sobre os cães enjaulados em boxes, pendurados à janela, esquecidos
em garagens, encerrados nas cozinhas e desterrados para as varandas.
Não
precisamos de cair no exagero de dormirmos no chão e o cão dentro da cama ou da
dividirmos com ele, mas podemos deixar a sua cama perto do nosso quarto,
deixá-lo acompanhar-nos por todas as divisões da casa e seguir os nossos
passos, para que sinta que a casa também é sua e que lhe cabe defendê-la, ainda
que para isso tenhamos que lhe estabelecer regras para que entenda os seus
limites. Esta relação de proximidade que os cães exigem, é o preço que teremos
de pagar para os termos e que irá alterar a vida de toda a família, obrigando
todos a abdicar de algo a que estavam acostumados, alteração nem sempre considerada
na hora de adquirir um cão e que levará alguns a maldizer da sua sorte.
Uma coisa é certa e muitos
podem testemunhá-lo: os cães que vivem ou dormem mais perto dos donos são os
primeiros a defendê-los! E se isto é verdade, o inverso não deixará de sê-lo.
Os nós de corda, os trapos, os churros, as mangas, os fatos de ataque, as
protecções ocultas e os figurantes podem ensinar um cão a atacar, mas só apego
ao dono o levará a defendê-lo, ainda que por provocação o consigamos, tarefa
desnecessária diante da afeição que liga homens e cães. Todo e qualquer cão
cresce, robustece-se e desperta para o serviço no calor do aconchego doméstico,
mercê do bem-estar social que lhe transmite segurança e lhe permite a ousadia.
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