quarta-feira, 30 de abril de 2014

OS CÃES DA NICOLE SCHLAEPFER

Recebemos recentemente um email de uma leitora que é criadora de pastores alemães brancos, proprietária de um campeão do mundo e que vamos dividir com os restantes leitores, aproveitando a oportunidade para comentar aquilo que ela nos disse e que não tivemos oportunidade de dizer no artigo “ O MELHOR E O PIOR DO PASTOR SUIÇO: ANÁLISE TÉCNICO-FUNCIONAL”, editado em 21/06/2011. Disse a Nicole:
“PASTOR ALEMÃO EM BOAS PALAVRAS”. Olá, primeiro gostaria de dizer que sou uma grande admiradora dos seus pastores negros e que certo dia deparei-me no seu blog com um lindo artigo sobre os pastores alemães brancos (http://acendurabrava.blogspot.com.br/2011/06/o-melhor-e-o-pior-do-pastor-suiço.html). Não pude conter a minha emoção ao ver tal reconhecimento vindo de um criador de pastores negros. Eu e o meu pai criamos pastores alemães brancos há 20 anos e temos lutado (sozinhos) durante esse tempo para manter o padrão original, brigando com a FCI e contra tanta discriminação relativa a um cão por causa da sua cor. Apesar disso temos vencido os “suíços” com o padrão alemão nas competições da FCI. O que é contraditório é que foi o próprio presidente do Kennel que criou o “Suíço”, quem atribuiu o título de campeão mundial ao meu pastor alemão branco, contradizendo todos os padrões suíços. Enfim, muito obrigado. Espero um dia ter um pastor alemão negro (não temos aqui). Seguem algumas fotos dos meus cães.”

Vamos lá falar de discriminação, porque é disso que se trata. Para se compreender a exclusão da variedade branca do Pastor Alemão é preciso compreender o maior dos pressupostos para a criação desta raça: o trabalho, porque foi criada por um militar e bem cedo foi apadrinhada e aproveitada para fins bélicos, vindo a ser preferida por todos os exércitos europeus, mesmo daqueles que usaram outros cães na I Grande Guerra, notoriamente menos válidos diante da prestação do Pastor Alemão que mais tarde viria a ser “o cão de guerra” por eleição. Esse apadrinhamento militar, aliado aos históricos sentimentos germânicos relativos ao progresso, à supremacia da prática, da perfeição e da uniformização, que muito facilitaram a adopção do eugenismo, diante do desastre que se abateu sobre os molossos brancos recrutados pelo exército italiano, ganhou peso e expressão, porque a variedade branca, ao destacar a sua silhueta, tornar-se-ia num alvo fácil de abater.
Para além da razão militar (ainda bem que as guerras utilizam cada vez menos cães), outra razão se levantou, a relativa à transmissão e evolução da cor branca que induz à consequente despigmentação dos cães, uma vez que ela tende a aumentar e perpetuar-se no seu manto. Para explicarmos esta questão vamos valer-nos do que sucede no Boxer, cujo estalão admite a presença 30% da cor branca no manto dos seus exemplares, o que ontem como hoje, tem perpetuado o surgimento de cães totalmente brancos que acabam por não ter registo. Sempre que um comum pastor preto-afogueado apresenta marcas brancas no peito ou nas patas (por vezes também na ponta da cauda), essas marcas são consideradas indesejáveis pelo estalão, porque remontam à proto-selecção, denunciam a ascendência em animais totalmente brancos ou à presença ainda que ténue do factor branco. Esse rótulo de “indesejáveis” impossibilita cada vez mais o nascimento de exemplares brancos oriundos de exemplares padronizados, muito embora dois progenitores brancos possam gerar cães preto-afogueados, já que as diferentes variedades cromáticas se fizeram presentes na génese da raça. Pretendia-se evitar os cães malhados, preocupação que alguns criadores do Pastor de Shiloh desleixaram e que culminou no Shiloh Panda, muito embora ele seja um bastardo (via Malamute do Alasca) diante do Pastor Alemão Branco.
As razões operacional e estética acabaram por discriminar o Pastor Alemão Branco até aos dias de hoje, revestindo-o de “suíço” ou “canadiano”, escondendo-o por detrás do Pastor de Shiloh e doutras variedades cromáticas aceites pelo estalão do Deutsche Schäferhund, como é o caso de alguns exemplares cinzentos uniformes (azuis) e doutros de manto vermelho aceites por alguns Kennel Clubs, apesar de se poder chegar a ambos pela presença da variedade negra quando beneficiada pela parcialmente cinzenta (lobeira), o que lhes perpétua a máscara e lhes aviva o tom. E o despudor não acaba aqui, porque nos cães ditos de trabalho, quando importa alcançar cães maiores, alguém se lembra do branco, porque o factor está associado ao gigantismo e os cães de pata branca virão a ser os maiores das ninhadas. Já é tempo de acabar com a hipocrisia, de reintegrar os pastores brancos que não foram transfigurados pelos pareceres e distorção “suíços”, de devolver a biodiversidade presente nos alvores da raça e de considerar como parte integrante dela os Pastores Alemães Brancos que sempre estiveram no seu ceio, ainda que muitas vezes omissos, como acontece nos nossos dias.
Para que o Pastor Alemão Branco não se extinga e acabe “suíço” de uma vez por todas, por força da endogamia que produz a alteração, é necessário enveredar-se por uma “política de quadro aberto”, caracterizada por beneficiamentos entre a variedade branca com as restantes admitidas pelo estalão da raça, a bem da sua continuidade e perpetuação, o que em termos laborais só traz vantagens, ainda que choque com os pruridos de alguém. Parece ignomínia o que acabámos de dizer, mas se o é, há quem se borrife nisso, porque pela calada da noite, gente conhecedora e creditada, inconfessa e bem intencionada assim procede por esse mundo fora. De que outro modo como poderiam os Pastores Brancos acompanhar a evolução da raça, agarrando-se ao estalão de 20 de Setembro de 1899 ou ao de 28 de Julho de 1901?
Mais sábios, honestos e justos foram os criadores dos Pastores Belgas, menos atormentados pelo eugenismo negativo, que consideraram quatro variedades dentro da mesma categoria (Pastores Belgas): o Groenendael, o Tervuren, o Laekenois e o Malinois, admitindo registar um Tervuren filho de pais groenendael e vice-versa, apesar da sua incidência ser cada vez menor. Em face disto, o que obstará para que os Pastores Alemães Brancos sejam considerados uma variedade da raça? Somente as amarras aos erros do passado, a burrice e a teimosia! Os esforços da Nicole deverão ser endereçados à SV (Verein für Deutsche Schäferhunde), porque se ela aceitar a abolição da discriminação, não será a FCI que a manterá nem tampouco os suíços. Estamos convencidos que mais cedo ou mais tarde a justiça será feita, isto se houver mais gente como a Nicole e o seu pai.
Por aqui toda a gente sabe que somos adeptos dos cães de trabalho e que não nos enganamos com aqueles que sendo de beleza se adornam com mais-valias desportivas, que apenas servem para decorar o pedigree e que estão ao alcance de qualquer cão, independentemente da sua qualidade individual, do seu grupo somático ou propósito racial. Por causa disso criámos e treinámos Pastores Alemães ao longo de décadas, experimentando cães das mais variadas linhas e de todas as construções cromáticas, indivíduos pertencentes à variedade dominante, às recessivas e às desprezadas pelo actual estalão da raça. De acordo com a nossa avaliação, o Pastor Alemão actual peca por falta de equilíbrio emocional, variando entre o bonacheirão e o briguento quer desprezando qualquer provocação ou entendendo tudo como tal. Essa lacuna depois de constatada veio a ser colmatada com o contributo das variedades unicolores, naturalmente mais seguras e por isso mesmo mais concentradas, com maior capacidade de aprendizagem e com superior impulso ao conhecimento. Graças a isso chegámos aos cães de manto vermelho, noutras latitudes considerados como cor de areia, solid red ou dourados, pastores vermelhos unicolores de excelente qualidade, de que oportunamente falaremos amiúde, também eles oriundos dos pastores brancos outrora aceites, ainda que os nossos nada tivessem de branco na construção, como atrás já o dissemos e fizemos saber.
Pelas nossas mãos só passaram uma dúzia de pastores alemães brancos, todos eles descendentes de pais preto-afogueados (capa preta), propriedade de um casal idoso que morava para as bandas de Carnaxide. Posteriormente adquirimos duas cadelas dessa variedade e doutra procedência, no intuito de as testarmos dos pontos vista cognitivo e reprodutor. Treinámos somente dois “pastores suíços” e até nos esquecemos que não eram alemães! Temos aconselhado a compra de Pastores Alemães Brancos e quem os adquiriu muito nos tem agradecido. Há um só Pastor Alemão, apesar de nele haver cinco cores sólidas diferentes e combinações bicolores ainda mais numerosas. Mais do que na cor ou nas angulações, o Deutsche Schäferhund distingue-se dos demais pela sua versatilidade, marcha suspensa, capacidade de aprendizagem, facilidade na constituição binomial, raro sentido de alerta e apego aos donos. Agora que são conhecidas as maleitas produzidas pela endogamia na raça, a melhor das soluções aponta para o retorno à biodiversidade que ela ainda apresenta, o que dispensa de imediato a hibridação e implicará num certo retorno ao passado, ao concurso das outras variedades cromáticas desleixadas ou excluídas da actual selecção livres desse handicap, como é o caso do Pastor Alemão Branco, um beneficiador por excelência e que poderá vir a ter um papel nisso determinante. Ainda é possível voltar atrás e corrigir os erros do passado. Bem-hajas Nicole, não estás só: o teu combate é também nosso!

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