sábado, 2 de março de 2013

NO MUNDO QUE NOS RODEIA:COMENTÁRIO AO LIVRO “O CÉU EXISTE MESMO”

Talvez não seja este o espaço mais apropriado para tratar desta temática e é possível que o assunto nos transceda, porque é telógico e cativo a verdades metafísicas, detalhes geralmente pouco observados entre os comuns adestradores e amantes de cães. No entanto, porque foi o livro mais vendido em Portugal no ano passado (24 edições), a curiosidade levou-nos à compra de “ O Céu existe mesmo”, uma publicação da editora Lua de Papel, da autoria de Todd Burpo e Lynn Vincent  e traduzido do original inglês“ The Heaven is for Real” por Elsa T.S.Vieira. O que teria levado tantos portugueses à sua compra? Intrigados, fomos comprar o livro e deixamos aqui o nosso rude comentário, neste País onde apesar de tudo, ainda conservamos a liberdade de expressão, inclusive a de credo.
O livro conta-nos a história de uma família de confissão wesleyana norte.americana, constituída por um casal e dois filhos, o pai pastor dessa igreja e a mãe professora, ambos progenitores de uma menina e de um menino. A obra assenta sobre o relato de uma viagem que empreenderam rumo à casa de umi familiar, também aproveitada para visitar uma outra congregação muito maior e em plena expansão. Graças ao infortúnio, a narração vai recaindo maioritariamente sobre o rapazinho (Colton), a rondar os quatro anos de idade e vítima de uma apendecite nessa ocasião, que o pôs entre a vida e a morte. À descrição minuciosa dos incidentes sucede-se a surpresa: o menino revela que, durante a operação, esteve morto por três minutos e que foi levado ao céu, onde acabou por ver Deus, Jesus, o Espírito Santo, os anjos, o demónio, o seu avô e uma irmã sua sem nome, exactamente a mesma que a sua mãe fez abortar. De lá traz uma mensagem: é preciso aceitar Jesus e dar combate ao diabo. Durante o desenrolar da história, o pai não se poupa a comprovar as declarações do filho por passagens bíblicas, muito embora use nelas uma interpretação em nada exegeta e por demais entusiasta.
Nada nos leva a duvidar das visões do rapazinho, o que não implica que aceitemos como verdade a sua ascenção ao Céu, atendendo à sua idade (na fase do concreto), ao ambiente adjacente e à sugestão a que ele induz sobre gente de tenra idade. Nas crianças sujeitas a intervenções cirúrgicas é comum acontecer que sonhem com aquilo que lhes é dito antes do estado inconsciente. Um aluno nosso que foi operado à garganta e ao nariz aos treze anos, durante a intervenção sonhou com chapéus chineses, porque uma das enfermeiras lhe disse que era isso que iria ver. Segundo reza o livro, o pai orou pelo sucesso da operação e o menino “adormeceu” debaixo de apelos à Trindade e aos bons préstimos dos anjos, o que nos leva acreditar que o milagre foi forçado e forjado pela sugestão a que o rapaz foi sujeito e não por força da sua imaginação. A confusão entre as pessoas de Jesus e o avô no Céu, indicia claramente o desacerto da idade da criança face à pressão escatológica. Todos os que experimentaram momentos entre a vida e à morte, e entre nós já houve quem passasse por isso, sabem que nessa ocasião se sentem arrebatados por uma luz branca, suave e convidativa, numa palavra: agradável. No retorno à consciência é comum soltar-se um grito, a isse nos leva o apego à vida. O Colton também gritou pelo pai, o que prova que jamais saiu, mesmo que espiritualmente, da mesa de operações. Em síntese estamos diante de visões projectadas pela sugestão.
Apesar da centralidade na pessoa de Colton, 85% do livro reporta-se à figura do pai, a factos da sua vida (alguns desnecessários e até gratuitos), às suas preocupações, aspirações e interpretações, tanto da vida como das visões da criança. Este pastor é sem dúvida uma personagem controversa, digamos que de apresentação surreal diante do clero das igrejas históricas cristãs, uma vez que evidencia uma pastoral sui generis e algo confusa, uma missiologia quase inexistente e um apego a actividades que o dispersam da sua vocação, ainda que necessárias, segundo faz saber, para a sua sobrevivência e dos seus. Julgamos que ele tentou redimir-se com a publicação deste livro sensacionalista, ainda que tenha exposto o seu filho em demasia, na tentativa de divulgar a sua igreja e de alcançar novos prosélitos: quem não gostaria de conhecer o rapaz que esteve no Céu? “ O Céu existe Mesmo” é uma suma doutrinária carismática, aqui e ali com aditivos ecuménicos, uma “obra” revivalista tipicamente norte-americana.
O  livro mais vendido em Portugal em 2012 nada trouxe de novo, apenas pôs à tona, mais uma vez, o carácter messiânico dos portugueses, gente dada a milagres e que teimosamente os procura, mais chegada a aparições do que ao arrependimento, crente numa nova ordem perante a desordem que provoca. O desalento provocado pela a actual crise, sem solução imediata á vista, também tem contribuído para a compra de livros desta índole e… quando tudo parece perdido, só um milagre nos poderá salvar! Que se saiba, já somos assim desde a Idade Média, apadrinhámos os mouros fatimidas e não nos espanta que já o houvéssemos sido antes.

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