“As pombinhas da Catarina andaram de mão em mão, foram dar à Quinta Nova, ao pombal de S.João”. Ao som desta cantiga infantil fui muitas vezes embalado e adormecido, por uma avó que julgava minha e que nunca o foi. É a melodia mais antiga que recordo, já não me lembro do resto da letra, será que tinha mais estrofes? Não sei, mas ela serve perfeitamente como introdução ao nosso tema de hoje: o cão de mão-em-mão.
Apesar do assunto ser do conhecimento geral, não tem merecido a devida atenção, porque é prática corrente e comummente aceite. Estamos a falar daqueles cães que são entregues a outrem por conveniência do primeiro proprietário. As razões são as mais variadas, mas não escondem o desprezo e o desrespeito pelos animais, muito embora o bom-nome dos prevaricadores saia incólume. Esta prática é uma forma dissimulada de abandono que pode anteceder o abandono propriamente dito, apesar das garantias dadas por ocasião da transferência. Conheci um cão que teve seis donos, depois perdi-lhe o rasto, não sei se teve mais. Outro que foi abatido a tiro no dia seguinte à sua entrega e inúmeros que não tiveram um final feliz. Felizmente conheço alguns casos de sucesso, cães que melhoraram o seu estatuto e encontraram a felicidade junto dos novos proprietários.
Enquanto fui canicultor, ciclicamente, ouvia a seguinte opinião: “ Eu sou contra a venda de cães!” Agora que penso nisso, contraponho: todos os cães deveriam ser pagos! E digo isto porquê? Para se tentar travar o descarte dos animais junto dos menos afectivos e mais chegados à razão, para lhes alimentar um sentimento de perca face ao valor dado pelos cães. Talvez assim se evitasse a política de “toma lá um cão por qualquer palha”. Por outro lado, o valor exagerado dos cães de raça, que também é um sinal exterior de riqueza, tal qual um carro de luxo ou uma excelente caçadeira, tem contribuído para o demérito dos outros cães, relegando-os para a indiferença, como se de uma verdadeira praga se tratasse. Não lhe restando outro remédio, há quem ande empenhado em capá-los todos!
À parte das questões éticas ou morais, que não devem ser jogadas fora, importa esclarecer que a adaptação canina vai acontecer pela cedência forçada dos cães. Para além da problemática ligada à idade (quando mais velho for um cão, mais difícil é a sua adaptação), os dispensados irão ser confrontados com a substituição da liderança, com a mudança do grupo, com a alteração de hábitos, com a novidade das regras e com a troca do território. Um cão nesta situação irá sentir-se abandonado, objecto de expulsão, como um lobo escorraçado do seu grupo. E não o foi? Que mal fez ele ao seu deus: o facto de estar a mais? Quem o foi buscar?
A substituição da liderança não é automática, porque o novo proprietário é um estranho, não foi aceite nem escolhido pelo cão. O animal irá estudá-lo, tentar compreender o seu comportamento, mantendo-o à distância e evitando o excesso de veleidades. Enquanto isso, sofre pela ausência do dono anterior, que considera ainda o seu, vivendo na esperança de o reencontrar, porque a divisão da liderança relega-o para um lugar mais abaixo na hierarquia, coisa que não vê com bons olhos e à qual resistirá por oposição ou afastamento. O rosnar perante a aproximação, o ladrar incontido, o desprezo pela comida, o isolamento persistente e o desejo de fuga, são manifestações típicas de desencanto, posturas de sofrimento. Há cães que encetam fugas e acabam atropelados!
A resistência à nova liderança será a mesma perante o novo grupo, porque o desconhece e suspeita dele, teme as suas reacções e não entende os seus propósitos. Andará “à procura da rolha”, de um lugar no seu meio, procurando comportamentos anteriormente identificados. Se a natureza do grupo for totalmente diferente do anterior, a adaptação será penosa e demorada, baseada na desconfiança e causa de afastamento. Dividir as atenções com outros cães pode ser um “pau de dois bicos”, que tanto pode acelerar como condenar a desejada integração, só tempo o dirá. O escalonamento do líder em relação ao grupo familiar, também pode criar entraves à reinserção, já que o cão desconfia da promoção gratuita e resiste à despromoção automática.
A alteração de hábitos lançará o animal na maior confusão, sentir-se-á perdido, exactamente como os aqueles que são recambiados para os hotéis pela primeira vez. O cão é um animal de hábitos e sobrevive pela sua assimilação. A troca de horários das refeições e a sua divisão, a alteração dos pensos, a novidade do habitáculo e o modo de relacionamento, são factores descodificadores que rebentam qualquer valente, induzindo-o à tristeza e à rejeição de novos desafios. O abandono dos hábitos antigos não é instantâneo, alguns permanecerão por mais algum tempo, indícios de uma felicidade perdida, marcas de um passado ausente. O cão não tem perspectiva de futuro.
Sujeito a uma liderança imposta, inserido num grupo estranho e obrigado a novos hábitos, o cão vai ainda ser confrontado com novas regras, que desprezará, porque não aceita a autoridade que as sustenta. Ele, como alguns maus actores, confunde a ficção com a realidade, é um caso típico de indução, assume a personagem que lhe atribuímos e julga-se ser assim. Como essa investidura é cimentada pelas regras ou pela sua ausência, a adição de novas, é tomada como um atentado à sua individualidade. A troca de papéis obriga à mudança de vida, ao corte radical com o passado, que é exactamente aquilo que o cão não quer. Por causa disso, facilmente passará da desobediência à total inibição, do convívio reclamado ao afastamento sistemático.
O território de um cão é algo que lhe é muito caro, porque necessita dele para se sentir bem, ali exerce o seu domínio. Quando é obrigado à sua troca, a adaptação não esconde um sentimento de perca, o animal não compreende a razão da mudança e sente-se vulnerável, objecto de castigo e exilado em terra estranha. Acerca da importância deste assunto, vale a pena reparar nas reacções dos cães confinados nos canis terminais, alguns parecem suplicar, à voz calada: “ tirem-me daqui! “ A variação do território é um dos subsídios mais usados para a reeducação dos cães dominantes, quando se pretende aumentar a submissão, porque a novidade propicia a dependência. Fazer isto a um submisso é como depenar um frango em água a ferver.
Quando penso nos cães de mão-em-mão, sempre me assola a seguinte questão: Se o cão vai para melhor, porque se encobre a acção? Sentir-se-á o ex-dono culpado? É bom que se sinta, para que não repita a “proeza”, porque traiu um amigo e votou-o ao sofrimento. Poucos, arrependidos do seu acto, vão tentar reaver os cães, e para espanto seu, descobrem que eles já partiram para outras mãos. Será que estão vivos?
Apesar de denunciarmos a situação, como é nossa obrigação, estamos aqui para ajudar na integração dos cães, auxiliando os novos proprietários na execução do seu compromisso, suavizando o sofrimento animal e apostando na sua rápida reinserção, para que o novo lar seja bem-vindo e o antigo o mais rapidamente esquecido. Podem contar connosco.
Apesar do assunto ser do conhecimento geral, não tem merecido a devida atenção, porque é prática corrente e comummente aceite. Estamos a falar daqueles cães que são entregues a outrem por conveniência do primeiro proprietário. As razões são as mais variadas, mas não escondem o desprezo e o desrespeito pelos animais, muito embora o bom-nome dos prevaricadores saia incólume. Esta prática é uma forma dissimulada de abandono que pode anteceder o abandono propriamente dito, apesar das garantias dadas por ocasião da transferência. Conheci um cão que teve seis donos, depois perdi-lhe o rasto, não sei se teve mais. Outro que foi abatido a tiro no dia seguinte à sua entrega e inúmeros que não tiveram um final feliz. Felizmente conheço alguns casos de sucesso, cães que melhoraram o seu estatuto e encontraram a felicidade junto dos novos proprietários.
Enquanto fui canicultor, ciclicamente, ouvia a seguinte opinião: “ Eu sou contra a venda de cães!” Agora que penso nisso, contraponho: todos os cães deveriam ser pagos! E digo isto porquê? Para se tentar travar o descarte dos animais junto dos menos afectivos e mais chegados à razão, para lhes alimentar um sentimento de perca face ao valor dado pelos cães. Talvez assim se evitasse a política de “toma lá um cão por qualquer palha”. Por outro lado, o valor exagerado dos cães de raça, que também é um sinal exterior de riqueza, tal qual um carro de luxo ou uma excelente caçadeira, tem contribuído para o demérito dos outros cães, relegando-os para a indiferença, como se de uma verdadeira praga se tratasse. Não lhe restando outro remédio, há quem ande empenhado em capá-los todos!
À parte das questões éticas ou morais, que não devem ser jogadas fora, importa esclarecer que a adaptação canina vai acontecer pela cedência forçada dos cães. Para além da problemática ligada à idade (quando mais velho for um cão, mais difícil é a sua adaptação), os dispensados irão ser confrontados com a substituição da liderança, com a mudança do grupo, com a alteração de hábitos, com a novidade das regras e com a troca do território. Um cão nesta situação irá sentir-se abandonado, objecto de expulsão, como um lobo escorraçado do seu grupo. E não o foi? Que mal fez ele ao seu deus: o facto de estar a mais? Quem o foi buscar?
A substituição da liderança não é automática, porque o novo proprietário é um estranho, não foi aceite nem escolhido pelo cão. O animal irá estudá-lo, tentar compreender o seu comportamento, mantendo-o à distância e evitando o excesso de veleidades. Enquanto isso, sofre pela ausência do dono anterior, que considera ainda o seu, vivendo na esperança de o reencontrar, porque a divisão da liderança relega-o para um lugar mais abaixo na hierarquia, coisa que não vê com bons olhos e à qual resistirá por oposição ou afastamento. O rosnar perante a aproximação, o ladrar incontido, o desprezo pela comida, o isolamento persistente e o desejo de fuga, são manifestações típicas de desencanto, posturas de sofrimento. Há cães que encetam fugas e acabam atropelados!
A resistência à nova liderança será a mesma perante o novo grupo, porque o desconhece e suspeita dele, teme as suas reacções e não entende os seus propósitos. Andará “à procura da rolha”, de um lugar no seu meio, procurando comportamentos anteriormente identificados. Se a natureza do grupo for totalmente diferente do anterior, a adaptação será penosa e demorada, baseada na desconfiança e causa de afastamento. Dividir as atenções com outros cães pode ser um “pau de dois bicos”, que tanto pode acelerar como condenar a desejada integração, só tempo o dirá. O escalonamento do líder em relação ao grupo familiar, também pode criar entraves à reinserção, já que o cão desconfia da promoção gratuita e resiste à despromoção automática.
A alteração de hábitos lançará o animal na maior confusão, sentir-se-á perdido, exactamente como os aqueles que são recambiados para os hotéis pela primeira vez. O cão é um animal de hábitos e sobrevive pela sua assimilação. A troca de horários das refeições e a sua divisão, a alteração dos pensos, a novidade do habitáculo e o modo de relacionamento, são factores descodificadores que rebentam qualquer valente, induzindo-o à tristeza e à rejeição de novos desafios. O abandono dos hábitos antigos não é instantâneo, alguns permanecerão por mais algum tempo, indícios de uma felicidade perdida, marcas de um passado ausente. O cão não tem perspectiva de futuro.
Sujeito a uma liderança imposta, inserido num grupo estranho e obrigado a novos hábitos, o cão vai ainda ser confrontado com novas regras, que desprezará, porque não aceita a autoridade que as sustenta. Ele, como alguns maus actores, confunde a ficção com a realidade, é um caso típico de indução, assume a personagem que lhe atribuímos e julga-se ser assim. Como essa investidura é cimentada pelas regras ou pela sua ausência, a adição de novas, é tomada como um atentado à sua individualidade. A troca de papéis obriga à mudança de vida, ao corte radical com o passado, que é exactamente aquilo que o cão não quer. Por causa disso, facilmente passará da desobediência à total inibição, do convívio reclamado ao afastamento sistemático.
O território de um cão é algo que lhe é muito caro, porque necessita dele para se sentir bem, ali exerce o seu domínio. Quando é obrigado à sua troca, a adaptação não esconde um sentimento de perca, o animal não compreende a razão da mudança e sente-se vulnerável, objecto de castigo e exilado em terra estranha. Acerca da importância deste assunto, vale a pena reparar nas reacções dos cães confinados nos canis terminais, alguns parecem suplicar, à voz calada: “ tirem-me daqui! “ A variação do território é um dos subsídios mais usados para a reeducação dos cães dominantes, quando se pretende aumentar a submissão, porque a novidade propicia a dependência. Fazer isto a um submisso é como depenar um frango em água a ferver.
Quando penso nos cães de mão-em-mão, sempre me assola a seguinte questão: Se o cão vai para melhor, porque se encobre a acção? Sentir-se-á o ex-dono culpado? É bom que se sinta, para que não repita a “proeza”, porque traiu um amigo e votou-o ao sofrimento. Poucos, arrependidos do seu acto, vão tentar reaver os cães, e para espanto seu, descobrem que eles já partiram para outras mãos. Será que estão vivos?
Apesar de denunciarmos a situação, como é nossa obrigação, estamos aqui para ajudar na integração dos cães, auxiliando os novos proprietários na execução do seu compromisso, suavizando o sofrimento animal e apostando na sua rápida reinserção, para que o novo lar seja bem-vindo e o antigo o mais rapidamente esquecido. Podem contar connosco.
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