segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Os Cães dos Saloios

NOTA INTRODUTÓRIA

As três histórias seguintes constam de um volume dedicado “Aos Cães dos Saloios”, a publicar à posteriori, naquilo que essa relação tem de diferente e único. Como o modo de tratar os cães não é uniforme em todo o País, dominado durante séculos por uma economia de sobrevivência e povoado por diferentes etnias, predominou o uso canino para os mais diversos fins, em detrimento do seu bem-estar. Os saloios herdaram o gosto de caçar dos seus senhores medievais, enquanto matilheiros e pastores. Os cães têm sido seus companheiros de aventuras e desventuras, reflexo do seu êxito ou insucesso, numa relação muito próxima e adornada por considerações antropomórficas. Eles “entendem-se” uns aos outros!


O CÃO DO “SAIAS” SERRALHEIRO

O Saias era um serralheiro de cinquenta anos, corado de cara, leve de ossos e de olhos pequenos. De altura era meão, tinha bom trato e andava sempre a sorrir. Optou pelo ofício para fugir às lides do campo, com custo tirou a 4ª classe e permaneceu saloio de raiz. Vivia num brejo virado a oeste, numa encosta ventosa e solarenga, perto de uma vila e longe da sua confusão. Poucos sabiam o seu nome verdadeiro, toda a gente o tratava por Saias. A alcunha ganhou-a num baile, por força da embriaguez, quando um guarda o convidou a sair: “ Saia, se faz favor!”. A narrativa do sucedido e a manifestação do seu desgosto, valeram-lhe o nome que o acompanhou por toda a vida. Como serralheiro era uma desgraça, a si mesmo se chamava desenrascado, dele era frase gasta: “ Porrada daqui, porrada dali, e o portão fica à esquadria”. Dizia-se caçador, mas em abono da verdade, caçava tão mal quanto soldava. Como a teimosia nunca lhe faltava, e porque se sentia outro de arma à tiracolo, decidiu arranjar um cão a preceito. Deu quinhentos mil reis por um podengo e jurou dar nas vistas.

O cão era vivo e astuto, ganhou o nome de “Purdido” para se acostumar à voz “ busca o que está perdido”. Comprou-o para dar caça aos coelhos, para os detectar, e ir apanhar os que se encontravam feridos. Como a pontaria do caçador não era famosa, os coelhos podiam descansar e o cão perdia-se pelos montes. Quando alguém lhe perguntava pela caça, a resposta era sempre a mesma: “ O Purdido retraça-ma toda, até parece que não lhe dou de comer!”. E na verdade parecia, porque quando se soltava, dava sumiço aos coelhos e galinhas dos vizinhos. À conta disso, o serralheiro várias vezes andou “ à unha”, muito embora os prejuízos, corressem sempre por conta da casa. Pouco a pouco, começou a fartar-se do animal, já nem aguentava ouvir os pirralhos, a troça que faziam ao passar o seu portão: “ - Ò Saias prende o cão!”. Dar-lhe um tiro, não era capaz; se o desse a outro, passava vergonha; mandá-lo para o Canil da Câmara, também não queria. Ele gostava do animal, mas a situação não estava famosa, o problema tinha que ser resolvido. Alheio a isto tudo, o Purdido saltava-lhe para cima e lambia-lhe as mãos.

Naquele tempo, e não foi há tantos anos assim, os saloios trocavam porcos com os alentejanos, o toucinho dado pela bolota era muito procurado e os outros queriam febra. O negócio interessava a ambas as partes e ciclicamente, os camiões faziam-se à estrada, carregados de “recos”1 e soltando aroma pelas encostas. Foi aí que o Saias se lembrou, tinha encontrado a solução para o problema. Foi falar com um dos motoristas, o Zé da Glóira, pedir-lhe que levasse o cão em segredo, e o largasse na outra banda 2. Às cinco da manhã, depois de olhar para todos os lados, pôs o cão dentro de uma saca e colocou-o dentro da cabina do camião. Depois de fechar a porta, virou-se para o motorista e pôs o dedo à frente do nariz, dizendo: “ o segredo é a alma do negócio”. Sim, porque ainda teve que pagar pelo frete!

Há medida que os dias iam passando, o serralheiro “roía-se por dentro”, sentia a falta do bicho e nem podia olhar para a barraca. Para se consolar, lá ia dizendo para si “ encontraste um novo dono e estás melhor do que aqui”. Mas o remédio durava pouco, a saudade sufocava, o apetite estava de férias e a cama andava sempre às voltas. Ai como ele gostava de voltar a ouvir os pirralhos! O pátio parecia vazio e as horas não ter fim. Quase como em homenagem, colocava as poucas sobras à disposição dos cães vadios. “Já lá iam quinze dias, e parecia que fora ontem”. Quando lhe perguntavam pelo cão, não respondia, chamavam-lhe de “variado” e ele mandava-os para aquela parte.

Ao cair da noitinha, depois de haver jogado dominó na taberna, entrou trôpego em casa, sentou-se numa cadeira e deixou a porta aberta. Apoiou a cabeça nas mãos, deixou-a cair sobre a mesa e fechou os olhos. De repente, ouve um estalar de ossos, abre os olhos e nem queria acreditar: “ será que estou bêbado?”. Mas não, era o Purdido quem ali estava, dentro da barraca, a comer uma galinha, sabe lá de quem! O Saias correu para o cão e sentiu-lhe as costelas, pediu-lhe perdão e agradeceu à Providência. Depois da benzedura soltou: “ À Purdido dum corno, que de burro n’a tens nada!”.

Depois do feito, a aldeia agradou-se do cão e muitos passaram a levar-lhe comida. Morreu de velho e o Saias não teve mais nenhum!
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1 Nome popular atribuído aos porcos. 2 Designação dada às localidades da margem sul do Tejo.


O DESAPARECIMENTO DA CADELA DA MADAME

Os saloios são na generalidade gente hospitaleira, que recebe quem chega de acordo com aquilo que vê: “ tudo tens, tudo vales; nada tens, nada vales!” E como para eles estrangeiro é sinal de riqueza, todas as forasteiras recebem o título de “Madames”. Não sabemos onde desenterraram isso, se das Invasões Francesas ou do seu contributo para as “criadas de servir”. De qualquer modo, o tratamento não é desinteressado e a honraria pressupõe algum tipo de lucro.

E quando menos se esperava, chegou a determinada aldeia uma Madame. Era uma norte-americana, na força da idade, que tinha sido educada num colégio suíço e que adquiriu, pelos proventos do pai, uma quinta e vários lotes de terreno. Rapidamente aprendeu a falar português e a todos cativou pela sua simpatia. Com ela chegou também o seu companheiro, um francês quarentão, de poucas falas, dado ao copo e dito “caçador de talentos”. Este enfant de la patrie , oficialmente, dedicava-se a gerir a carreira de tenistas femininas vindas do Leste, na sua maioria russas, ucranianas, moldavas e romenas. Nenhuma delas alcançou o Top 10, mas algumas satisfizeram, na perfeição, os caprichos mais íntimos do seu empresário. E como o viver naquela casa se tornou insustentável, para suavizar a sua existência e encontrar uma confidente, a Madame adquiriu uma cadela Labrador, contra a vontade do seu companheiro que a tratava a pontapé, quer se encontrasse ébrio ou não.

Um dia, fustigada pelas constantes sevícias, a cadela fugiu de casa e nunca mais apareceu. A dona tudo fez para a encontrar, até contratou uma vidente, que munida de um pêndulo, tentava, guiada pelos espíritos, descobrir o paradeiro do animal sobre um mapa da região. Os espíritos pagaram-se bem, mas a cadela continuava sem dar sinal de vida. Como a bicha havia sido educada numa escola canina, onde teve bom aproveitamento, no meio do desespero e dois meses depois, a dona solicitou os serviços do Director da Escola, solicitando-lhe o emprego de cães pisteiros para a tarefa. O homem resistiu ao encargo, argumentando que os seus cães eram para a procura de pessoas e não de animais, que indevidamente os estava a ensinar a caçar e que o tempo decorrido já havia apagado todas as pistas. Mas perante tal pranto e a insistência, viu-se obrigado a concordar, pondo-se em marcha com três cães, na esperança de não estragar o melhor, usando os outros dois no seu lugar, o que não veio a acontecer.

E o bom do Brusco, assim se chamava o melhor pisteiro, depois de apanhar o rasto, sempre parava junto a uma oficina de mecânica automóvel. Fazendo fé no “nariz” do cão, o Director da Escola instava com o mecânico: “De certeza que o Sr. não viu por aqui uma cadela lavradora preta?” E como já eram decorridas três vezes e a pergunta era sempre a mesma, o mecânico incomodado retorquiu severamente: “ Você julga que eu não tenho mais que fazer, já lhe disse que não. Eu quero que todos os cães se explodam!” E assim se terminaram as buscas. Contudo uma dúvida pairava na cabeça do Director da Escola "O Brusco nunca me enganou, será que está a ficar velho e zonzo?"

Passados dez meses sobre o ocorrido, o Mateus chega à Escola, um ex-aluno divertido e esforçado, condutor de um rottweiler. Vinha feliz e trazia uma novidade, de tão contente que estava, quis dividir a sua felicidade: “ Ò Sr. João, você nem vai acreditar naquilo que eu lhe vou dizer, mas a verdade é que tenho agora uma lavradora preta cinco estrelas, ele faz tudo e nunca foi ensinada, é um espectáculo! Eu até a levei à Escola do Artur, e para espanto meu, ela também fez as escadas de quatro metros e meio!”

- Onde é que descobriste essa cadela? Perguntou o Director da Escola.
- A cadela era duma francesa maluca. O marido dela dava porrada no animal e ele foi parar a uma oficina de um amigo meu. Parece que andou por lá um gajo com uns cães, mas não teve hipótese, o mecânico mandou-o à fava! Respondeu o Mateus.

- Esse gajo que por lá andou, fui eu! Não te importas de trazer a cadela para que eu a veja? Solicitou o Director da Escola.

A cadela veio e o mistério ficou resolvido: era a mesma. O Mateus, sabendo do interesse da dona legítima, quis livrar-se do animal, para evitar maiores complicações e dar paz à sua consciência. Como o Francês ainda vivia com a dona, não resultando daí qualquer benefício para o animal, optou-se, depois da concordância da proprietária, por entregar a cadela a uma companhia cinotécnica policial, onde está até à presente data. Afinal o Brusco tinha razão, os homens é que mentem! Naquele dia, para além de um pedido formal de desculpas, o pisteiro recebeu uma suculenta iguaria do seu agrado.


TÊM VISTO A JINHA? Falar de cães é falar de homens, dos laços afectivos que se estabelecem a partir da dependência animal, da cegueira canina em seguir o seu líder e do provável fim comum. Poucas coisas são mais personalizadas que o nosso cão, alcançando-se, por força do hábito, uma transferência física e anímica do homem para o animal. Esta interacção distancia o cão do lobo, aumenta a nossa responsabilidade e engrossa o nosso caderno de encargos. A julgar pelo número de cães abandonados, grande número de pessoas ignora estes factos, causando problemas e vítimas, relegando para o colectivo, a solução que não encontrou e o preço das suas opções. Mas vamos à história.

O Ti Américo para os amigos, o Sr. Américo para quem servia, era um homem de sessenta anos, de cara estreita e barba mal semeada, pequeno, amarelado de tez e de aspecto pouco robusto. Já ninguém se lembra como chegou àquela terra, donde veio e o que fazia, ninguém lhe conheceu família, nem mesmo à hora da sua partida. Ocupava a vida a fazer fretes, valendo-se de um carro de mão feito de madeira, comprido e com uma roda do mesmo material, revestida a tira de pneu. Era frequente encontrá-lo entre a paragem das camionetas e a estação dos comboios, onde ganhava a vida e carregava os embrulhos para os clientes. O pequeno carro havia-lhe moldado a silhueta, mesmo quando não o empurrava, e por mais que desse aos braços, sempre andava curvado. Vivia sozinho numa barraca junto à linha do comboio, tratava de tudo o que era seu e deitava-se com as galinhas. Dificilmente ia “beber um copo”, a menos que alguém lho pagasse. De qualquer modo, entrava mudo e saía calado, não gostava de falar de si, e muito menos dos outros. Parecia ter sempre que fazer.

Como o dinheiro era pouco, aceitava sem melindre sapatos e roupas usadas. Não se escusava a um prato de sopa e rabiscava qualquer tipo de alimento. Quando havia feira na localidade, ele esperava pelo seu encerramento, deitando mão à fruta e aos legumes desprezados. Nesses dias, o pequeno fato de macaco azul vinha a abarrotar, o carro vinha carregado e um assobio ecoava na Praça. Muita daquela comida tinha que durar uma semana, exactamente até à próxima Feira. Numa dessas incursões, junto ao pneu de um tractor, viu uma saca de serapilheira atada. Temendo que estivesse esquecida e que o seu proprietário voltasse, resistia em tocar-lhe, pois não queria passar por ladrão. Estranhamente, a saca mexeu-se e de lá dentro saiu um ganido. Depois de olhar para todas as direcções, não resistiu e abriu a saca. Lá dentro estavam três cachorrinhos, dois mortos e uma cadelinha viva. Disposto a criá-la, levou-a para casa, indo todo o caminho a pensar no nome que lhe iria dar. Ficou Jinha.

A Jinha era uma cadela mestiça, provavelmente de quatro olhos1 com podengo, baixinha mas vivaça, negra e de pelo cerdoso. Rapidamente aprendeu a escoltar o carro, a acompanhar o seu dono para todo o lado. Quando o carro estava carregado ou o sol era forte, deitava-se debaixo dele; quando estava vazio, adormecia dentro da caixa. E que ninguém pensasse em tocar nalguma coisa, aí é que era o diabo! Era doida por sopa de tutano, o que nem sempre comia, porque a procura era muita e o magarefe tinha de cativar a clientela. Mas de vez em quando lá calhava. Felizmente que comia de tudo, desde batatas a couves, de feijões a azeitonas. Partilhava a mesma mesa e a mesma cama com o dono – tudo lhes era comum.

Certo dia, os despachos começaram a amontoar-se, e do Américo nem sinal! O homem da Agência ia perguntando a todos por ele, mas ninguém sabia onde estava, todos diziam que não o tinham visto. “ Provavelmente está a curti-la. Amanhã logo virá! “ Dizia o agente para se conformar.

Já haviam passado dois dias e do Américo nem notícia! Houve quem alvitrasse que fora à Sede do Concelho, que finalmente fosse visitar algum filho ou parente. Sim, até porque a Jinha não era vista, e onde estivesse um, estaria o outro.

Na taberna mais próxima da barraca jogava-se às cartas, à lerpa, e como o jogo era a dinheiro, as portas estavam trancadas. O estratagema era válido para os guardas e para as mulheres dos jogadores, evitando multas e publicidade desnecessária. Quando tudo parecia correr bem, sente-se a porta a abanar, alguém estava do lado de fora! As cartas voaram para dentro das tulhas, os jogadores esconderam-se por onde puderam e o merceeiro encomendou-se à Virgem. Fingindo que tinha sido acordado, perguntou: “ Quem é que está aí. Não são horas para acordar ninguém. Isto aqui não é nenhuma farmácia!”

Com a porta abanar e não obtendo resposta, também porque a hora já ia alta, o merceeiro avançou para a porta munido do “ tira-temas”2. Abriu-a com cuidado, com a tranca a ampará-la por dentro, espreitando receoso. Para espanto seu, viu somente a Jinha, que num movimento de vai-vem, não parava de ladrar. “ Ah cadela dum bode mocho, qe’que te deu para ma atazanares?”, dizia ele.

E porque a cadela não se calava, espelhando aflição, decidiram segui-la. Ela levou-os até à barraca do dono, onde sobre uma esteira, ele dormia para sempre, junto a um candeeiro sem petróleo e coberto por sacas de foskamónio. O homem foi sepultado e desconhece-se quem pagou o enterro. A cadela permaneceu durante dias ao redor da barraca, ao lado do carro e de olhos postos no horizonte. Ocasionalmente vinha à localidade para comer, até que um dia desapareceu.

Perante o ocorrido, os vizinhos perguntavam uns aos outros: “ Têm visto a Jinha? “

A Jinha tinha sido vista por quem não devia, pelos empregados camarários da “carroça”3. Não ofereceu resistência, foi um serviço limpo. Soube-se que morreu por injecção letal, porque dentro do prazo legal, ninguém a adoptou ou reclamou.
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1 Designação saloia para cão lanudo, bicolor, de máscara cerrada com uma mancha mais clara sobre cada olho. 2 Nome atribuído a um porrete. Na zona saloia usa-se o termo “ cachaporro”. 3 Viatura automóvel destinada à captura e transporte dos cães vadios. O nome é advindo do veículo usado anteriormente. Geralmente transportava quatro funcionários munidos de redes e arpões. Os cães eram capturados a partir do cerco e não raramente eram usados paus e pedras. O espectáculo era degradante.

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