As escolas caninas lembram as aldeias do interior, onde
a convivência apertada leva a uma relação mais próxima entre os indivíduos,
sendo cada um identificado por uma alcunha advinda de uma característica
pessoal, chegando ao ponto de se desconhecer por completo o nome verdadeiro das
pessoas, aquele que se encontra no Bilhete de Identidade e que consta no
Registo Civil. Este é também o caso do protagonista desta história real, um
moço voluntarioso, eléctrico, alegre, carente de aceitação, crédulo, destemido,
competitivo e desafiador, orundo de Aruil, freguesia de Almargem do Bispo,
concelho de Sintra e distrito de Lisboa, pequena terra escondida na serra,
pouco industrial, agrícola, aqui e ali com uma oficina por perto e adornada por
meia dúzia de faustosas habitações, resultantes na sua maioria do negócio das
hortaliças.
O homem
foi rebaptizado de “Sandokan” mais pela alma do que pelo corpo, num misto de
troça e admiração, porque era franzino e praticava uma modalidade de luta,
sendo comum vê-lo a correr a pé entre a Amadora e Odivelas, descalço e dar
pontapés em pilares de cimento, a mando do seu treinador, um “entendido” que o
haveria de fazer campeão europeu. Num dos combates para o título, defrontou o
campeão e apanhou “um enxerto”, viu andorinhas fora de estação e regressou a
casa a comer por uma palhinha, mas mesmo assim não desistiu, porque a pequenez
do corpo não lhe aprisionava a valentia (ou a loucura). Já antes do Conde de
Lippe se sabia que os saloios são melhores para romper do que para defender,
para o último caso temos cá os “galegos”, que não abrem mão do que é seu e
vendem cara a pele ao diabo.
Os diabos
eram os seus dois mestiços de Rottweiler com Fila de S. Miguel, umas piranhas
que “distribuiam fruta à esquerda e à direita” num abrir e fechar de olhos,
tropa que a muitos obrigava a andar com “pézinhos de lã” (merecidamente ficaram
para a história com esse nome). Os bichos haviam nascido de um cruzamento acidental entre um cão de
hotel e uma Fila residente, que longe de se fazer rogada, num ápice, se
enamorou dum Rottweiler que com ela se cruzou. Não nos lembramos do nome dos
bichos, será que se chamavam “Punch” e “Uppercut”? Mas de uma coisa jamais nos
esqueceremos, quando o rapaz descia as escadas de acesso à pista, todos os cães
se alvoraçavam e ficavam prontos para lhe morder, mesmo os mais tímidos e
mansos. Escusado será dizer que foi investido como figurante de eleição, papel
que adorava e ao qual emprestava subsídios nunca vistos.
Como bom
saloio, inquieto e belicoso, filho de um deus que D. Afonso Henriques baniu,
apesar de adepto da pinga, da mão de vaca, dos torresmos, do chouriço assado e
do terço pendurado na cabine da camioneta, cuja cabeça nunca pára, o engenho
não lhe falta e o toca pra diante, decidiu mais tarde adquirir um Pitbull,
animal que criou irreprensívelmente e com muito carinho, no intuito de fazer
dele um lutador de ringue igual ao dono. A partir daí nunca mais tivemos notícias
do Sandokan, somente que o Pitbull se finou no primeiro combate. Talvez o ridículo,
o desgosto, a vergonha e o “levar nas orelhas”, o tenham impedido de
reaparecer. Hoje o nosso herói, se for vivo (esperamos que seja), terá perto de
40 anos e já terá dado ao mundo descendência. Para a história fica um moço
endiabrado, um “peso Mosca” que se constitui na melhor das presas para os cães.
Não terá o fado uma origem saloia (fado vadio), ainda que suavizada por alguns
acordes hebraicos? Há quem diga que sim e no Médio-Oriente há muita gente que
ainda se degusta com ele.
E porque
falámos de etnias, ainda que a traços largos, vale a pena rever dois filmes da
cinemateca nacional sobre essa temática: Aldeia
da Roupa Branca (1938) e Ala-Arriba! (1942), respectivamente de
Chianca de Garcia e de Leitão de Barros, sendo os diálogos e o argumento do
primeiro da autoria de Ramada Curto e do próprio Chianca de Garcia, e do
segundo de Alfredo Cortez, enquanto testemunhos do pensar e viver das
diferentes gentes de Portugal. Vale a pena rever com atenção, porque estas
obras têm muito para ensinar!
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