sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O SANDOKAN, OS DIABOS E O PITBULL

As escolas caninas lembram as aldeias do interior, onde a convivência apertada leva a uma relação mais próxima entre os indivíduos, sendo cada um identificado por uma alcunha advinda de uma característica pessoal, chegando ao ponto de se desconhecer por completo o nome verdadeiro das pessoas, aquele que se encontra no Bilhete de Identidade e que consta no Registo Civil. Este é também o caso do protagonista desta história real, um moço voluntarioso, eléctrico, alegre, carente de aceitação, crédulo, destemido, competitivo e desafiador, orundo de Aruil, freguesia de Almargem do Bispo, concelho de Sintra e distrito de Lisboa, pequena terra escondida na serra, pouco industrial, agrícola, aqui e ali com uma oficina por perto e adornada por meia dúzia de faustosas habitações, resultantes na sua maioria do negócio das hortaliças.
O homem foi rebaptizado de “Sandokan” mais pela alma do que pelo corpo, num misto de troça e admiração, porque era franzino e praticava uma modalidade de luta, sendo comum vê-lo a correr a pé entre a Amadora e Odivelas, descalço e dar pontapés em pilares de cimento, a mando do seu treinador, um “entendido” que o haveria de fazer campeão europeu. Num dos combates para o título, defrontou o campeão e apanhou “um enxerto”, viu andorinhas fora de estação e regressou a casa a comer por uma palhinha, mas mesmo assim não desistiu, porque a pequenez do corpo não lhe aprisionava a valentia (ou a loucura). Já antes do Conde de Lippe se sabia que os saloios são melhores para romper do que para defender, para o último caso temos cá os “galegos”, que não abrem mão do que é seu e vendem cara a pele ao diabo.
Os diabos eram os seus dois mestiços de Rottweiler com Fila de S. Miguel, umas piranhas que “distribuiam fruta à esquerda e à direita” num abrir e fechar de olhos, tropa que a muitos obrigava a andar com “pézinhos de lã” (merecidamente ficaram para a história com esse nome). Os bichos haviam nascido  de um cruzamento acidental entre um cão de hotel e uma Fila residente, que longe de se fazer rogada, num ápice, se enamorou dum Rottweiler que com ela se cruzou. Não nos lembramos do nome dos bichos, será que se chamavam “Punch” e “Uppercut”? Mas de uma coisa jamais nos esqueceremos, quando o rapaz descia as escadas de acesso à pista, todos os cães se alvoraçavam e ficavam prontos para lhe morder, mesmo os mais tímidos e mansos. Escusado será dizer que foi investido como figurante de eleição, papel que adorava e ao qual emprestava subsídios nunca vistos.
Como bom saloio, inquieto e belicoso, filho de um deus que D. Afonso Henriques baniu, apesar de adepto da pinga, da mão de vaca, dos torresmos, do chouriço assado e do terço pendurado na cabine da camioneta, cuja cabeça nunca pára, o engenho não lhe falta e o toca pra diante, decidiu mais tarde adquirir um Pitbull, animal que criou irreprensívelmente e com muito carinho, no intuito de fazer dele um lutador de ringue igual ao dono. A partir daí nunca mais tivemos notícias do Sandokan, somente que o Pitbull se finou no primeiro combate. Talvez o ridículo, o desgosto, a vergonha e o “levar nas orelhas”, o tenham impedido de reaparecer. Hoje o nosso herói, se for vivo (esperamos que seja), terá perto de 40 anos e já terá dado ao mundo descendência. Para a história fica um moço endiabrado, um “peso Mosca” que se constitui na melhor das presas para os cães. Não terá o fado uma origem saloia (fado vadio), ainda que suavizada por alguns acordes hebraicos? Há quem diga que sim e no Médio-Oriente há muita gente que ainda se degusta com ele.
E porque falámos de etnias, ainda que a traços largos, vale a pena rever dois filmes da cinemateca nacional sobre essa temática: Aldeia da Roupa Branca (1938) e Ala-Arriba! (1942), respectivamente de Chianca de Garcia e de Leitão de Barros, sendo os diálogos e o argumento do primeiro da autoria de Ramada Curto e do próprio Chianca de Garcia, e do segundo de Alfredo Cortez, enquanto testemunhos do pensar e viver das diferentes gentes de Portugal. Vale a pena rever com atenção, porque estas obras têm muito para ensinar!

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