quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O FRANCÊS, A UCRANIANA E O ROTTWEILER

Certo cidadão francês abastado, bom homem e excelente anfitrião, de proventos ligados à exploração de combustíveis fosséis e daí aumentados, residente em Portugal e casado com uma empreendedora senhora lusa, residente numa zona nobre lá para a Linha, decidiu adquirir um Rottweiler para sua segurança, dos seus e da propriedade onde habitavam. O cachorro depressa se transformou num robusto e valente cão, sendo criado por uma ucraniana empregada da família, com a qual dividia a maior parte do tempo e a quem obedecia sem reservas, pronta e decididamente. Os seus donos, assolados pelos seus múltiplos afazeres e obrigações sociais, apenas conviviam com ele ao pequeno almoço (altura em que o soltavam para vir até cozinha) e por vezes ao final da tarde, fora isso, apenas lhe acenavam para o canil e desejavam-lhe um dia feliz.
Com o passar do tempo, “inexplicavelmente”, o cão começou a portar-se mal aos pequenos-almoços, primeiro rosnando e depois abocanhando os seus companheiros de refeição, o que muito intimidou os donos e os levou à procura de auxílio. Sem saber se tinha condições para tal e ignorando por completo a necessidade de liderança que o cão apresentava, o bom do francês meteu os pés ao caminho e optou por treiná-lo, debaixo de medo e sem o contrariar, porque os antecedentes não eram bons e não queria ver agravado o seu futuro, fazendo jus ao que se diz: “que quem o tem, tem medo”.
O cão aprendeu a um ritmo vertiginoso e como era um animal nobre nunca apresentou problemas de sociabilização. A instalação das figuras de imobilização constantes do currículo clássico de obediência foi muito fácil e o animal demonstrou uma disponibilidade física e atlética notáveis. Aqui e ali, sentia-se que o Rottweiler dava mais, apesar de o seu dono lhe suplicar as ordens, evoluir de olhos fechados e de se entregar a todos os santinhos, postura que negava mas que era denunciada pelo engasgo da voz, fragilidade nas ajudas e pelo esgueirar do corpo. Tantas e tantas vezes foi alertado para a precaridade da sua liderança, mímica e prestação.
Se os conselhos e os subsídios de ensino de nada lhe valeram, muito menos lhe valeu a devoção. Certo dia, que já se adivinhava, muito embora não se soubesse qual a hora e o local exactos, durante um exercício e perante a frágil insistência do dono, o cão virou-se a ele e remeteu-o para tratamento hospitalar. Depois disto ainda se tentou educar o cão por um profissional, já que o animal continuava a obedecer plenamente à empregada, hipótese que bem cedo foi abandonada porque o Rottweiler passou a dispensável. Decididos a despachá-lo por qualquer preço (a dá-lo a quem o quisesse), os seus proprietários optaram por colocá-lo num hotel canino à espera de um novo dono.
Como se calcula, não seriam muitos os candidatos a tal encargo e o animal parecia condenado ao pior dos fins, ao inevitável. Afortunadamente isso não aconteceu e o cão acabou nas mãos de um segurança que muito precisava dele para melhor desempenhar o seu serviço. Este relato é verídico e carrega várias lições. A primeira é: quem não tem tempo para cães não deve desperdiçá-lo a adquiri-los, a segunda aponta para a relação óptima entre o tratamento e o treino, surgindo o adestramento como resultado dos cuidados anteriores. Assim, quem deveria ter treinado o cão era a criada ucraniana. Infelizmente ela estava contratada para outros serviços e não lhe foi permitido abandoná-los. Gente medrosa não deve procurar cães valentes, porque o ditote “quem tem medo compra um cão” é falso e quando levado à letra, pode levar a consequências muito desagradáveis. À parte disto, nestas situações manda o bom-senso e nenhum adestrador deverá aceitar os trabalhos de um binómio com estas características, mesmo que os donos se digam capazes, a bem da sua salvaguarda e do melhor aproveitamento dos cães (é para isto que serve o regime interno e o treino efectuado por terceiros), até porque sempre será mais fácil ludibriar cães do que robustecer aqueles que se encontram ludibriados (os donos).

Sem comentários:

Enviar um comentário