Certo
cidadão francês abastado, bom homem e excelente anfitrião, de proventos ligados
à exploração de combustíveis fosséis e daí aumentados, residente em Portugal e
casado com uma empreendedora senhora lusa, residente numa zona nobre lá para a
Linha, decidiu adquirir um Rottweiler para sua segurança, dos seus e da
propriedade onde habitavam. O cachorro depressa se transformou num robusto e
valente cão, sendo criado por uma ucraniana empregada da família, com a qual
dividia a maior parte do tempo e a quem obedecia sem reservas, pronta e
decididamente. Os seus donos, assolados pelos seus múltiplos afazeres e
obrigações sociais, apenas conviviam com ele ao pequeno almoço (altura em que o
soltavam para vir até cozinha) e por vezes ao final da tarde, fora isso, apenas
lhe acenavam para o canil e desejavam-lhe um dia feliz.
Com o passar do tempo, “inexplicavelmente”, o cão
começou a portar-se mal aos pequenos-almoços, primeiro rosnando e depois
abocanhando os seus companheiros de refeição, o que muito intimidou os donos e
os levou à procura de auxílio. Sem saber se tinha condições para tal e
ignorando por completo a necessidade de liderança que o cão apresentava, o bom
do francês meteu os pés ao caminho e optou por treiná-lo, debaixo de medo e sem
o contrariar, porque os antecedentes não eram bons e não queria ver agravado o
seu futuro, fazendo jus ao que se diz: “que quem o tem, tem medo”.
O cão
aprendeu a um ritmo vertiginoso e como era um animal nobre nunca apresentou
problemas de sociabilização. A instalação das figuras de imobilização
constantes do currículo clássico de obediência foi muito fácil e o animal
demonstrou uma disponibilidade física e atlética notáveis. Aqui e ali,
sentia-se que o Rottweiler dava mais, apesar de o seu dono lhe suplicar as
ordens, evoluir de olhos fechados e de se entregar a todos os santinhos,
postura que negava mas que era denunciada pelo engasgo da voz, fragilidade nas
ajudas e pelo esgueirar do corpo. Tantas e tantas vezes foi alertado para a
precaridade da sua liderança, mímica e prestação.
Se os
conselhos e os subsídios de ensino de nada lhe valeram, muito menos lhe valeu a
devoção. Certo dia, que já se adivinhava, muito embora não se soubesse qual a
hora e o local exactos, durante um exercício e perante a frágil insistência do
dono, o cão virou-se a ele e remeteu-o para tratamento hospitalar. Depois disto
ainda se tentou educar o cão por um profissional, já que o animal continuava a
obedecer plenamente à empregada, hipótese que bem cedo foi abandonada porque o
Rottweiler passou a dispensável. Decididos a despachá-lo por qualquer preço (a
dá-lo a quem o quisesse), os seus proprietários optaram por colocá-lo num hotel
canino à espera de um novo dono.
Como se
calcula, não seriam muitos os candidatos a tal encargo e o animal parecia
condenado ao pior dos fins, ao inevitável. Afortunadamente isso não aconteceu e
o cão acabou nas mãos de um segurança que muito precisava dele para melhor
desempenhar o seu serviço. Este relato é verídico e carrega várias lições. A
primeira é: quem não tem tempo para cães
não deve desperdiçá-lo a adquiri-los, a segunda aponta para a relação
óptima entre o tratamento e o treino, surgindo o adestramento como resultado
dos cuidados anteriores. Assim, quem deveria ter treinado o cão era a criada
ucraniana. Infelizmente ela estava contratada para outros serviços e não lhe
foi permitido abandoná-los. Gente
medrosa não deve procurar cães valentes, porque o ditote “quem tem medo compra
um cão” é falso e quando levado à letra, pode levar a consequências muito
desagradáveis. À parte disto, nestas situações manda o bom-senso e nenhum
adestrador deverá aceitar os trabalhos de um binómio com estas características,
mesmo que os donos se digam capazes, a bem da sua salvaguarda e do melhor
aproveitamento dos cães (é para isto que serve o regime interno e o treino
efectuado por terceiros), até porque sempre será mais fácil ludibriar cães do
que robustecer aqueles que se encontram ludibriados (os donos).
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