sábado, 29 de maio de 2010

O romano que há em nós

Não são só os cães dominantes que vêem aumentada a sua prole, o mesmo acontece entre os homens no seu percurso civilizacional. Os portugueses resultaram da fusão de vários povos antigos, anteriores à chegada das legiões romanas e por elas assimilados e congregados. O viver romano generalizou-se na Península e os germanos que aqui chegaram mais tarde (Schwaben und Westgoten), acabaram por abraçar também a cultura, a língua e os usos latinos, com os quais já antes se haviam familiarizado. Também graças aos casamentos mistos, a Igreja conseguiu ao tempo resolver a dissensão ariana e tornar extensível a todos o credo niceno, gente que posteriormente os mouros apelidarão de moçárabes e a quem darão liberdade de culto. Por detrás de cada português poderá haver um grego, um celta, um fenício, um cretense, um germano, um alano, um judeu ou um árabe, assim como outros povos transportados pelas posteriores descobertas marítimas de lugares mais distantes ou recônditos. Para além destes, ainda circula entre nós muito sangue romano, apesar de heterogéneo e de acordo com o particular das legiões imperiais. Daí não espantar a ninguém, ser o ADN do português marginal em relação ao dos seus parceiros europeus e mais próximo dos brasileiros e cabo-verdianos (na Europa só os bascos têm a mesma incidência de grupos sanguíneos negativos que os portugueses).

A língua portuguesa é filha do latim, não do clássico e próprio dos eruditos, mas daquele que se falava entre as hostes e que era audível entre os construtores de pontes e estradas, comerciantes e artesãos, avesso às declinações e sujeito ao remanescente étnico-geográfico, fenómeno já acontecido durante a cultura helénica e que resultou no grego koiné (grego popular), língua presente no Novo Testamento bíblico. Outras línguas contribuíram para a formação do português, mas nenhuma delas usurpou a hegemonia do latim. O abraçar da cultura romana pelas tribos invasoras germânicas, por exemplo, fez com que poucas palavras ou termos visigóticos tenham chegado até aos nossos dias (de imediato lembramo-nos de um palavrão e do substantivo espora), muito embora no falar das gentes nortenhas o ditongo “ei” possa soar a “ai” e muitas vezes o “r” saia aspirado, facto a que a que não devem ser alheios, supostamente, os reinos dos suevos e visigodos, o condado portucalense e a posterior dinastia borgonhesa (1ª dinastia portuguesa). Não obstante, tanto no passado como no presente, nada sustenta um grupo racial imaculado, atendendo às migrações na antiguidade, à constituição dos celtiberos, à coabitação entre godos, alanos e outros e à invasão muçulmana, que apenas não tomou posse do Reino das Astúrias, protegido por uma imponente cadeia montanhosa.

O latim transformado em português embarcou nas caravelas e proliferou pelas quatro partidas do mundo, saiu do mare nostrum, cruzou todos os oceanos e foi abraçado por outras gentes. O português falado no Brasil, que jamais poderá ser considerado como língua brasileira, é um português mais adocicado e menos gutural, resultante das migrações para aquelas paragens (há que considerar a influência dos escravos africanos), profundamente nasalado, que tropeça nas vogais mudas, despreza a etimologia das palavras e que vive em constante aculturação, mostrando dessa forma o dinamismo da língua mater, também ela originalmente popular e resultante da miscelânea de vários povos. O português brasileiro tem libertado o português de Portugal dos entraves fonéticos que dificultam a sua aprendizagem. E a prova é esta: um português entende perfeitamente um brasileiro e não raramente os brasileiros têm dificuldade em compreender um português. A universalidade da nossa língua está para além dos nossos condicionalismos geográficos e diariamente é enriquecida por novos termos segundo ancestrais conceitos, fazendo reviver o soldado romano que há em nós, um guerreiro imortal que sobreviveu a todos os impérios e que alcançou descendência em todas as raças. Assim compreendemos Pessoa: “ A minha Pátria é a Língua Portuguesa”. O português nunca reivindicou por um “lebensraum”, porque se espalhou pelo mundo, abrigou-se por toda a parte e constitui família em todos. Ao longo dos séculos e dando continuidade aos milénios passados, a árvore romana continua a frutificar, onde outras não alcançam raízes por persistirem nas diferenças e se circunscreverem a si próprias, no primitivo conceito tribal ultrapassado por todos os impérios.

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