Esta é uma histórica verídica, não uma fábula, uma narrativa fictícia ou um conto antropomórfico. O Egas era um cão (dizemos “era” porque não sabemos se ainda é vivo e se o é, breve embarcará para a Shangri-La dos cães) vivo e astuto, dado a correrias, propenso a disparates, com um forte sentimento territorial e um raro sentido de observação. Conhecemo-lo em cachorro, quando deambulava atrelado com a sua dona pela Rua dos Soeiros em Lisboa. Aos quatro meses já era enorme, evidenciava a irreverência típica dos lobeiros e já então rebocava a sua condutora, uma enfermeira aposentada que vivia só, intelectualmente superior, fisicamente deficitária e socialmente adorável. O Egas tinha vindo para o lugar de outro que se havia finado, um CPA preto-afogueado bem diferente dele e que havia deixado grande saudade. Foi adquirido a um militar da GNR que se dedicava à criação caseira de Pastores Alemães, deixou alguma prole e acabou por ingressar nas nossas fileiras.
Na escola comportava-se como um “menino de couro”, era um atleta de eleição e alcançou sem dificuldades a linguagem gestual. Tal qual um feijão-frade, que dizem ter duas caras, ajustava as contas em casa com a sua dona, quando liberto do rigor do treino e distante da presença do adestrador, comportando-se a seu bel-prazer e ignorando sistematicamente todos os reparos da sua líder, que usualmente acarretava com os estragos por ele produzidos e que normalmente via posta a sua integridade em risco. Certo dia, numa correria atrás de pombos, conseguiu partir um braço à dona, porque a levou a reboque, obrigando-a a bater violentamente com braço esquerdo contra um árvore (do mal o menos, ainda bem que conduzimos os cães à esquerda). Era um desafiador inato e enfrentava qualquer cão na via pública, independentemente da sua raça, robustez ou tamanho. Chegou à idade adulta com 70 cm de altura e 38 kg de peso, o que lhe possibilitava atingir uma velocidade instantânea de 6 metros por segundo.
Surgiu a oportunidade e a dona decidiu ir a Londres, não podendo levar o cão, deixou-o ao nosso encargo e foi hospedado no hotel escolar. Desde logo se percebeu que o bicho não via com bons olhos a separação e ausência da dona, porque de imediato se lançou a uivar e a ladrar “a todo o gás”. Preocupados com o bem-estar do animal e decididos a suavizar o seu sofrimento, levantámo-nos mais cedo e rumámos ao canil. Quando lá chegámos, para espanto nosso, todas as portas e janelas encontravam-se abertas e do Egas nem notícia! Estamos a falar de janelas elevadas a 1 metro e 20 cm do solo e de puxadores rotativos, de pesadas portas de ferro deslizantes e com trincos resistentes. Depois de desesperadas e infrutíferas buscas, ligámos ao final do dia para a sua proprietária, para lhe comunicar o ocorrido, desalentados e temendo o pior. “ O Egas é assim mesmo e eu esqueci-me de vos dizer. Ele abre o micro-ondas, come o que está lá dentro e volta a fechar a porta, faz o mesmo com o frigorífico e adora abrir portas!”- disse-nos ela.
De imediato informámos os postos concelhios da GNR, contactámos os veterinários locais, alertámos os guardas florestais e pedimos ajuda à Rádio Mafra, que de hora a hora, logo após os noticiários, punha no ar os nossos apelos, alertando os seus ouvintes para a novidade do cão em fuga e solicitando-lhes o seu possível paradeiro. Dum momento para o outro, toda a gente viu o cão e todos os cães regionais viraram pastores alemães lobeiros, à parte do seu tamanho, envergadura ou raça, o que muito sobrecarregou a nossa azáfama e aumentou o nosso desespero. Andámos literalmente por rios e montes, calcorreamos aldeias ignotas e passámos a pente fino a região. Esforço inglório diante da ausência do Egas. Pela manhã do 3º dia de fuga, por sinal um Domingo, um vendedor de “Pão de Mafra” ligou para a Rádio a dizer que tinha visto o cão junto à Ribeira de Cheleiros, quando por ali passou. Rumámos de imediato àquela depressão e mais uma vez não vimos recompensado o nosso esforço. Apostados em encontrar aquele Houdini de orelhas erectas, continuámos as buscas no local até à hora do almoço.
E porque há coisas que não se explicam, a sorte raramente acontece e a intuição só é plausível quando confirmada, decidimos ir ao encontro dumas casas isoladas na aba da serra, por um caminho pouco pisado e nada convidativo. Fomos dar a uma casa tradicional com laivos de moradia e acabámos por bater à porta. Dissemos ao seu proprietário ao que vínhamos e descrevemos pormenorizadamente o animal que procurávamos, ao que ele respondeu nunca o haver visto por ali. De qualquer modo, agradecemos-lhe a atenção e deixámos-lhe o nosso contacto, não sem que primeiro nos manifestasse a sua simpatia por cães e nos mostrasse apressadamente os seus Castro Laboreiros. Algo nos dizia, sabe-se lá porquê, que ainda iríamos ver o Egas. Não se diz que a esperança é a última coisa a morrer? Mortos de fome fomos almoçar.
Imediatamente após o almoço, recebemos uma chamada telefónica, era o homem com quem há pouco havíamos falado, a informar-nos que o Egas ia a caminho da Escola pela Estrada Nacional. Motores em marcha e pela estrada Mafra-Sintra! Mal tínhamos passado a Igreja Nova quando avistámos o cão, em marcha apressada e com a língua de fora, pelo meio da estrada e debaixo de um calor tórrido. Momentaneamente apeteceu-nos dar-lhe um correctivo, uma lição que nunca mais esquecesse, mas a alegria do reencontro era tamanha que logo corremos a abraçá-lo. O cão rejubilou quando nos viu e de imediato soltou para o carro. Nesse mesmo dia, ao final da tarde, a dona veio buscá-lo e sentimos um alívio indescritível, porque apesar das dificuldades, a história havia tido um final feliz. Demorámos a voltar para casa, a noite reconfortava-nos e cansaço pedia descanso.
Na manhã do dia seguinte a dona do Egas ligou-nos estupefacta: ele tinha acabado de defecar vários pedaços de corda. Quem o teria mantido preso? Não sabemos, quiçá temos um dedo que adivinha. Ainda bem que o ensinámos a cortar corda, porque de outro modo dificilmente o tornaríamos a ver. Sempre que temos notícia de cães desaparecidos lembramo-nos da história do Egas, do susto que apanhámos e da façanha do animal. Voltou a ficar no canil noutras ocasiões, não manifestou desejo de fugir mas também não podia: “casa roubada; trancas à porta”. Ao deixar o seu cão num hotel, não se esqueça de alertar os seus responsáveis para as tendências particulares do seu companheiro, mesmo que não o questionem acerca disso.
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